O ruído do trabalhar de um gerador entra-me pela casa adentro sem usar o batente ou aguardar que lhe abra a porta.
Na infância qualquer som a repetir-se na mesma cadência e por tempo demorado fazia-me adormecer, sem olhar ao lugar e muitas vezes ao momento. Bastava anichar-me e pronto recolhia às asas acolhedoras de Morfeu.
A melopeia da cegonha ou picanço, da nória, do motor de rega, da malhadeira, eram causas de abondo para um sono inesperado.
O fogareiro a petróleo, na ausência do fogão a gás, marca “Leão”, momentaneamente em folga, por falta de conduto, e já próximo do cear, na acanhada cozinha da parte destinada à habitação da Estação de Correios de Vila Verde da Raia, serviu de argumento para um fechar de pestanas de consequências devastadoras.
Brincava às escondidas e como na cozinha não se encontrasse vivalma, ocultei-me debaixo da mesa, que uma toalha comprada no trelo em Feces, cobria até aos pés.
Entrincheirado neste refúgio, aguardei, certo que me não encontrariam.
A verdade é que os companheiros de folguedo, os meus irmãos, mais novos do que eu, não descobriram a toca, embora dela saísse uma e outra vez, já decepcionado por a brincadeira não continuar.
Como os meus irmãos desistissem, decidi alargar o jogo e lá permaneci.
Entretanto, comecei a escutar o som produzido pelo fogareiro e a sentir um torpor agradável, que nem as passadas da minha mãe ou o mexer na louça punham cobro.
Acabei por adormecer.
Não sei quanto tempo se passou e se escutei algum barulho, tão ferrado estava a dormir, que chegava até mim, muito ténue, esvaecido, como se fosse parte de um sonho.
Quando acordei, estremunhado, saí do esconderijo e dava os primeiros passos no corredor, quando deparei apenas com o meu pai, agitado, e depois atónito quando me viu, e dirigindo-se na minha direcção, prega-me um valente tabefe sem mais pedagogias.
Vim a saber, que passada a hora de jantar e por mais que me chamassem, como não desse quaisquer sinais de vida, começaram a procurar-me na vizinhança e depois já entrada a noite e com a ajuda dos vizinhos tinham alargado as buscas, esquadrinhando fora da aldeia, vasculhando poços, o canal da Veiga de Chaves, o rio*… quando o meu pai, desesperado, regressou a casa para telefonar à guarda, aos bombeiros e me surpreendeu, ainda sonolento.
Mas se aquele inesperado sono, teve para mim aquele escarmento, para um dos meus irmãos mais novos, o final foi mais feliz, diria quase apoteótico.
Era tempo de segadas.
Andava o rancho de segadores, que viera das encostas do Brunheiro, numa centeeira que tínhamos na Veiga, quando o meu irmão se deixou adormecer noutra próxima.
Passado algum tempo ouvem-se brados: “É lobo! É lobo!”* *
Todos se ergueram, as foices na expectativa, preparavam-se para acorrer ao lugar de onde vieram os gritos, quando escutaram:
- “Vai direito ao Razêdo!”
Como nada bulisse nas redondezas ou vissem, retomaram o trabalho.
O caseiro, “Carachas” de nomeada, deu conta da falta do meu irmão e logo foi procurá-lo. Encontrou-o no meio do pão, enroscado e a dormir placidamente e mesmo junto aos pés dele, viu as pegadas do lobo.
Quando regressou para junto do rancho e contou o que vira, aqui e além perguntavam-lhe:
- “E não acordou?”
- “Nem se lhe eriçou o cabelo?
- “Nem sentiu frio?”
Quanto ao meu irmão, ainda tonto de sono, mudou de leito para um saco de lona e adormeceu novamente à sombra de uma cerdeira e com as costas e cabeça apoiadas na albarda da burra…
Claro que isto se passou há muito tempo …
No tempo em que o Tété, amigo e colega de escola primária, quando pastoreava o rebanho do pai “Sapa”, teve uma acalorada disputa com um lobo pela posse de uma ovelha. Como não chegassem a entendimento, cada um fez valer os seus direitos. O lobo abocanhado no pescoço da pobre ovelha e o Tété agarrado com unhas e dentes aos quartos traseiros. Cada um ateimava o mais que a garganta podia e as forças permitiam. Ganhou o Tété, por um corpo inteiro de ovelha, fora parte do pescoço e cabeça, pobre troféu para a lupina vontade.
Facto que foi notícia de relevo nos jornais cá da terra, o recém-aniversariante “Notícias de Chaves” e a “Voz de Chaves”, e na imprensa nacional: “O Comércio do Porto”, o “Jornal de Notícias” e o “Primeiro de Janeiro”. Citei-os, pela amargura de alguns já não pertencerem ao número dos vivos.
Comecei a crónica de hoje a falar de sono, espero que não tenham adormecido.
E cá para mim aqueles sonos insólitos da infância tinham mais a ver com o choutar quase todo o dia, por eiras, touças, soutos e lameiros, crias debaixo do olho, e jogar a choca, o fito, o espeto, lançar o pião ou o papagaio feito com as canas dos foguetes da festa do Senhor dos Milagres ou da Senhora das Neves, papel dos sacos de farinha e cola de pão, ir aos os ninhos e tantas outras coisas, que mesmo em atenção à idade, não deixavam de cobrar o imposto devido…
Agora melopeias … Pfff!
É como quando fui a pé de Chaves a Mairos. À minha espera estavam: um colchão de folhelho, lençóis de estopa e mantas de estamenha; um quarto que tresandava a fumo, com o tecto sem forro, apenas as telhas, onde num e noutro sítio, se coava uma poalha de luz; soalho esburacado e logo acima das lojas, de onde se evolava o bafo das vacas e o odor do estrume; um guisado de coelho feito num pote ao lume de duas rachas de carvalho, um capão de giestas; e uma malga de caldo de berças, feijão, batata e um cibo de unto.
Não me lembro de dormir tão bem na minha vida e apesar de não gostar de coelho - agora ainda mais, por razões muito minhas -, nunca comi tão bem ou saboreei algo que me fizesse tanta festa ao palato.
Foram os ares, a caminhada, dirão …
“Foi mas é a fome!”
“Condit fercla fames; plenis insuavia cuncta.”***
*Como estamos em período de férias e para os mais jovens, aqueles que ainda não o tenham estudado ou lido, aconselho o conto “Abyssus, Abbyssum”, do escritor Trindade Coelho, Mogadouro, 18 de Junho de 1861 – 18 de Agosto de 1908.
**Idem, aos menos jovens, Quando os lobos uivam, Aquilino Ribeiro; Uma noite na toca do lobo, Tomás de Figueiredo.
*** “A fome tempera os alimentos; aos fartos tudo é desagradável”, Dionísio Catão. Tive latim no antigo sexto e sétimo ano do liceu. Preciso de lhe dar algum uso.