A Malia do Maloco
O inverno foi longo e duro. Acabaram as geadas e as carambinas. Foi-se com elas o nevoeiro teimoso, denso e gelado. Tão gelado que por vezes ameaçava tralhar-nos a própria medula! Pegou a chuva. Choveu copiosamente naquele início de Primavera. Os nimbos descarregaram águas mil, dias e dias a fio. Mesmo quando não chovia pegadinho, teimavam as zerbadas, persistentes e frias.
– Rais parta a chuva, que até os cães bebem de pé! – Queixava-se o Vila Real da rua Direita, que com a humidade não conseguia puxar o lustro como mereciam o estatuto e as botas de meio cano do capitão Adelino Fernandes do dezanove, a que acabara de botar meias solas.
O Tâmega, com as bátegas, empertigava a olhos vistos.
– Está aqui, está a bober nas Caldas! – dizia o Porrório, aflito, com a ameaça de inundação da loje dos seus requinhos.
Contudo, aquela quinta-feira de 12 de Abril de 1935, nasceu excepcionalmente enxambrada. Por isso, os arames dos quintais, das sacadas e dos mirantes, enchiam-se de farrapos a enxugar. Roupa a que as braseiras já não davam vasão. Um dia bom, até para corar na erva do Tabolado.
– Toca a aploveital que é sol de pouca dula! Pensava em voz alta a Malia do Maloco. Por isso, manhã cedo, recolheu a roupa suja das clientes, no Postigo, na rua dos Gatos e na do Correio Velho e pela Canelha das Caldas, onde morava, dirigiu-se, de jiga à cabeça, para os lavadouros do Ribelas.
A Malia do Maloco, Maria Fabrícia por graça própria, era tida, diga-se injustamente, como calhorda desde que aportou à cidade. Falha da fala, dizia chamar-se Malia, do Maloco explicaremos mais tarde. Sem eira nem beira, na casa dos trinta, Maria Fabrícia veio espavorida de Vale do Galo, nas fraldas da Padrela, onde uma paixão, meio assolapada, lhe ia tirando o pio. Embeiçou-se, aos vinte e poucos, pelo Jacinto da Ambrósia, um homem casado da aldeia vizinha da Dorna. A paixão era de tal monta, que o desgraçado não dava conta do recado, nem em casa nem no ermo! Tanto assim que um dia, a legítima, cansada de tanta abstinência, fez-lhes uma espera na Lampaça. Sabia do dia e da hora, pela mania que o marido tinha de sonhar alto. Então, ajeitou uma vergasta de marmeleiro e na bouça onde os amantes tinham marcado o repasto, acertou quatro lostras no lombo de cada um, que estou certo os teriam deixado mais regalados do que o conforto da cama de fronças onde já não se puderam rebolar!
– O Jacinto que se deixe de lérias, há de jejuar muito para lá da Semana Santa e com uma carga de porrada por semana! – Prometia Ambrósia a si mesma.
– E a Maria que se pusesse a pau, pois doravante não teria sossego em rincão algum da serra da Padrela. – Insistia.
Maria não teve outro remédio senão amanhar a trouxa e fazer-se à estrada. É que a legítima tinha pelo na venta!..
Foi parar à cidade de Trajano, onde a mania de ter o que era de outras, poderia ser menos notada. Pousou num pardieiro na Canelha das Caldas, onde o Caninhas a acolheu por misericórdia. Quem sabe se até por outra razão qualquer!..
Para além do expediente normal das buscates mais recatadas e discretas, a Malia vivia dos serviços que fazia às senhoras que podiam pagar: lavava, passava, remendava e escarolía. E assim ia governando a vidinha.
Não demorou que se embeiçasse pelo Mário Campino, o lôco, como lhe chamavam, por insistirem que tinha os cinco mal aferidos. Sem razão! Campino era um homem valente, de trabalho que nunca conseguiu quem o quisesse. Não porque não fosse até marialva, mas porque veio já com alguma idade, lá onde o toiro se pega, sem nunca ter sido capaz de explicar porquê. Então, quem o conhecia fugia-lhe como o diabo foge da cruz, por temor natural do desconhecido. De facto ninguém sabia onde o homem pendurava o pote! Afora isso, era um bom serás, leal e amigo do seu amigo. Vivia, quase exclusivamente, da acarreta de cântaros de água das Caldas para a Pensão Jaime e para outras casas que lha encomendassem. O curioso é que tinha de mear a banheira de cada hóspede antes que ele recolhesse ao seu quarto. Claro que na hora do banho da manhã a água já estaria fria, então para que ficasse tépida e sem perder o potencial curativo dos minerais, antes que o hóspede acordasse, temperava-a, acrescentando água quente, que recolhia pela madrugada. Era um trabalho duro e apesar de uma ou outra gorjeta, mal dava para forrar diariamente a tripa com um caldito de farta-rapazes. Mas, apesar disso, o Mário até tinha o seu fatinho de ir à missa, oferecido pelo patrão bem entendido, mas que vestia aos domingos e o empertigava pela cidade.
O Mário, já tinha topado, ao passar pela Canelha com os cântaros ao samarro, que havia por ali gado novo. Faltava-lhe a coragem, a arte e o engenho para o tocar ao lameiro! Contudo, ao final da tarde de um santo dia, quando subia a calçada, arreado com um almude de água no lombo, micando a dama à soleira, fez-se de mula e simulando um tropeção, espolinhou-se com a vasilha pelo empedrado. Trilhou-se, mas conquistou a compaixão da rainha. Ela levantou-o, afagou-lhe os toutiços e esfregou-lhe as pisaduras com um cibo de vinagre. A coisa pegou! Não demorou uma semana que comesse o caldo de espigos no regaço da Malia. Partilhavam uma casa paupérrima, de uma só assoalhada, térrea, onde a um canto ardiam meia dúzia de guiços, aquecendo a água sem unto de um velho pote. A liteira, no outro canto do tugúrio, fazia lembrar o ninho dos recos. Junto à porta da rua uma mesa de pinho muito bichado, dois bancos do mesmo e um louceiro pendurado na pedra solta da parede com duas malgas e dois pratos encardidos. Era tudo o que tinham e que afinal nem lhes pertencia. A porta esburacada, fechava por fora com uma aldraba de madeira, tipo carvelha, que também servia de puxador, do lado de dentro com uma tranca.
Ora, o Mário Lôco passou a ser hóspede vitalício do hotel da Malia e a coisa andava ferradinha! Tanto assim, que nos lavadouros do Ribelas a Fabrícia quando queria falar dele, já lhe chamava o meu Maloco. Querem ouvi-la?
– O meu maloco onte à noute binha doudo, vejam lá que quelia que eu untasse a senisga com um limão que lhe ofeleceu a Ondina legateila na plaça. Diz que oubiu o Rabôto a cagal lélias, dizendo que a mulhel ficava mais gostosinha untada com o limão e então quelia explimental.
Uma risada!
Pela cidade já ninguém se referia à Malia que não fosse por Malia do Maloco. Era uma pândega e maior ainda quando os galferros contavam aos engraxadores dos quadradinhos do Arrabalde as cenas que ouviam e espreitavam pela velha porta do pardieiro, quando os pombinhos, após o lauto repasto dos espigos, devoravam a sobremesa!
– Ai que bem me está a sabel! – repetia o Tone Ranheira, imitando o que ouvia no silêncio das noites de amor na Canelha das Caldas.
A coisa tanto andou, tanto andou, que a Malia um dia alcançou. Andava de meia barriga quando, numa noite mais agitada, os lapantins ouviram e espalharam:
– Ó Maloco, ó Maloco, tem juízo, olha que matas a cliança!
E não é que matou mesmo! A Maria abortou e tal foi o desarranjo que a partir daí ficou machorra. Bem, do mal o menos, antes machorra do que padecer do mal do Chico, irmão da D. Demerciana, que quando lhe parecia, pegava num manhuço de jornais velhos e punha-se a esfregar vigorosamente qualquer passeio, rematando a esfrega com um manguito, gritando:
– Viva Portugal e todos os que não me querem mal! Viva, viva, viva!
Ou então ser como o Tio Carradas, concorrente do Maloco, que transportava água das Caldas para o Grande Hotel numa carroça puxada por uma mula quase cega, andava com quantas mulheres pudesse, comia caldo de cobra, por mor do reumatismo e chamava-se à gata rabona sempre que lhe calhava pagar a rodada no Faustino.
Ou ainda como o trombalouceiro do Ernesto Baldroegas, empachado com os dotes dos improvisos do filho. Bem, já que me lembrei do Baldroegas oiçam lá esta:
Um belo Agosto, no arraial da Senhora da Livração em Boticas, reunia-se o povo à volta de dois cantadores que ao desafio não deixavam a sua fama por mãos alheias: de uma banda o Severino, filho do tal Baldroegas, da outra o João Soqueiro. Eram acompanhados à concertina do Malheiro. Então, era bota quadra de um lado e bira quadra do outro, cada um esgalhando quanto podia no parceiro. Já não estavam sós nem os cantadores e muito menos o auditório! Pudera, é que o vinho dos mortos não era para tretas! A coisa estava a ficar quente, quando, para gáudio da assistência anónima, mas sobretudo dos consanguíneos, botaram esta:
Do lado do Severino:
Sou cantador afamado
Sou barrosão de Boticas
E tu que vens do Brunheiro
Olha que aqui não te esticas!
Resposta:
Não me cortareis o pio
Com facas nem com cutelos
Pois sou o João Soqueiro
Venho a cantar de Fornelos.
Gargalhadas, aplausos e um comentário:
– Olha que o filho d’um cabrão do Severino canta bem!..
Responde o Ernesto Baldroegas, seu pai, todo inchado:
– Canta num canta?.. É mou filho!..
– Melhor estivesses calado, lambão!.. – Atira-lhe do outro lado o Zé Pimpão.
O Baldroegas, folião do varapau, não tem mais nada, assumindo que o Pimpão achincalhava o rebento, espeta-lhe tamanha bordoada nos queixos, que o desgraçado, sem culpa alguma que não fosse ter aberto a boca, ficou estrumado no terreiro a sangrar como um reco.
Não estivéssemos às portas do Barroso!.. Armou-se tamanha zaragata, que acabaram as cantigas, os copos, a música dos de Parafita e ia acabando até o próprio arraial, não fosse a coronhada da Guarda Republicana.
A Malia do Maloco viveu feliz. Faleceu tragicamente, já velhota, quando pitava lenha no quinteiro de sua casa. Caiu como um passarinho. Acho que morreu feliz, morte santa!
– Até para morrer é preciso sorte! – Refletia o Caninhas.
Diz o povo entendido que a Maria não esteve no purgatório mais do que meio ano, tempo suficiente para expurgar os pecaditos, os mais deles veniais, que as penitências do padre Hélder não conseguiram limpar nesta vida, e que após esse martírio foi para o céu, interceder pelo amante! Eu não sei, não percebo nada do divino!.. Sei é que foi amada e respeitada pelo Maloco e mesmo na etapa derradeira da vida teve o merecido amparo, com um funeral de rica. Também sei que isso consumiu muito suor das Caldas ao Postigo e do Postigo às Caldas, mas o conforto da vida ao lado da Malia valia isso e muito mais.
Vejam lá que até a igreja de Santa Maria Maior tocou sinais na véspera do seu funeral!..
– Quem teria morrido? – Perguntavam ao ouvir os sinos.
– Foi a Malia do Maloco! – Repetia quem o sabia.
– Coitada! Deus lhe perdoe! – Condoíam-se as beatas.
– Bedeiras, tomaram quando vos arrefecer o céu da boca, irem tão regaladas como ela! Deus a tenha em paz e a deixe estar muito tempo sem nós – dizia o Mário, já não Maloco, depositando três mãos cheias de terra santa sobre o mogno do caixão, enquanto deixava que duas lágrimas teimosas humedecessem a terra fria que havia de cobrir a sua rosa.