Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros
O QUE TROUXEMOS DE CHAVES
um texto de José Carlos Barros
1.
Antigamente, a gente ia a Chaves fazer o quê? E trouxemos de lá o quê?
2.
Em Boticas, no final dos anos sessenta do século passado, fazíamos cabanas com ramos e folhas dos plátanos no meio da avenida, e era reduzida a probabilidade estatística de termos que desmontá-las para que um automóvel pudesse passar subindo ao Eiró ou descendo a caminho da Vila. Porque quase não havia automóveis fora da estrada que vinha de Chaves ao largo do Toural.
Não era já como nos anos vinte, claro. O jornal de Boticas, por esse tempo, noticiava a chegada à Vila do senhor doutor António Granjo, vindo de Chaves para um dia de trabalho -- ou, o mais certo, para se encontrar e conspirar com os correlegionários políticos na salinha interior da Farmácia Martins. E em letra de forma escarrapachava a data de partida do senhor padre Pedro para as suas férias na Póvoa de Varzim, atenta a relevância, desde logo por raridade, do acontecimento. Claro que não era já assim nos anos sessenta e nos anos setenta. E ir a Chaves, então, era já uma coisa de costume, de rotina, sem lugar a notícias no Echos -- e ia-se já de vacances para a Póvoa ou para a foz do Cávado, em Ofir, sem que isso, não sendo propriamente de frequência desusada, desse lugar a notícias num periódico regional e regionalista.
As crianças andavam na rua. O anexim não se repetia por algum especial gosto em trazer ao quotidiano as manifestaçõs genuínas do folclore: dizia-se
"parece que pariu aqui a galega"
porque de facto éramos às dezenas, os petizes, a correr atrás de uma bola ou a andar de bicicleta pelos carreiros ou a inventar jogos de tarde inteira do género o guarda e o pilha. Não havia internet nem plataformas digitais nem consolas de vídeo. E quando em Junho de 1974 o Sporting venceu o Benfica na Taça de Portugal, eu e o Bau, sem facebook para nos metermos em casa ou no Cyber a enviar mensagens e a fazer comentários e a carregar nos likes, saímos para ao pé da igreja a acenar com duas bandeiras verdes aos poucos carros que passavam.
3.
(Mas já nos estamos a desviar do assunto.)
4.
Compreende-se que não fôssemos a Chaves por dá cá aquela palha. Mesmo os que prosseguiam estudos em Chaves -- e eram poucos os que prosseguiam estudos, e menos ainda os que os prosseguiam em Chaves -- ficavam lá à semana: os vinte quilómetros que separavam a vila e a cidade eram, então, ainda coisa de respeito.
Íamos lá, portanto, fazer o quê? Cada um terá a sua memória própria. A minha -- da infância e do princípio da adolescência -- lembra-me que ir a Chaves se misturava entre a alegria -- e o pé-atrás; entre o fascínio das luzes da Feira dos Santos -- e a chatice do consultório de oftalmologia; entre os sumois na Sissi -- e os corredores velhos do hospital velho e o cheiro a anestesias quando íamos de visita a um familiar acamado; entre o tumulto dos jogos do Desportivo contra o Riopele -- e o terror da cadeira do dentista; entre a euforia lenta de entrar na Ana Maria para comprar um romance ou no quiosque com a ansiedade de ver se a Tele-Semana já estava nas bancas -- e a seca de uma tarde em lojas cinzentas a experimentar as calças e os casacos do inverno.
Depois crescemos. Depois descobrimos a cidade verdadeiramente e nela nos perdemos às vezes ainda com a ilusão que permanece de que era para nos encontrarmos que às vezes mais nos perdíamos. Depois era o liceu e era o amor e eram os primeiros projectos de começarmos a mudar o mundo. Depois era o futebol e a literatura. Depois eram as olaias do Largo das Freiras e os copos de vinho em tabernas escusas. Depois eram os automóveis e a noite, depois era a manhã a nascer por detrás de um monte, depois era o sol do Verão iluminando as paredes dos edifícios como nunca mais nenhum sol iluminou uma rua ou um rosto -- e o nevoeiro tão espesso, dias seguidos, que podíamos moldá-lo e esculpir uma pirâmide efémera ou uma bola quase de cristal com os segredos do mundo lá dentro.
O que fica, tantos anos depois, disto tudo?
Talvez o liceu e a sala dezanove. Talvez um poema publicado num suplemento literário de um jornal da província. Talvez uma árvore no Tabolado, a sua sombra desenhando um perímetro de defesa, e umas mãos que se misturam à procura dos primeiros nomes verdadeiros. Talvez os amigos. Talvez, sempre, os amigos: os amigos que bebiam traçados no balcão corrido do Faustino e vinho em seis tabernas escusas e cerveja em copos de litro numa mesa próxima do rio; os amigos que jogavam à bola no Picadeiro ou no campo do Desportivo nos treinos juvenis de captação; talvez as casas dos amigos onde jogávamos xadrez ou passávamos noites a jogar às cartas ou uma garagem onde dançávamos ao som de um gira-discos. Talvez um baile de máscaras. Talvez um degrau na rua Direita onde enterrámos a cabeça nas mãos a iniciarmo-nos na consciência da possibilidade definitiva das perdas e da estupidez da velocidade. Talvez os matraquilhos montados em barracas com elementos metálicos pintados em letras maiúsculas nas margens do Tâmega. Talvez um baile no Jardim Público. Talvez uma tipografia na Rua de Santo António e o ruído melódico das máquinas de impressão. Talvez as mãos em segredo por baixo da mesa de um bar como se a felicidade não fosse uma coisa assim tão distante como vem descrito nos livros. Talvez o cheiro a gases queimados de um barracão imenso onde apanhávamos a camioneta da carreira. Talvez os bilhetes rasurados onde marcámos encontros clandestinos. Talvez um pio-pardo caçado com invulgar perícia nas traseiras da casa do Santo Amaro. Talvez um quadro do Nadir e um texto do Fernão de Magalhães Gonçalves. Talvez uma conversa literária. Talvez um riso, talvez uma lágrima. Talvez um automóvel com seis pessoas a meio da noite a caminho de Espanha. Talvez uma navalha na cervejaria Romana. Talvez a ilusão de que uma boa parte do mundo -- cidades, estrelas, mulheres -- nos haveriam de pertencer para sempre. Talvez a certeza de que éramos justos e dignos e imensos em todos os crimes que acabávamos por cometer.
5.
É isto, tanto, tão pouco, o que fica de uma cidade tantos anos depois. Imagens vagas, memórias atravessadas por encontros e ausências, pelo sentimento da dádiva, pela incerteza definitiva das perdas.
Porque de Chaves, como quase sempre acontece, trazíamos o que levávamos, levávamos o que trazíamos -- somando-se a isso, e subtraindo-se, tudo quanto éramos ou julgávamos ser.
E depois, quase sempre, regressávamos à Vila na camioneta da carreira ou num automóvel que gostávamos, antes das curvas de Sapelos, de confrontar com a nossa ideia de que os perigos nos haveriam de continuar a acompanhar a vida toda.
E regressávamos, portanto, a Boticas quando fosse o fim da tarde ou a manhã começasse a nascer por cima dos montes.
6.
E só os perigos continuam, ainda, sempre, a acompanhar-nos um dia depois do outro.