Intermitências - Paragens do Interior
Paragens do interior
Há sempre alguém sentado numa paragem de autocarro. À espera de uma mudança ou apenas de si próprio. Hoje decidi fazer-me à estrada, com mochila às costas e bloco de notas na mão.
Primeira paragem. Notas melancólicas num sítio feito para gente que não tem nada a perder.
“ – Deus pôs-nos aqui por uma razão: falarmos uns com os outros. E eu falo a cantar –, dizia Bobby Womack, o último soulman ainda vivo que viveu tudo: pobreza extrema, casamentos impróprios, relações mais impróprias, morte de irmãos e filhos, divórcios, drogas – e conseguiu sempre voltar. Também eu, um entre milhões, fantasma numa aldeia longe do dito mundo civilizado, tenho uma paixão desmedida por notas de “rhythm and blues”… É que a sinto mesmo essa maldita tristeza! Sempre vivi sozinho e, a não ser de tempos em tempos alguns familiares mais chegados, nunca levo ninguém a casa. Tenho lá um pequeno altar dedicado ao soul, que adquiri ao longo dos anos em alfarrabistas e antiquários. Todos os dias, como bom pecador, entro na minha igreja para ver, ouvir, tocar, cheirar e saborear o amor e a paz. Esta é a minha fé, o que aí sinto é o céu. Quando canto, não falo como o Womack, existo apenas. Assim na terra, como no céu”.
Fotografia de Sandra Pereira
Segunda paragem. Ilusões desfeitas num sítio feito para gente que se quer esquecer a si própria.
“- Queremos sempre convencer-nos de que nunca estamos sós. Para isso é que existem a família e os amigos, não são para as ocasiões, ora não é verdade? Não olhe para mim com essa cara! Não acredita? Pois eu também não. O homem é interesseiro! Somos todos uns grandes egoístas, é o que é. Já pensou? Também nós somos uma moeda de troca como o euro e o dólar, por isso é que gostamos tanto do dinheirinho! Está a olhar para o meu tinto? Não quer um gole? Pois há-de querer, é o que eu lhe digo! Também eu um dia acreditei no amor incondicional, que vem de cá de dentro, que há sentimentos bonitos que não se explicam… Mas ninguém vai ter com alguém só porque “gosta” dele. Pense lá bem. Há sempre algo em troca ou não? Se o outro não lhe dá o “troco” que espera ou acha que merece, perdoa sempre? Regressa sempre? Só se tiver algum interesse! Nem que seja o da certeza de não ser consumido pelo veneno dos homens. E porque havemos nós de merecer algo? Quer que lhe diga? Eu não precisei de filósofos nenhuns! O homem? O homem é um cobarde”.
Terceira paragem. Memórias sofridas num sítio feito para gente que deixou de existir.
“Gosto de escrever… Também tenho manias com a pontuação, como o Saramago... Todas as minhas frases acabam em reticências… Antes escrevia muito, porque pressinto coisas… Não sou supersticioso, nem místico... Só tenho a 4ª classe, mas tenho muito instinto... Antes seguia-os, ajudava pessoas e depois passava tudo para o papel... Depois ardeu tudo... A casa, a família, as letras... E hoje pergunto, como foi possível não ter tido essa premonição… Vi tudo devorado pelo fogo... E eu e a minha fé… Hoje ainda alinho umas frases, acabam todas em reticências…”
Quarta paragem. Frases soltas num sítio feito para gente que não se importa de esperar.
“Fui-me embora da terra onde nasci e voltei. Às vezes, arrependo-me. Outras, penso que a vida não tem nada melhor a oferecer do que isto. O que faz os lugares não são as pessoas? Aquelas que a gente gosta e que gostam de nós? Pois é aí que devemos estar. E depois lutar para ser melhor. Eu estive fora, agora estou cá, e sempre lutei. Não pelas mesmas coisas, nem com as mesmas armas, mas sempre lutei. O importante é ter algo que nos dê força para saber existir e lutar. Ah! E erguer os olhos aos céus para não ter muitas desgraças… Aqui não há emoções, mas há sentimento. E basta. A mim só me interessa paz e sossego, o resto eu aguento”.
Fotografia de Sandra Pereira
Quinta paragem. Histórias inesperadas num sítio feito para gente que teima em procurar uma ordem inscrita nas estrelas.
“Sou uma pessoa simples, dizem-me. Pois sou! Vou complicar o quê? Fico aqui sentadinho, quando não tenho que fazer e estou de barriga cheia, à espera… De nada, claro, mas que mais posso fazer senão esperar? Isto aqui é muito calmo, mas até é bonito. Já viu como se vêem bem as estrelas daqui? Muitas vezes, penso que sou tão insignificante como elas, lá longe e perdidas no céu, e depois, quando a gente menos espera, sai-nos cada uma! Uma vez, chegou-se um caminheiro ao pé de mim. Vinha de longe! Dos Estados Unidos! Dei-lhe um golito de vinho e ele contou-me que caminhava para viver, para mudar de camisa todos os dias, para não pensar e pensar ao mesmo tempo, para tentar ser ele próprio. Disse-me que eu estava bem aqui sentado, que o mundo está entulhado de coisas que entulham a cabeça e os olhos das pessoas e as tornam violentas, selvagens, más mesmo. Disse-me que no país dele, as pessoas se auto consomem sem reparar que é isso que as auto destrói. Pelo menos eu, dizia ele, olho para a terra, para o céu, para a água e para a gente, que no fundo é o que ele faz também quando caminha para tentar não permanecer demasiado tempo ao pé de pessoas que só olham para coisas que podem tocar e possuir. Vê-lo assim todo suado, magrinho e tudo, até tive pena, não sei lá o que deixou lá na terra dele…E depois tive pena de mim, até me vieram as lágrimas os olhos! Eu que me achava um condenado, um renegado por Deus que só veio a este mundo para trabalhar para comer, trabalhar para comer, numa roda infernal que nunca pára de girar… Faz algum sentido tudo isto? Depois, o americano lá continuou o caminho. Disse-me que, enquanto eu estivesse aqui sentado, toda a humanidade que interessa conhecer viria ter comigo, mas que ele tinha boas pernas para percorrê-la até morrer…”
Há sempre alguém sentado numa paragem de autocarro, simplesmente porque estas não devem o seu nome ao acaso. Parar é render-se às evidências.
Sandra Pereira