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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

30
Nov12

Discursos sobre a cidade - Por António Tâmara Júnior


 

Os «desencontros» do Discurso sobre a cidade

 

Os leitores desta rubrica sabem da minha afeição por tio Nona.


Não são apenas as derivadas das relações de natureza familiar. Tem a ver também com a mesma visão das coisas, do mundo. O mesmo gosto pela vida. A mesma partilha dos autores de que gostam e lêem. Pelas mesmas correntes de opinião. Da crítica sobre a realidade e do mundo em que vivemos.


Apesar de toda esta cumplicidade, de tio para sobrinho, nem tudo é pacífico nas nossas relações.


É sabido o gosto de tio Nona pelos passeios pela natureza. Mesmo com uma certa idade, pois já algum tempo passou dos sessenta, no caminhar pelas veredas e caminhos vicinais das terras daquela que foi a nossa antiga Gallaecia, sinto que acompanho uma alma jovem, amante e respeitadora da natureza. Nela (na natureza) tudo o entusiasma; tudo o distrai; tudo é ensejo para me debitar oratória de exaltação deste nosso terrunho, quando o acompanho, e que tanto ama.


E, vejam só, agora deu-lhe na cabeça de, nos princípios do próximo mês, juntamente com alguns amigos, levar a cabo o Caminho de Santiago Primitivo, desde Oviedo até Santiago de Compostela, num total de, aproximadamente, 280 Km. 280 Km que não são pera doce. Veja-se, por exemplo, que têm de ultrapassar troços de grande altimetria, nas Astúrias, como os Picos da Europa.


Por isso, com afinco, prepara-se, mesmo com fortes críticas do seu «colectivo» familiar quanto ao empreendimento que quer levar a efeito. É que é tempo frio e o tio Nona tem problemas e sequelas relacionadas com problemas anteriores, cardíacos. Mas não ouve ninguém. Apenas atende aos conselhos dos seus médicos assistentes, nas partes que mais lhe convém. E não desiste.


Por isso, uma ou outra vez, lá o acompanho nas suas caminhadas de preparação.


Numa destas últimas, de chofre, e sem estar a contar com tal, dá-me um valente puxão de orelhas.

Em sentido figurado, claro!


Dizia-me ele:


- Então continuas a escrever para aquela rubrica «Discurso sobre a cidade» daquele teu amigo do blog «CHAVES»?


- Continuo, respondi-lhe. Vê nisso algum mal?


- Que escrevas? Não! A maior parte do que lá se escreve é que é uma treta.


- Uma treta?, retorqui-lhe já um pouco intrigado.


- Sim, uma treta, António. Já te deste ao cuidado de analisar todos os conteúdos daqueles «Discursos», inclusive os teus? Pareceis uns narcisos, deliciados apenas com a figura que representais no espelho que o blog vos oferece! Devíeis ter mais ciso, tino, e perspicácia. A maioria do que dizeis são lugares comuns. Ali não se vê qualquer finalidade activa e prospectiva que tenha efectivamente a ver com a nossa cidade, principalmente em termos de futuro. O autor do blog porque lhe pôs o nome de «CHAVES»? E porque pediu a meia dúzia de amigos ou personalidades para falarem (discursarem) sobre a (sua) cidade (de Chaves)? Presumo que o tenha feito com a preocupação de contactar diferentes pessoas para, em face das suas diferentes formações e experiências pessoais e profissionais, falassem sobre o que pensam da cidade, procurando encontrar, nos diferentes saberes e experiências, visão(ões)  para o futuro. Não seria? Ou será que também estou enganado sobre o «rapaz»?


Como não contava com esta conversa, de forma tão inopinada do tio Nona, enquanto ele parava para descansar numa íngreme subida, olhei para ele com um olhar confuso e estarrecido, talvez até agastado e com um certo azedume, pois, confesso, que me estava mordiscando o meu amor-próprio. Sem me deixar retorquir, de pronto, me diz:


- Não me olhes dessa maneira. Sabes muito bem que tenho razão, caramba! Tendes – se verdadeiramente “os” tendes no sítio -, de fazer daquele blog, que se diz «CHAVES», um verdadeiro fórum ou movimento de discussão sobre o futuro que queremos para a nossa terra, para a nossa cidade. Que é e já foi tão rica e importante para a história do país que nós somos. E, se não estou enganado, a maior parte das vezes, desde o autor do blog até ao mais humilde colaborador, só se escreve olhando simplesmente para o umbigo de cada um e não vão mais além do que às pequenas mundividências do dia-a-dia, transformando aquele meio numa pequena feira de vaidades. Saibam usar os meios e tecnologias de informação que a sociedade do conhecimento põe ao nosso dispor e alcance para transformarmos, para melhor, o dia-a-dia das pessoas, da terra e da cidade onde vivemos. E não me digas que não querem nada com a política, que não se querem meter em política. Caramba, António, mas se tudo é política, tudo diz respeito a política! Deixem-se de hipocrisias e farisaísmos! É discutindo politicamente a cidade, todos, que tudo começa a mudar, António! Saiam dos vossos casulos. Mostrem, na prática, que sois efectivamente cidadãos activos. Portadores de um discurso coerente, quer nas vossas vidas, quer para a vossa (nossa) terra. Demonstrando que há outra maneira de estar na sociedade e de fazer política, sem os militantismos cegos e as posições idiotas partidárias! Pensa bem nisto que te digo, rapaz! E se esse teu amigo achar que tudo está muito bem assim, então, aconselho-te, sinceramente, a que reflictas para que ele quer aberto aquele blog, e com aquela designação.


Perante aquele discurso, fiquei sem palavras, estarrecido, pois nem sonhava com esta sarabanda.

Obviamente que, no início, entendi a filosofia subjacente à nascença deste blog. Mas as palavras do meu velho tio Nona, questionando-me desta forma, confesso, que me inculcaram a dúvida (metódica) da necessidade de repensar, porventura profundamente, da necessidade de repensar, hoje, uma outra linha para este meio de comunicar, obrigando-nos, a todos, a recentrar o(s) discurso(s) bem assim a nossa participação como colaboradores.


E tudo isto não tem nada a ver com as eleições que estão aí a aproximar-se. Tem a ver com a cidadania. Activa. Actuante. Empenhada. Solidária com as pessoas e com os lugares. Comprometida.


Pela minha parte, caso assim se entenda, estou disposto a ajudar e contribuir para esta nova tarefa.


Efectivamente não me interessa quantos internautas entram no blog - qual Casa dos Segredos -, exibindo as estatísticas dos “mirones”.


Preocupa-me que Chaves tenha pelo menos um blog que reflicta, seriamente, sobre a sua cidade e do que desejamos para ela. Com efectiva e entusiástica participação dos cidadãos, amantes da sua terra e da sua história. E interessados na construção de um outro futuro.


Porque só assim, creio sinceramente, é que a classe política que temos se poderá vir a regenerar.


António Tâmara Júnior



30
Nov12

Pastel de Chaves Certificado com Indicação Geográfica


 

Hoje é dia de “Discurso Sobre a Cidade”, mas enquanto o discurso não chega, ficamos com aquele que hoje é notícia de primeira página nos dois semanários flavienses – O Pastel de Chaves – e tudo, porque segundo consta na notícia, no dia 14 passado foi reconhecido o seu registo, a nível nacional, como indicação geográfica, através de publicação no Diário da República.

 

Está de parabéns o pastel de Chaves pois este registo de Indicação Geográfica  é conferido a produtos que são característicos do seu local de origem, o que lhes atribui reputação, valor intrínseco e identidade própria, além de os distinguir em relação aos seus similares disponíveis no mercado.

 

Mas sobre o assunto “Pastel de Chaves” ainda virei por aqui outra vez, talvez ainda hoje se o “discurso” não chegar, ou então fica para amanhã.

 

E já agora, se está por cá (Chaves), festeje comendo mais um dos seus pastéis, nem que seja em honra daqueles que gostariam de o fazer, e não podem por serem flavienses ausentes e não se deliciem com os da imagem que vos deixo, que esses já foram comidos há muito e garanto-vos que estavam uma delícia.

 

Até mais logo.

29
Nov12

O Homem sem Memória (129) - Por João Madureira


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

129 – Mas o povo – qual vítima inocente do obscurantismo fascista que ainda se fazia sentir com o seu arzinho gelado do Larouco – não aderiu a tão grande ideia e resolveu fazer orelhas moucas. Por isso o José, mais a maioria dos seus camaradas, mesmo contra a sua vontade, tiveram de ir estudar. Não lhes restava outro caminho merecedor de ser seguido. A não ser que tencionassem dedicar-se ao exercício do operariado, coisa que, convenhamos, teoricamente até era sedutora, mas, na prática, fazia calos grandes e robustos.


No primeiro dia de aulas, um dos rituais que o José praticava com enlevo e prazer consistia em juntar-se à malta da sua turma e irem pedir horários pelas diversas livrarias da cidade.


O dia iniciava-se com a visita ao Liceu, onde se encontravam os colegas do ano anterior, se visualizavam os horários da turma colocados nas portas das salas e se preparavam as tesouras com que se faziam as coroas aos caloiros. O que resultava numa luta encarniçada entre os alunos mais velhos e os iniciados que choravam baba e ranho vendo-se impotentes nas mãos de uns jovens bárbaros e sedentos de vingança por aquilo que lhes tinham feito a eles nos momentos da sua iniciação estudantil.


Enquanto uns agarravam nos rapazes mais novos como quem agarra num cordeiro para o tosquiar, ou capar, o líder do grupo munia-se da sua tesoura das unhas e desenhava e cortava na coroa da cabeça dos mais pacatos, um círculo do tamanho de uma moeda de cinco escudos, ou, no cocuruto dos desconhecidos ou mais arrebitados, fazia surgir uma enorme coroa do tamanho da que Santo Antoninho exibia risonho no altar lateral da Igreja Matriz.


A seguir iam ao Faustino, ou ao Jorge, onde emborcavam cálices de aguardente ou jeropiga e fumavam cigarros avulsos, os chamados mata-ratos ou cabeça atada. Os rapazes mais ricos botavam figura chupando o fumo através dos filtros dos seus SG, Estoril, Três Vintes, Ritz, CT, Porto ou Negritas. E os remediados atreviam-se a comprar um macinho de Kentukys, Provisórios, Português Suave ou Definitivos, nas costumeiras casas de tabaco, tascas ou similares espalhadas pela urbe, e jogavam ao sapo enquanto falavam alto e se riam como tolos.


Por volta do meio-dia, iam postar-se nos bancos do jardim das Freiras, onde, por entre assobios, dichotes e piropos, galavam as miúdas mais jeitosas a quem, num dia de maior oportunidade, talvez se atrevessem a pedir namoro.


Muitos deles, por não fugirem a tempo depois do roubo de flores com que presenteavam as eleitas dos respetivos corações, chegavam a alombar com o cabo do ancinho do jardineiro efetivo que era mais raivoso do que um cão de quinta quando se tratava de defender as flores que alindavam o seu jardim e que tanto trabalho lhe tinham dado a plantar, regar e velar.


Mais lá para a tarde iam até ao picadeiro jogar à bola numa disputa que quase sempre – e não dizemos sempre para não nos acusarem de exagerados – acabava em batalha campal, onde se distribuía porrada indistintamente entre jogadores e assistência.


Jogo que não acabasse com umas canelas partidas e uns olhos à belenenses, não era jogo nem era nada. E tudo isto porque, como ninguém se oferecia para fazer de árbitro, pois os dois últimos tinham acabado no hospital com as costelas fraturadas e os respetivos narizes partidos, como se tivessem acabado de sair de um ringue de boxe, a missão ia sendo assumida pelos respetivos capitães, ou, quando já não era possível, por causa da efetiva e tenaz contestação da equipa contrária, o líder do grupo passava essa responsabilidade ao jogador que estivesse o mais longe possível do lance para assim servir de testemunha imparcial.


Toda esta situação era sustentável enquanto o resultado do jogo se mantinha empatado, ou apenas o marcador registava quatro ou cinco golos de diferença, mas quando a distância começava a ser superior, inviabilizando praticamente a recuperação, as faltas contra a equipa ganhadora tendiam a tornar-se permanentes, com os jogadores sempre a deitar-se ao chão, a ganir como cães pontapeados, a pedir falta atrás de falta, o que exasperava os ganhadores e, após mais um livre, menos um canto ou a marcação de outro penalti, que seguido de golo era golo, o jogo de futebol findava mesmo antes do seu término normal.


Depois da confusão, e das cenas de pancadaria, cada grupo rumava aos seus lugares de estágio – que eram quase sempre uma das muitas tascas e casas de pasto que pululavam pela cidade –, e aí comiam e brindavam à respetiva vitória, pois era certo e sabido que naqueles jogos entre equipas de estudantes dava-se sempre um milagre.


Nunca nenhuma das duas equipas perdia, o que até podia ser estranho mas não era impossível, só que o milagre residia precisamente em que triunfavam sempre ambas. Uma porque mesmo tendo marcado menos golos, ou os mesmos, eram eles todos legais (e o contrário para a equipa rival), e a outra porque, mesmo tendo efetivamente introduzido a bola mais vezes na baliza da equipa adversária, os golos que majoravam a contagem e definiam o autêntico vencedor, tinham sido marcados irregularmente, ou em fora de jogo ou precedidos de falta como uma casa, e por isso tinham sido penaltis, que mesmo falhados tinham sido golos à mesma, porque às faltas apitadas pelo putativo, e rotativo, árbitro de serviço ninguém tinha dado ouvidos e marcado golo, pois, como todos bem sabiam, penalti seguido de golo é golo (e o oposto para a equipa rival), ou coisa pelo estilo, pois a confusão era tanta e os respetivos argumentos a favor e contra tão diversificados e intrincados que atinar com alguma lógica era uma impossibilidade. O princípio era o da negação do capitalismo e da afirmação do socialismo: não a cada um segundo a sua eficácia, mas antes a cada um segundo a sua necessidade. Como todos precisavam teoricamente de golos para ganhar, cada um colhia-os onde queria, ou podia.


Descontados os golos irregulares, a conta batia sempre certa e a respetiva equipa podia assim arrecadar mais uma saborosa e árdua vitória (e o contrário para a equipa rival).


Mesmo que um jogo acabasse sem golos, o que muito poucas vezes acontecia, pois as caneladas eram imensas, os empurrões às centenas e os murros aos milhares, pois, como vos íamos dizendo, no final os guarda-redes pegavam nas bolas à sua guarda e, enquanto a equipa principal, incluindo os suplentes, as respetivas famílias e conhecidos, andavam à porrada até se cansarem, iam sorrateiramente pelas bordas do campo até à baliza adversária e marcavam três ou quatro golos sem ninguém ver, mas que efetivamente contavam, porque a bola tinha mesmo atravessado a linha de golo da baliza adversária (e o avesso para a equipa rival).


Que fosse o guarda-redes a marcar não interessava, pois os golos dos guarda-redes valem tanto como os dos outros. Essa é que é essa. E o invés para a equipa rival.

 

130 – O José, mesmo não tendo muito feitio para o futebol, não podia ...

 

(continua)

 

28
Nov12

Chaves em duas imagens


 

Hoje deixo-vos duas imagens de marca para flavienses, a primeira, penso que para todos, a segunda para alguns, mas que estou certo marcou todos os que por lá passaram.




Outras das marcas que sorrateiramente faz questão de ficar em muitas fotografias de Chaves (nas duas de hoje, por exemplo) é a Serra do Brunheiro e, por mim, que apareça sempre que quiser, pois também ela faz parte do meu ser flaviense, além de, quase desde sempre, ser uma das minhas companhias de proximidade.



27
Nov12

Pedra de Toque


 

 

Fraco é o homem…

 

Desapareceste, subitamente.


Deixaste-me, sem mais.


Foram as sardas num rosto tisnado de uma adolescente com quem me cruzei, que me lembraram a tua fuga, a nossa estória.


Na altura, e já lá vão muitos anos, abateu-se sobre mim uma tristeza profunda.


O dia escureceu. A lua minguou.


Fiquei doente e só com ajuda, saí lentamente da turbação em que caíra.


Julgo que foste a primeira mulher de quem gostei.


A primeira que mereceu  minha paixão.


Os teus olhos muito abertos que adivinhavam os meus pensamentos e segredos, a lisura da tua pele em todos os recantos e a tua boca, sobretudo o sumo que nela bebia, a minha seiva.


Com a tua inesperada partida provocaram doloroso abatimento de que ainda hoje momentaneamente sofro, sempre que me apareces à tona no rio da minha memória.


Um bom amigo, sabedor desse amor apodou-me de fraco pelo desassossego sofrido em que me afundara.



Esbocei um sorriso de lástima e para dentro de mim gritei.


Fraco é o homem que não ama.


Soube, bastante mais tarde, que grave doença te levara para sempre.


Nesse dia em silêncio rumei ao jardim onde nos abraçamos, onde trocamos beijos infindos, onde por milagre o amor aconteceu e aí, com a sua respiração funda nos meus ouvidos a percorrer-me o corpo todo, deixei flores brancas que levei e apesar de não saber rezar, inventei uma oração onde te perdoei todo o mal e pedi aos deuses religiosamente para te proporcionarem paz e serenidade.


As únicas testemunhas deste gesto solitário foram os frondosos amieiros que choravam sobre o Tâmega.


No regresso em surdina repeti vezes sem conta.

 

Fraco é o homem que não ama!…


 

António Roque



26
Nov12

Quem conta um ponto...


 

Pérolas e diamantes (13): cogumelos, amigos e hífenes (ou hífens)

 

Ora vamos lá por partes. Desta vez pretendemos começar pelos achados. Não pelos candidatos a autarcas perdidos, nem pelos candidatos a autarcas achados, mas sim pelos cogumelos que o senhor José Alves descobriu lá para os lados de Ferral.

 

O valente barrosão deparou-se com um cogumelo que pesava um quilo e quatrocentos gramas. Homem acostumado a estas azáfamas afirmou, espantado, que nunca na sua vida tinha enxergado coisa igual, um cogumelo tão grande. De facto é um achado estranho. Disse-o ele e dizemo-lo nós. E também o expressaram todos quantos viram o cogumelo gigante.

 

O senhor José Alves considera que é importante mostrar às pessoas que as terras do Baixo Barroso são férteis. Parece que por aquelas bandas há muita coisa do género, mas em pequena dimensão. Segundo o feliz apanhador de cogumelos, o enorme fungo comestível vai dar umas “tainadas” jeitosas, cozinhado com bocados de presunto entremeado.

 

Em Vila Pouca de Aguiar, depois do início das chuvadas passageiras do outono, cerca de três mil pessoas iniciaram uma corrida aos cogumelos em diversas manchas florestais do concelho. Cerca de meia centena são apanhadores comerciais.

 

Segundo veio nos jornais, a quantidade de cogumelos recolhidos pode atingir as quatro toneladas e render cerca de quarenta mil euros por época. E a escolha é diversa. Pode ser o popularmente conhecido como frade ou roque (“macrolepiota procera”), o nosso conhecido tortulho (“tricholoma esquestre” e “tricholoma terreum”), o distinto níscaro (“boletus edulis” e “boletus pinophilus”), a modesta sancha (“lactarius deliciosus”), a aprazível língua de vaca (“fistulina hepática”) ou o trivial cantarelo (“cantharellus cibarius”).

 

Têm os estimados leitores de convir que até os nomes científicos dos cogumelos são graciosos e agradáveis, quase tão saborosos como os próprios míscaros que guisamos com carne e comemos à mesa aquecidos por uma boa lareira e por um tinto de Valpaços.

 

Ora pronunciem comigo em voz alta: “macrolepiota procera”. E repitam “ma-cro-le-pi-o-ta pro-ce-ra”. [E desculpem lá a hifenização. Sei que os hífenes, (ou hífens, escolham à vontade) pelo menos estes, não fazem parte das palavras do latinório científico. Limitei-me a utilizar estes tracinhos pequenos para dividir as duas palavras em sílabas. Mas se não estiverem conforme a lei, conformem-se, pois eu esmifro-me tanto, mas mesmo tanto, a pensar no que os outros pensam acerca do que eu penso que não só me atrapalho a teclar nas teclas como dou volta ao teclado e teclo tantas vezes no hífen que me atrapalho no travessão e “estouque” me atrapalho tanto que chego a atrapalhar o estimado leitor, ou leitora.]

 

Veem que bonito. Bonito e erudito. Em vez de dizerem que cearam tortulhos, e sem tracinhos, experimentem explicar na vossa roda de amigos, ou conhecidos, que ao jantar saborearam uns “tricholomas esquestres” e “tricholomas terreuns”, libertos de toda a hifenização, por isso mesmo saborosíssimos, e vão ver que eles, os vossos amigos, não os cogumelos, e muito menos os hífenes, ou hífens, ou tracinhos, pois para o caso tanto monta, porque não se manducam, além de ficarem a salivar como o cãozinho de Pavlov, passarão a admirar-vos ainda mais pela vossa graciosa sapiência. E também porque não são ingénuos ao ponto de deglutirem os hífenes (bifes?) como o cão fazia aos tracinhos (ossos?). Se é que lhos davam, claro está.

 

E a seguir podem diversificar, explicando, por exemplo, que lancharam umas atraentes “fistulinas hepáticas” panadas com pão ralado ou com omelete de ovo de galinha garnisé. Se por lá estiver alguém que sofra do fígado, evitem pronunciar o termo “hepática” que pode levar à indesejável associação com a doença e estragar de imediato o efeito surpresa e a digestiva conversação. Podem limitar-se a utilizar apenas o termo “fistulina”.

 

Para prolongar o efeito, e os convivas não se aperceberem de que os estimados leitores apenas pronunciaram a primeira parte do nome científico do cogumelo, pois, de certeza que já descobriram que têm sempre dois, digam, simplesmente, que degustaram umas “fistulinas” embebidas em ovo de galinha garnisé. E se algum deles, mais atrevido, perguntar “fistulinas” quê?, para se dar ares de entendido, respondam-lhe dividindo a palavra “fistulina” em sílabas para colocar a esperteza do insolente no seu devido lugar. Tipo: Não percebeste? Eu torno a repetir: “Fis-tu-li-na”, (e ainda mais devagar) “fis-tu-li-na” embebida em fina e amarela omolete de ovo de galinha garnisé. Entendeste agora direito ou queres que te faça um desenho? Aqui chegados, podem ter a certeza de que o atrevido já meteu a viola no saco.

 

Por exemplo, eu, por altura dos Santos, em amena cavaqueira com alguns amigos que já não via há muito tempo, e que por acaso até estavam com outros amigos que presentemente estão ligados à política, experimentei dar um arzinho da minha graça e, para fazer conversa e ficar bem visto por gente tão distinta e ilustre, pois os meus amigos que por cá encontro nos Santos são todos ilustres e distintos, daí o conhecerem políticos, mas, como ia dizendo, experimentei pôr cara de entendido e, enquanto eles falavam de marisco, champanhe, bifes, hífenes, caviar, salmão fumado e bombons, eu, mais terra a terra, e para não me ficar atrás, pois já me basta ter quedado a penar aqui pela província enquanto eles se pavoneiam pelas distintas metrópoles lusitanas, introduzi na conversa, com o meu ar de transmontano de província que não saiu da província e por isso mais provinciano é, os cogumelos. E fi-lo do jeito que vos passo a contar.

 

Com um ar entre o indiferente empenhado, tipo o nosso estimado vice(hífen)presidente António Cabeleira, e o jovial insonso, género o do senhor presidente fantasma João Batista, olhei para o grupo e disse com o ar mais casual possível: «Ontem à noite entremeei umas “macrolepiotas proceras” que me souberam pela vida. Pu-las nas brasas até ficarem no ponto, polvilhei-as com umas pedrinhas de sal grosso, reguei-as com um fiozinho de azeite e estendi-as virtuosamente numa travessa muito antiga que a minha avó me deixou. Numa frigideira, também das antigas, fritei um pouco de presunto, cortei pão centeio às rodelas, enchi uma caneca de vinho e, sentado no escano e de pernas abertas para a lareira, ceei como já o não fazia há alguns dias.»

 

Bem, eles olharam para mim com um ar tão guloso, mas mesmo tão guloso, que até me deu pena. Claro está que apesar de se alimentarem de coisas finas e boas, quando ouvem falar de presunto, de pão centeio e de vinho tinto da região, acende-se-lhes um desfastio no estômago que se transmite aos luzeiros, pois ficam logo com uma claridade nostálgica que dá aflição. Claro que, apesar de conhecerem os frades, ou roques, ou rocas, não sabem o que são “macrolepiotas proceras”. Mas como são do tipo orgulhoso, também não perguntam. Ninguém gosta de dar parte de fraco. Muito menos eles que são cultos até dizer chega. Só que ninguém sabe tudo.

 

Como os vi tão ougados como crianças, mas tão altivos como o Pedro Passos Coelho que é incapaz de, mesmo tendo a plena consciência de que a sua política falhou, reconhecer que errou e arrepiar caminho, resolvi levar o meu exercício mais longe e, à minha maneira altruísta, pus-me com a seguinte conversa: «Hoje vou preparar uns “boletus edulis” e uns “boletus pinophilus”, com carne de javali. Tudo no pote. Vou acompanhar o petisco com batatas barrosãs e tinto de Barreiros. Requintes destes só cá na terra é que se encontram. Eu misturo os “boletus”, porque os “edulis” têm um travo mais espontâneo que os “pinophilus”, que são mais suaves. Dos dois sabores combinados, resulta um terceiro que é uma magnífica síntese entre a natureza e a cozinha tradicional. Há muita gente que gosta de misturar sabores. Enfiam tudo dentro da panela e depois comem à bruta. Mas a verdade é que, por exemplo, os “cantharellus cibarius” não ligam muito bem com os “boletus”, especialmente com os “boletus edulis”, pois intensifica-lhes o sabor agreste. Por isso, devem misturar-se com os “boletus pinophilus”, ou com os “tricholomas”, de preferência o “tricholoma esquestres”, pois os “tricholoma terreum” também têm tendência a acidular um pouco a mistura.»

 

No fim da preleção, os meus amigos mais amigos, riram-se e os outros riram-se porque viram rir os primeiros. Já os nossos amigos políticos, ou afins, riram-se porque é o que costumam fazer por tudo e por nada. Menos o nosso vice(hífen)presidente da câmara, honra lhe seja feita, que apenas sorri quando a sua assessora de imagem lho pede lembrando-lhe que quando a sua cara sai a ilustrar as notícias dos jornais tem de estar sorridente.

 

E tudo isto porque depois dos cogumelos vos queria falar de nabos e, por junto, dos motivos porque quatro presidentes em fim de mandato já andam a lutar para ver quem se vai sentar na cadeira do poder que o Relvas lhes está a aprontar. Mas como a crónica já vai adiantada, fica para a semana.

 

 

PS – Por favor, senhor presidente, apareça. Olhe que continuamos impacientemente à sua espera.



24
Nov12

Pecados e Picardias - Por Isabel Seixas


 

Doí-me a alma

Chaves às vezes é mais longe

 

E Sempre achei o ouro frio

 

O sr… angustiado, pede ó se pede, com o desespero da quinta vez que veja o que podemos fazer…

 

A médica de família há muito que lhe disse, o que ainda lhe parece mais, que o seu problema é grave …

 

Que fazer então não tendo 5000 euros para ser operado de urgência numa “ordem” ou hospital privado?

 

Esperar… Exato esperar…

 

Esperar que a exposição da medalha de ouro reduza a lista de espera desde junho, esperar que o cancro espere, esperar que os que também esperam tenham a sua vez;

Esperar…

 

Mas a depressão não espera e a ideia recorrente de morte por desesperança é mais forte que o cancro, corrói mais,  e os olhares de desalento de quem já não consegue dar respostas também não ajudam…

 

E, a medalha de ouro serviu a quem?!...


Naquele tempo, naquele contexto, serviu… Mas agora, neste tempo, neste contexto…


Tirem-na por favor, dói menos, talvez exposta numa qualquer parede na capital de distrito…

 

E … Há tantas lojas de penhores…

 

Sra. Enfermeira ajude-me por favor…

 

Tenho consulta lá, é tão cedo às oito e meia da manhã e é tão tarde há mais de um ano que estava à espera mas o transporte é  tão caro…

 

Talvez os G6 consigam alguma celeridade dos processos de regionalização na saúde, aumentando a possibilidade aos eleitores de terem direito à saúde na sua globalidade…


Talvez os G6 consigam …


Porque sim e até porque até prova em contrário, todos  os elementos do G6 têm próstata…

 

Sra. Enfermeira ajude-me por favor…

 

E a unidade local de saúde que não sai!...


 

Isabel Seixas



23
Nov12

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


 

Os espíritos do forno do Có

 

Em Trás-os-Montes, mesa de pobre ou mesa de rico tem de ter, obrigatoriamente, pão de centeio e isto desde que o homem é homem. E já agora, batata também. Do altiplano dos Andes, o tubérculo chegou para cá do Marão, somente em finais do século XVI. No seu lugar esteve a castanha, esse fruto divino com que o castanheiro nos prenda no arreganho do ouriço. A própria bolota, não a que ceva o porco preto alentejano que é de sobro, mas a que cria o carvalho negral das nossas touças, depois de seca e moída, arremedava a farinha centeia, nos períodos de maior fome. Então, primeiro a castanha, depois a batata e sempre o pão de centeio, foram a base da alimentação das nossas gentes ao longo dos séculos.

 

O grão – e nem é preciso dizer que é do centeio – espargido por essas courelas mirradas, pouco antes dos Santos, germinava, medrando-lhe a palha amaciada pelos nevões. Maduro, pelo alvor do verão era segado, arrumado em pousadas, acarretado, emedado e depois solto da espiga, à força do malho, nas eiras de pedra - alisadas e calafetadas com bosta para que nada se perdesse - por homens fortes, escravos do trabalho de sol a sol. Limpo das arganas pelas brisas das tardes de julho, o centeio era varrido e metido em sacos de serapilheira que depois eram vazados nas caixas do grão. À mistura com o centeio, encafuava-se alvezes a fruta verde para que amadurecesse e as chouriças para que não mirrassem. Ao longo do ano e conforme a precisão, o cereal era recolhido pelo moleiro e moído nas azenhas do Tâmega, ou nas dos ribeiros seus afluentes. O moleiro fazia a ronda pela clientela das aldeias, carregava os coleiros na albarda das bestas de carga, cingia-os com cordas esticadas pelos arrochos e dias mais tarde devolvia a farinha, subtraída, bem entendido, da maquia para seu governo. Esta, depois de peneirada, apartada portanto do farelo que cevava os recos, era misturada com água quente salgada e com o fermento, colhido dum pequeno alguidar de barro de Nantes que tinham deixado cheio, por obrigação, da massa já levedada da fornada anterior. A pasta, depois de bem revolta e batida na masseira, muitas vezes enriquecida até com o suor da testa da amassadeira, que dava ao pão paladar idêntico ao de Padornelos, cuja farinha recebia os aromas do suor do jerico que a carregava em pelo, ia a levedar embrulhada em panais brancos, o mais das vezes de linho. Como soi fazer-se ainda quando se tende, ao dividir a massa em bocados, que serão os pães - note-se que resisti à tentação de lhes chamar boroas – era lavrada uma cruz em cada um e botada a seguinte reza:

 

São Vicente te acrescente

São Mamede te levede

São João te faça pão

pela graça de Deus e da Virgem Maria

um Pai-nosso e uma Avé-Maria.

 

O forno, previamente aquecido pelas labaredas das fronças da giesta branca, estaria pronto a cozer quando o tijolo burro ficasse esbranquiçado. Desviava-se o brasume para as bordas, ranhava-se o forno com um lareiro de ferro, puxava-se algum do borralho para a porta e enfornava-se o pãozinho, com três cruzes feitas com a pá na porta do forno e mais outro dezer sagrado:

 

Cresça o pão no forno

e os bens p´lo mundo todo

paz e saúde ao seu dono

pela graça de Deus e da Virgem Maria

um Pai-nosso e uma Avé-Maria.

 

Duas horas passadas e a forneira tirava o primeiro pão. Batia-lhe com a mão no fundo, como quem toca o adufe e soando a pão cozido desenfornava. O cheiro da fartura enchia o forno e o pão, arrefecido, seguia de giga para a galheira.


Na maioria das aldeias transmontanas, sobretudo nas barrosãs, havia um forno único para serventia de toda a povoação, era o forno do povo. Lugar mítico, tão importante - às vezes mais - do que a própria capela, servia de espaço de convívio ao nível do barbeiro ou da taberna. Aí conversava-se, namoriscava-se, conspirava-se, punham-se uns na lama e outros nos cornos da lua, enfim emprestava-se verdadeiro sentido à vida comunitária. O forno servia até de albergue para almocreves, vadios e miseráveis pedintes que esmolavam de lugar em lugar. Contudo, nem todas as aldeias transmontanas tinham forno do povo. Em Outeiro Seco, por exemplo, não se conhecia esta tradição, o que não quer dizer que não se cozesse o pão, pois também ali é dele que o homem vive. Não sei se por mor de se tratar de uma aldeia da ribeira, mais mimosa do que as de riba, se por outra qualquer razão, o forno do povo, era aqui substituído por muitos fornos de propriedade privada. Claro que nem todas as casas o avezavam. Quem não o tivesse, para cozer, tinha de contratar o serviço aos proprietários, os forneiros, em contrapartida de uma determinada paga. Estes aqueciam o forno, com a lenha fornecida pelo dono da fornada, amassavam a farinha, tendiam e enfornavam o pão.


Nesta povoação de Outeiro Seco havia, como disse, diversos fornos. No bairro do Eiró, os do Joaquim Félix e da Delfina Carreira, no do Penedo, o da Antónia Sanches, um forno muito requisitado, que esteve até na razão da atribuição da nomeada a seu filho José, ainda hoje conhecido como o Zé do Forno. Curiosamente, no do Papeiro, um bairro tão azadinho, não havia qualquer forno. Os seus moradores tinham de recorrer aos dos outros bairros. O mais usado por estes moradores, quiçá por razões de proximidade, era o da Delfina Carreira. Contudo, o bairro do Pontão, talvez por ser o mais populoso, era o que detinha o maior número de fornos. Os mais populares eram o do Canelhas, também conhecido por forno da Tenreira, por a forneira ser a Maria Tenreira, esposa do Canelhas, originária de Vilarelho da Raia, e o do Có, assim conhecido por causa de uma desgraça que ali ocorreu e que passo a contar.

 

Este forno foi desde os igrejos avós propriedade da família Merceana. Pertenceu, em tempos, à Teresa Merceana, que se finou, inexplicavelmente, ainda jovem. Solteira e diz-se que ainda virgueira, faleceu sem descendência, pelo que o dito cujo passou, por herança, para a sua irmã Rita Merceana, casada com Adriano Lara. Durante muitos anos este cadinho do pão foi explorado, em regime de concessão, primeiro pela família Agrela, e mais tarde por Maria Mafalda. Por se situar no centro da povoação, junto ao largo do tanque, espaço nobre da aldeia, onde paravam os forasteiros, o forno fazia as vezes do forno do povo, pois para além de cozer, também servia de poleiro aos pedintes e aos sem-abrigo que mendigavam de terra em terra e que por ali pousavam com alguma regularidade. Nas noites de carambina, esta gente sem eira nem beira, procurava o conforto do calor do forno, nunca negado pela forneira e que tantas e tantas vezes, inclusivamente, lhe aconchegava o bucho com uma côdea ou um cibo de bôla de carne, por alminha de quem lá tinha.

 

Um desses mendigos que regularmente aparecia por lá, diziam que vindo dos cornos do Barroso, ainda que, de certezinha, tivesse nome de batismo, era conhecido na comunidade pela nomeada de Có. O epíteto designava alguém pouco expedito, lerdo da memória, taralhoco no jeito e na fala, que não fechava bem a gaveta, enfim, maluco, na fala do povo que é a que mais nos interessa. Talvez até fosse esta a razão que o impedia de dobrar a espinhela sobre a rabiça do arado. De facto, não servia para assucar uma terra, aricar uma leira de pão, ou até sachar umas batatas, ou um milho que fosse, pois em vez de mondar os sinchos, tolhia as perneiras. Nem mesmo era homem para botar o gado ao monte ou ir cá botá-lo, pois até os irracionais lhe percebiam a falha e desinvestiam giestais adentro, nem precisando de estar com a mosca. Muito menos servia para segar pão. Metessem-lhe uma ceitoura na mão, para não falar dum gadanho afiado, e a cada investida da destra, mesmo com dedeiras, ficaria sem seu dedo da sinistra. Para que vejam, um dia tentou segar, à ajuda, um cesto de erva numa lameira. Se uma vaca parida, que ali pastava sossegada, não se pusesse fina, teria sido ceifada pelas canelas à investida descontrolada da gadanha. Uma desgraça este Có! Servia apenas para mendigar e para os lafraus se divertirem atazanando-lhe a alma pelos lugares.

 

Um dia farrusco, pelo Entrudo, respirava-se, mesmo na veiga, um ar ártico a adivinhar nevão taludo. Se ali era assim, imagine-se o que seria nos altos!.. O Có, para fugir a este inferno barrosão, desceu à ribeira e pousou, uma vez mais, em Outeiro Seco. Chegou pelas ladainhas, já a Maria Mafalda havia enfornado as últimas quinze bôlas das três fornadas que cozera nesse dia, claro para poupar nos guiços - economias de escala à moda do povo! - ora, como dizia, depois da última fornada e enquanto aguardava que o forno arrefecesse, o Có, rilhava um carolo de pão que por misericórdia lhe haviam oferecido. Quando ficou só e vendo a sua boa, encafuou-se, como sempre fazia, dentro do forno para melhor se abrigar do briol. O pobre, era useiro e vezeiro nesta façanha, mas como diz o povo, tantas vezes foi o cântaro à fonte que desta vez deixou lá a asa! O Có, dormia a sono solto e na paz dos anjinhos. Aconchegado pela irradiação do refratário, ressonava regalado. Pela madrugada, meia dúzia de gabirus, após um serão bem bebido de chincalhão, decidiram pregar-lhe um susto. Não é que lhes dá o dianho para tapar a entrada do forno com a porta de chapa! E como se não bastasse, ainda calafetaram as frinchas com a bosta de um caldeiro que tinha sobrado da última fornada do dia. Claro, saiu-lhes a porca mal capada! O que pretendiam que fosse uma brincadeira, pese embora de mau gosto, transformou-se numa tragédia: o Có acordou morto, estrezicou por asfixia! Quem o descobriu foi a Mafalda, pela manhã, quando abriu o forno. Como o infeliz não tinha família, nem quem o chorasse, ninguém reclamou justiça. Assim, o caso, embora configurasse homicídio, acabou impune. Nunca se soube mesmo, quem verdadeiramente tinha sido responsável por aquela desgraça. Por via disso, desde aquela ocasião, o forno passou a ser conhecido por forno do Có.

 

Não sei se me finte, mas diz-se em Outeiro Seco, à boca pequena, bem entendido, que o espírito do infeliz ficou aprisionado naquele forno e por vingança, doravante, embezerra todo o pão que lá se coza!

 

Este forno esteve ainda ligado a outro acontecimento fantástico, relacionado com um mendigo das bandas do Vidago de seu nome Procópio Fina. Este infeliz, além de desafortunado, ainda era apoquentado – dizia-se – pelo espírito de um homem, que teria deixado uma promessa por cumprir e que foi morto pelo couce do cavalo dum militar francês, na segunda invasão em 1809 e que Soult fez entrar por Chaves.

 

Permita-se aqui um parêntesis sobre este mistério dos espíritos:

 

Apesar de haver uma grande contradição no seio da igreja católica sobre esta temática dos espíritos e das almas do outro mundo, algumas delas penadas, o certo é que a Bíblia contém variadas passagens considerando a sua existência. Uma delas é a missão dos doze, ou seja a missão atribuída por Jesus aos doze apóstolos e que diz o seguinte:

 

Jesus enviou estes doze apóstolos, depois de lhes ter dado as seguintes instruções: Não sigais pelo caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Ide, primeiramente, às ovelhas perdidas da casa de Israel. Pelo caminho, proclamai que o Reino do Céu está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento. (Missão dos Doze (Mc 6,7-11; Lc 9,1-6; 10,1-11)

 

Pois bem, nas suas várias passagens pela aldeia, Procópio também se albergava nesse forno do Có. E sempre que lá pernoitava era assaltado pelo tal espírito, que diziam revelar-se de forma bizarra: primeiro Procópio desmaiava e seguidamente entrava em transe como se estivesse de fuzil em punho, esfaimado, a defender a fronteira de Vila Verde da invasão napoleónica. Era um espetáculo gracioso, bem sei que triste, mas o povéu não perdia pitada e mal soubesse da chegada do Fina, juntava-se no forno para o circo!

 

Será a atração, fatal, que o povo tem pelo que não sabe explicar?

 

Tal facto trazia Outeiro Seco em polvorosa. Foi graças aos dotes da tia Ana Moucha, perita nestes entendimentos, que uma das noites, com as rezas e as mezinhas da praxe, puxou pelos espíritos e conseguiu, para espanto de todos, que a voz da alma penada, usando a gola do Procópio, declarasse, em tom horrendo, andar a penar neste mundo por causa do incumprimento de uma promessa ao bendito São Caetano. Simultaneamente pedia comida e ameaçava.

 

– Dai-me de comer ou matarei este homem – e aquela voz de besta fera, saída das parafundas do inferno, repetia o pedido vezes sem conta.

 

Alguns vizinhos, tralhados de medo, mas piedosos e tementes a Deus, talvez para ganharem indulgências da senhora da Azinheira, benziam-se e rezando o Ato de Contrição, acudiam com pão, lascas de presunto, chouriços, linguiças, vinho fino, folar, se era tempo dele, enfim com o que tinham de melhor para apaziguar aquela alma do cabrunco! E o pobre lá comia regalado o que lhe davam. A voz do chifrudo ia abrandando à medida que o fole do pedinte se ia enchendo, até que parava e o possuído dava de si. Isto repetia-se quase todas as noites da sua estadia em Outeiro Seco. Contudo, a cena começou a inquietar alguns mais céticos que não compreendiam porque é que aquele espírito, excomungado, punha o esmoleiro a comer à tripa forra, mas somente peguilhos!

 

– Olha que p’rá lavadura do caldeiro não vira ele os cornos! – diziam alguns mais hereges.

 

Este espírito malévolo que custava mais à aldeia do que ao próprio mendicante, precisava de ser exorcizado. Daí que um grupo de jovens tesos, composto pelo António Salgado, o António Castro e o Augusto dos Santos, decidisse levá-lo ao São Caetano, para que de uma vez por todas, a alma inquieta largasse aquele corpo e se consumasse o seu descanso eterno.

 

Assim fizeram.

 

Num dia de canícula em finais de julho, antes mesmo do galo cantar, e ainda que não fosse o dia da festa daquele santinho, advogado das coisas más e dos males desconhecidos, a qual se faz no segundo domingo de agosto, os três farsolas montaram o mendigo no Lidador, jerico da tia Ana Barroca, mãe do António Salgado, e lá foram pelo antigo estradão da Torre, até ao bendito santuário milagreiro.

 

Logo que iniciaram a jornada, depararam-se com um constrangimento sério. O mendigo, pouco habituado a montar, não se segurava na albarda. Para ultrapassar essa situação, desarrearam o jumento que ficou em pelo e sentaram o Procópio no seu dorso, atado com uma soga, como se de um molho de carqueja se tratasse. O jerico estava magro como uma cancela e a espinha sobressaía-lhe tal qual os dentes de um traçador!

 

A viagem, pela senda de Ervededo, durou para lá de duas horas. Chegados, deram duas voltas à capelinha e mais três ao santuário rezando as orações exorcistas que a tia Moucha havia encomendado. Cumprido o desejo, o espírito ausentou-se da carcaça do pedinte, agradecendo a libertação com estrondosos e arrepiantes urros. Deixando no ar um estoiro de morteiro e um cheiro acre a enxofre estonado, garantiu-lhes que a partir daquele dia ficaria em descanso eterno. Como de facto!

 

Cumprida a promessa e depois de uma última espreitadela pelo janeluco da capela para se despedirem do santo e lhe agradecerem, matabicharam ganhando forças para o regresso. Chegando à aldeia, os populares ficaram curiosos por o pobre pedinte vir atado ao burro daquele jeito, mas logo quiseram saber como correu a promessa. Contados todos os pormenores, a satisfação foi geral, pese embora a cerúdia que tiveram de colher pelas paredes da aldeia, para curar o rêgo do Procópio que vinha em carne viva de tanto roçar na dentadura do serrote!

 

Se foi por graça do São Caetano, das rezas, ou da provação do infeliz pedinte, não sei. Sei é que ficou livre, doravante, de tais achaques e não mais careceram de o presentear com os mimos de Outeiro Seco. Nunca mais se viu por lá, não fosse, de novo, obrigado a esfolar o cerejo no lombo de um outro jumento escanzelado.

 

Fosca-se!..


Para terminar, permita-se-me uma divagação mal amanhada:


Estou que o espírito que se meteu no corpo do Procópio não seria verdadeiramente o do escoicinhado pelo cavalo do soldado francês, mas o do Có. Quem sabe se para se vingar de forma ainda mais bizarra?

 

Que outras surpresas reservará Có para os de Outeiro Seco!.. ponham-se a pau!


 

22
Nov12

O Homem sem Memória (128) - Por João Madureira


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

128 – Ora aqui estamos de novo para vos dar conta da tal conversa filosófica. E até algo mais, se for necessário.


Depois de enfiarem os pincéis nos baldes e de recolher nas respetivas latas a tinta que sobrou, dirigiram-se ao Centro de Trabalho e aí encontraram o funcionário comunista colérico porque tinha acabado de ser informado que um bando de rapazes encapuzados tinha vandalizado todos os cartazes do Partido. O José lembrou-lhe que também os cartazes dos outros partidos tinham igualmente sido rasgados ou arrancados.


“A mim não me interessam os cartazes dos partidos reacionários. Apenas me preocupam os nossos. Algum de vós tem ideia de quem possa ter sido?”


Os elementos da célula de agitprop tiveram de mentir, o que muito lhes custou, mas admitir a sua participação na razia de cartazes era grave de mais para ser sequer admitida como hipótese. Por isso tentaram desviar as atenções e passaram a culpa aos anarquistas.


“Mas em Névoa não há um único anarquista”, limitou-se o funcionário a admitir o óbvio.


“Isso é o que parece, esqueceste que os anarquistas são muito manhosos. São gente do escuro, da noite, rapaziada que gosta de brincar com tudo, até com a política. Vivem permanentemente na clandestinidade. Eles querem é destruir o Estado. Para esta gente tanto se lhes dá o fascismo, como o comunismo, o socialismo ou a democracia burguesa. Onde existir o Estado aí reside o seu inimigo. Por isso não é de admirar que tenham rasgado todos os cartazes de todos os partidos e escrito nas paredes do Liceu que a virgindade provoca o cancro e outras estupidezes do género, aconselhando as raparigas a vacinarem-se”, disse o Graça para despistar.


Temos de admitir que o Graça era tão bom a dizer a verdade como a mentir. Por isso tinha todas as condições para ser político. Ou melhor, possuía a característica essencial para ser um alto dirigente partidário. Pois quem diz a verdade que parece, e é, uma verdade, é igual a toda a gente vulgar e corrente. Já quem mente e convence os outros de que diz a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, é um eleito, pois tal predicado é apenas intrínseco aos grandes líderes.


“Quais anarquistas, qual caralho, aqui anda a mão da reação. Só os reacionários são capazes de arrancar os nossos cartazes e a seguir arrancar os outros para disfarçar. Já que os nossos são muito melhores do que os deles, muito mais conseguidos, com outra qualidade artística, com outro nível ideológico, com outra eficácia política”, disse enquanto se babava de entusiasmo o funcionário. E avisou a célula: “Preparai-vos para amanhã, pois nova tarefa revolucionária se avizinha. Mais uma vez vamos inundar as paredes de Névoa com os nossos cartazes, com a nossa mensagem revolucionária. Então, até amanhã camaradas”, terminou sorrindo e citando o título da obra do dirigente de cristal.


Quando o camarada funcionário viu toda a célula comunista da agitprop de Névoa a destroçar, perguntou-lhes se iam ainda a algum lado. O Graça, com a calma de quem diz a verdade, e nada mais do que a verdade, mentiu-lhe: “Já é tarde, por isso vamos todos para a caminha descansar que amanhã vai ser um longo dia a preparar os panos, a fazer a cola, a recolher os placares que vêm do Porto, a misturar tintas, a lavar pincéis, a estudar palavras de ordem, a discutir o editorial de A Verdade e a definir as paredes estratégicas que temos de escolher para colar os nossos cartazes.”


“Tanto cartaz, tanto caralho”, desabafou o Mário “Camões” com o olho de vidro fixo na noite e o bom apontado caras ao Graça. “Já estou farto de colar cartazes e pintar paredes. Penso que as pessoas não ligam nada a isso.” Ao que o José retorquiu, com um pouquinho de ironia: “Existem muitas formas de fazer uma revolução, colar cartazes é a nossa. É a via para o socialismo lusitano. É aí que reside a originalidade da revolução portuguesa, tão elogiada lá fora.”


“Estás a gozar comigo não estás?”, perguntou o Mário “Camões”. Ao que o Graça respondeu como dirigente: “Não, ele está a gozar com a revolução. O José é um poço de ironia.”


Já a noite ia bem comprida, e eles em volta de uma travessa de costelinhas fritas e de uma caneca de vinho tinto, quando o Graça começou a explicar ao Mário “Camões” a relação entre a virgindade e a Virgem Maria.


“A virgindade é a modos que um sexo, neste caso feminino, que nunca foi utilizado com esse fim”, explicou o Graça. Ao que o Mário Camões, na sua infinita ingenuidade, perguntou: “Qual fim?” “Pois, que não foi utilizado para procriar.” “Pois…” “No caso das fêmeas, a virgindade está relacionada com um membrana que quando um homem introduz o seu pénis na vagina de uma mulher, seja ela de que raça, cor, ideologia, condição social ou religiosa for, rasga-se e sangra. Depois disso nunca mais é virgem, independentemente da cor, religião, raça, ideologia, classe social, ou orientação religiosa. Isto que fique bem claro. Ora, vem na Bíblia que a Virgem Maria concebeu sem pecado, que o mesmo é dizer que engravidou sem que tivesse tido relações sexuais, sem que tivesse sido fecundada pelo método natural onde o pénis entra onde deve entrar, faz o que tem a fazer, ejacula e vai à sua vida. Foi a partir daí que ligaram o conceito à condição virgem da mãe de Cristo e arranjaram palavras para separar a função sexual do prazer, pois a mãe do filho de Deus não podia fazer as coisas de maneira natural. Pois se as fizesse não podia ser virgem, Deus não podia ser pai, José perdia a honra e Cristo a sua auréola celeste. Fácil é de concluir que o que vem na Bíblia é um imbróglio dos diabos: Maria engravida virgem, Deus fecunda apenas com a sua palavra, José assiste a tudo isto sem ter sido tido nem achado e Cristo nasce de forma natural, ou seja por uma vagina onde nada penetrou. Temos de convir que tal façanha não é nada fácil de admitir, por isso lhe chamam milagre. Eu penso que o maior milagre não está na circunstância de Deus ter feito o que fez, mas antes no facto de milhões de pessoas acreditarem nisso. Pois quem acredita num tal dogma, está pronto para acreditar em qualquer coisa. E ainda dizem que o Homem é um ser racional.”


O Mário “Camões”, já à beira das lágrimas, não pela história, pois não era muito dado a acreditar em coisas tão elaboradas, mas por causa da pinga, que lhe puxava ao sentimento, balbuciou: “A ser como tu contas, lá milagre é. E dos grandes. Não tenho conhecimento de outro que se lhe compare. E Deus é mesmo muito sério e determinado: fez um filho e nunca mais se aventurou a repetir a proeza. Como homem de palavra, disse uma vez uma coisa, agiu em conformidade e não repetiu a dose. Se isso é verdade quero ir para padre. O comunismo não faz dessas coisas. É só lutas de classes para aqui, proletários para ali, revolução para acolá e cartazes para colar a toda a hora, mas de transcendente não tem nada. Não tem encanto nenhum. É tudo muito fatigante.” E começou a chorar.

Podemos informar os estimados leitores que a guerra dos cartazes ainda continuou por mais algumas semanas, sempre com o mesmo frenesim, a mesma prática e a mesma conclusão. Apenas abrandou com o começo das aulas, pois a juventude tinha também que se instruir. Isto apesar dos comunistas considerarem que talvez este fosse o momento adequado para fechar durante um ano inteiro os estabelecimentos de ensino, para se repensar o sistema educativo, e durante todo esse tempo o povo se dedicar por inteiro a fazer a revolução, transformando os campos e as fábricas em motores de uma nova sociedade sem explorados nem exploradores, numa sociedade fraterna e solidária. O resto logo se veria.


129 – Mas o povo – qual vítima inocente do ...

 

(continua)

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