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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

22
Nov12

O Homem sem Memória (128) - Por João Madureira


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

128 – Ora aqui estamos de novo para vos dar conta da tal conversa filosófica. E até algo mais, se for necessário.


Depois de enfiarem os pincéis nos baldes e de recolher nas respetivas latas a tinta que sobrou, dirigiram-se ao Centro de Trabalho e aí encontraram o funcionário comunista colérico porque tinha acabado de ser informado que um bando de rapazes encapuzados tinha vandalizado todos os cartazes do Partido. O José lembrou-lhe que também os cartazes dos outros partidos tinham igualmente sido rasgados ou arrancados.


“A mim não me interessam os cartazes dos partidos reacionários. Apenas me preocupam os nossos. Algum de vós tem ideia de quem possa ter sido?”


Os elementos da célula de agitprop tiveram de mentir, o que muito lhes custou, mas admitir a sua participação na razia de cartazes era grave de mais para ser sequer admitida como hipótese. Por isso tentaram desviar as atenções e passaram a culpa aos anarquistas.


“Mas em Névoa não há um único anarquista”, limitou-se o funcionário a admitir o óbvio.


“Isso é o que parece, esqueceste que os anarquistas são muito manhosos. São gente do escuro, da noite, rapaziada que gosta de brincar com tudo, até com a política. Vivem permanentemente na clandestinidade. Eles querem é destruir o Estado. Para esta gente tanto se lhes dá o fascismo, como o comunismo, o socialismo ou a democracia burguesa. Onde existir o Estado aí reside o seu inimigo. Por isso não é de admirar que tenham rasgado todos os cartazes de todos os partidos e escrito nas paredes do Liceu que a virgindade provoca o cancro e outras estupidezes do género, aconselhando as raparigas a vacinarem-se”, disse o Graça para despistar.


Temos de admitir que o Graça era tão bom a dizer a verdade como a mentir. Por isso tinha todas as condições para ser político. Ou melhor, possuía a característica essencial para ser um alto dirigente partidário. Pois quem diz a verdade que parece, e é, uma verdade, é igual a toda a gente vulgar e corrente. Já quem mente e convence os outros de que diz a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade, é um eleito, pois tal predicado é apenas intrínseco aos grandes líderes.


“Quais anarquistas, qual caralho, aqui anda a mão da reação. Só os reacionários são capazes de arrancar os nossos cartazes e a seguir arrancar os outros para disfarçar. Já que os nossos são muito melhores do que os deles, muito mais conseguidos, com outra qualidade artística, com outro nível ideológico, com outra eficácia política”, disse enquanto se babava de entusiasmo o funcionário. E avisou a célula: “Preparai-vos para amanhã, pois nova tarefa revolucionária se avizinha. Mais uma vez vamos inundar as paredes de Névoa com os nossos cartazes, com a nossa mensagem revolucionária. Então, até amanhã camaradas”, terminou sorrindo e citando o título da obra do dirigente de cristal.


Quando o camarada funcionário viu toda a célula comunista da agitprop de Névoa a destroçar, perguntou-lhes se iam ainda a algum lado. O Graça, com a calma de quem diz a verdade, e nada mais do que a verdade, mentiu-lhe: “Já é tarde, por isso vamos todos para a caminha descansar que amanhã vai ser um longo dia a preparar os panos, a fazer a cola, a recolher os placares que vêm do Porto, a misturar tintas, a lavar pincéis, a estudar palavras de ordem, a discutir o editorial de A Verdade e a definir as paredes estratégicas que temos de escolher para colar os nossos cartazes.”


“Tanto cartaz, tanto caralho”, desabafou o Mário “Camões” com o olho de vidro fixo na noite e o bom apontado caras ao Graça. “Já estou farto de colar cartazes e pintar paredes. Penso que as pessoas não ligam nada a isso.” Ao que o José retorquiu, com um pouquinho de ironia: “Existem muitas formas de fazer uma revolução, colar cartazes é a nossa. É a via para o socialismo lusitano. É aí que reside a originalidade da revolução portuguesa, tão elogiada lá fora.”


“Estás a gozar comigo não estás?”, perguntou o Mário “Camões”. Ao que o Graça respondeu como dirigente: “Não, ele está a gozar com a revolução. O José é um poço de ironia.”


Já a noite ia bem comprida, e eles em volta de uma travessa de costelinhas fritas e de uma caneca de vinho tinto, quando o Graça começou a explicar ao Mário “Camões” a relação entre a virgindade e a Virgem Maria.


“A virgindade é a modos que um sexo, neste caso feminino, que nunca foi utilizado com esse fim”, explicou o Graça. Ao que o Mário Camões, na sua infinita ingenuidade, perguntou: “Qual fim?” “Pois, que não foi utilizado para procriar.” “Pois…” “No caso das fêmeas, a virgindade está relacionada com um membrana que quando um homem introduz o seu pénis na vagina de uma mulher, seja ela de que raça, cor, ideologia, condição social ou religiosa for, rasga-se e sangra. Depois disso nunca mais é virgem, independentemente da cor, religião, raça, ideologia, classe social, ou orientação religiosa. Isto que fique bem claro. Ora, vem na Bíblia que a Virgem Maria concebeu sem pecado, que o mesmo é dizer que engravidou sem que tivesse tido relações sexuais, sem que tivesse sido fecundada pelo método natural onde o pénis entra onde deve entrar, faz o que tem a fazer, ejacula e vai à sua vida. Foi a partir daí que ligaram o conceito à condição virgem da mãe de Cristo e arranjaram palavras para separar a função sexual do prazer, pois a mãe do filho de Deus não podia fazer as coisas de maneira natural. Pois se as fizesse não podia ser virgem, Deus não podia ser pai, José perdia a honra e Cristo a sua auréola celeste. Fácil é de concluir que o que vem na Bíblia é um imbróglio dos diabos: Maria engravida virgem, Deus fecunda apenas com a sua palavra, José assiste a tudo isto sem ter sido tido nem achado e Cristo nasce de forma natural, ou seja por uma vagina onde nada penetrou. Temos de convir que tal façanha não é nada fácil de admitir, por isso lhe chamam milagre. Eu penso que o maior milagre não está na circunstância de Deus ter feito o que fez, mas antes no facto de milhões de pessoas acreditarem nisso. Pois quem acredita num tal dogma, está pronto para acreditar em qualquer coisa. E ainda dizem que o Homem é um ser racional.”


O Mário “Camões”, já à beira das lágrimas, não pela história, pois não era muito dado a acreditar em coisas tão elaboradas, mas por causa da pinga, que lhe puxava ao sentimento, balbuciou: “A ser como tu contas, lá milagre é. E dos grandes. Não tenho conhecimento de outro que se lhe compare. E Deus é mesmo muito sério e determinado: fez um filho e nunca mais se aventurou a repetir a proeza. Como homem de palavra, disse uma vez uma coisa, agiu em conformidade e não repetiu a dose. Se isso é verdade quero ir para padre. O comunismo não faz dessas coisas. É só lutas de classes para aqui, proletários para ali, revolução para acolá e cartazes para colar a toda a hora, mas de transcendente não tem nada. Não tem encanto nenhum. É tudo muito fatigante.” E começou a chorar.

Podemos informar os estimados leitores que a guerra dos cartazes ainda continuou por mais algumas semanas, sempre com o mesmo frenesim, a mesma prática e a mesma conclusão. Apenas abrandou com o começo das aulas, pois a juventude tinha também que se instruir. Isto apesar dos comunistas considerarem que talvez este fosse o momento adequado para fechar durante um ano inteiro os estabelecimentos de ensino, para se repensar o sistema educativo, e durante todo esse tempo o povo se dedicar por inteiro a fazer a revolução, transformando os campos e as fábricas em motores de uma nova sociedade sem explorados nem exploradores, numa sociedade fraterna e solidária. O resto logo se veria.


129 – Mas o povo – qual vítima inocente do ...

 

(continua)

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