Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
138 – Na sua terceira semana como camarada diretor e professor da Escola de Pioneiros Comunistas de Névoa, José Ferreira, filho do Guarda Ferreira, neto, pela parte da mãe, de Rosa Cantarinha, do Zé do Canto e da Maria do Cântaro, decidiu finalmente pôr os seus camaradas pioneiros a escrever. Tinha de alternar a cantilena do Manifesto, a entoação do Hino do Partido, da Internacional, além de outros rituais, com a escrita livre e criativa. Necessitava de dar espaço à imaginação. Bem vistas as coisas, os camaradas pioneiros eram crianças como as outras, mesmo não parecendo.
Mas temos de ser honestos, pois a isso nos obriga a realidade: os exercícios propostos foram imediatamente motivo de polémica. Desde logo porque os destinatários eram crianças. E as crianças, como todos sabemos, nunca se cansam nem de correr, nem de gritar e muito menos de fazer perguntas. Então se a tudo isto juntarmos a ideologia comunista, temos uma longa e incrível história de controvérsias intermináveis. Nisso os comunistas são tão puros como as crianças, nunca se cansam de questionar.
A polémica instalou-se mal o camarada professor José propôs que naquele dia a maior parte da aula iria ser ocupada com a elaboração de um texto livre. Até aqui tudo bem, pois os camaradas pioneiros acenaram com as cabecitas em sinal de concordância. A controvérsia sobreveio quando sugeriu o tema: “O que eu quero ser quando for grande”. A camarada pioneira Lídia, como comunista coerente, como já vimos atrás, contrapôs que o título tinha aspeto de ser um pouco reacionário, pois em nada diferia dos temas indicados pela sua ditadora professora primária. O camarada professor José tentou argumentar que não era o título de uma obra o que definia a sua orientação ideológica, mas antes o seu conteúdo. “Mas pode sugerir”, argumentou de novo a camarada pioneira Lídia. “Lá poder pode, mas…”, intentou responder o camarada professor José, no que foi prontamente interrompido pelo camarada pioneiro João que não perdia uma única oportunidade de se opor à camarada pioneira Lídia: “Aqui não há mas nem meio mas, na escola de pioneiros comunistas o camarada professor manda e nós obedecemos…” A camarada pioneira Lídia ia começar a argumentar de novo quando o camarada pioneiro Luís se meteu de premeio e disse que o problema não era o tema sugerido mas antes a contradição implícita na sua denominação, pois um texto proposto não é livre, mas antes regulado. E tudo o que é regulado obedece a um princípio, tem uma orientação, leis próprias, regras definidas… “Ó camarada professor”, objetou o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel, “ponha mas é ordem nisto. Tanta confusão por causa da merda de um texto.” “Cuidado com a língua, camarada pioneiro Miguel”, lembrou o camarada professor José. Mas ainda estava a olhar com cara de camarada dirigente Estaline na direção do ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel, quando o camarada pioneiro João contra-atacou: “Merda de texto deve ser o que tu vais escrever, pois só dás erros e não consegues construir uma frase com princípio, meio e fim.” “Silêncio. Respeito. Ordem”, gritou o camarada professor José. “Ordem revolucionária”, acrescentou o camarada pioneiro Luís. Então fez-se silêncio. Logo de seguida a camarada pioneira Lídia pôs o dedo no ar e começou de imediato a falar: “Voltando ao texto proposto, eu continuo a achar que não é livre, pois…” Neste momento o camarada professor José ergueu-se da cadeira de um salto e disse com voz de dirigente: “Ora vamos lá a ver se nos entendemos. Eu quando sugeri um texto livre sobre o que cada um quer ser quando for grande, foi com o propósito de vos dar oportunidade de poderem escrever livremente sobre a vossa determinação em virem a ser, no futuro, uns revolucionários exemplares. A liberdade do texto tem tudo a ver com a possibilidade de cada um o redigir por sua conta e risco. Além disso, toda a liberdade é condicionada. Ninguém é totalmente livre.” “Nem no comunismo?”, perguntou o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel. Mas o camarada professor José não lhe respondeu. “A liberdade conquista-se, não se dá nem se recebe, luta-se por ela e ganha-se. Assim têm os camaradas a possibilidade de, a partir de um texto sugerido, se libertarem libertando o texto, libertando as palavras e as ideias e emancipando o proletariado.” “Então quer dizer que quando o camarada professor sugeriu o tema apenas estava a pensar na dimensão social, na prática política e não no que cada um pode vir a aspirar a ser profissionalmente. É isso?”, questionou-o a camarada pioneira Lídia. “O que é que o resto da turma acha?”, perguntou muito democraticamente o camarada professor José. Mas a maioria da turma manteve-se calada, como sempre. Apesar de ser constituída por pouco mais de duas dezenas de camaradas pioneiros, apenas quatro falavam. Nisto a escola já estava dar os seus frutos, pois tornava nítido quem poderia vir a ocupar os cargos de dirigente da classe operária do futuro. Bem, da classe operária não, melhor será dizer da sua vanguarda, pois assim é que está certo. Porque uma coisa é ser dirigente da classe operária, nos sindicatos, outra bem diferente é ser dirigente da sua vanguarda, no Partido. Apesar do silêncio, o camarada professor José tornou a perguntar: “O que é que o resto da turma acha?” Ao que o camarada pioneiro João respondeu: “Acho que a turma não acha nada, como sempre. São uma cambada de burros.” “Veja lá como fala, camarada pioneiro, a linguagem e o tratamento protocolar definem a personalidade de um líder”, avisou-o o camarada professor. “Desculpe camarada José, mas eles não são camaradas burros, são apenas camaradas reacionários”, disse o camarada João. “Camarada pioneiro João vá já de castigo para o fundo da sala decorar as páginas trinta e nove a cinquenta do Manifesto. E hoje fica sem recreio.” “Outra vez o socialismo reacionário? Já não há quem aguente. Eu vou fazer queixa ao meu pai.” No fundo da sala, o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel começou a rir-se como um perdido e a camarada pioneira Lídia também deu um ar da sua graça. Apenas o camarada pioneiro Luís veio em defesa do seu companheiro: “Não é justo castigar um camarada apenas porque diz a verdade. Eles podem ser camaradas, mas também são muito burros. Isso todos o sabemos. Novamente o camarada professor José se levantou de um salto apenas e gritou na direção do provocador: “Já lá para o fundo decorar o segundo capítulo do Manifesto, «Proletários e Comunistas».” E lá foi o camarada pioneiro Luís para um canto da sala a resmungar alto que também ele ia fazer queixa ao seu pai. Mais uma vez o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel se riu e a camarada pioneira Lídia também.
Quando o camarada professor José se sentou, a camarada pioneira Lídia aproveitou para voltar à liça: “Relativamente ao texto livre sugerido, penso que se por exemplo o camarada pioneiro Miguel quiser escrever que quando for grande quer ser trolha para poder vir a inscrever-se no sindicato e depois passar a organizar greves, manifestações, etc.” “E quem é que te disse que o camarada pioneiro Miguel quer vir a ser trolha? Lá pelo facto de o seu pai ser operário isso não quer significar que ele lhe queira seguir os passos”, contrapôs o camarada professor José. “Mas não é uma honra ser operário? Pois se é uma honra…” ia a continuar a camarada pioneira Lídia, mas o seu camarada professor interrompeu-a com voz autoritária: “Lá uma honra é, mas também é muito cansativo.” “O que é que o camarada professor quer dizer com isso?”, questionou-o a camarada pioneira Lídia. Mas o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel não lhe deu tempo de responder: “Acabem lá com a porra da conversa de uma vez por todas.” O camarada professor José, já com a paciência a desmoronar-se, avisou: “Tento na língua.” Então o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel indagou: “O que foi que eu disse de mal. Apenas pronunciei a palavra «porra».” “E tu sabes o que significa porra?”, perguntou o camarada professor José. “Eu não”, respondeu o ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel meio embasbacado. “Eu sei”, disse a camarada pioneira Lídia, “a minha mãe explicou-me quando eu, por acaso, li essa palavra num soneto do Bocage.” “E a tua mãe deixa-te ler poesia erótica do Bocage.” “Não. Mas eu leio na mesma. «Porra» quer dizer pilinha.” Toda a turma se riu, menos o camarada professor José. Um camarada pioneiro dos que sempre estavam calados, desta vez resolveu falar: “Não é pilinha que se diz, mas sim «piroca».” Mais risos. E um outro contrapôs: “Não é «piroca» é «pélis».” Ainda mais risos. Ao que o camarada pioneiro João, mesmo de castigo, corrigiu: “Não é «pélis», mas sim «pénis»…” “ou «falo»”, sugeriu o Luís. Foi então que o riso tomou conta de toda a turma. O ainda, para todos os efeitos, camarada pioneiro Miguel, com a sua arrogância proletária verdadeiramente filha… do proletariado e intrinsecamente provocatória, levantou-se do lugar e gritou bem alto a sua má criação: “Não é nada disso, «porra» é «pissa».” Depois ouviu-se ainda mais alto: “E a palavra escreve-se com um «cê» de cedilha ou com dois «ésses»”.
139 – Foram os textos que salvaram ...
(continua)