GOVERNO DOS «JUSTOS»
I
Em tempo de férias, antes de partir para os lugares onde o mar nos atrai para as suas praias, (apesar de este ano o tempo não estar assim tão convidativo), para além das roupas leves que durante o resto do ano pouco usamos bem assim outros pertences para nos entretermos enquanto estamos na «torra», ainda temos tempo para pôr no saco da viagem um ou outro livro que um dia prometemos a nós próprios – porque interessante – que o leríamos com mais atenção.
Desta vez veio-me ter às mãos um volume de José Mattoso, Susanne Daveau e Duarte Belo com o título «Portugal – O sabor da terra – Um retrato histórico e geográfico por regiões» que, já não me lembro bem, quando me foi oferecido por dois meus sobrinhos.
Como o próprio título indica, e os seus dois primeiros autores sugerem, trata-se de uma obra assente, essencialmente, numa perspectiva geográfica e histórica, dividida por treze regiões: Minho; Trás-os-Montes; Douro; Região Metropolitana do Porto; Beira Litoral; Beira; Beira Baixa; Ribatejo; Estremadura; Lisboa; Alto Alentejo; Baixo Alentejo e Algarve.
A obra é muito enriquecida pelas fotos de Duarte Belo, dos finais dos anos noventa do século passado, assim como, parte da designação do título da obra - «O sabor da terra» - é da sua lavra.
Esta obra foi editada pela primeira vez em 1998, em pleno período de debate sobre a regionalização, embora a mesma não tivesse quaisquer intentos políticos, e reeditada em 2010.
Os seus autores, na Introdução à obra reeditada em 2010, afirmam: “O que se pretende é captar aquilo que permite descobrir o essencial, e não o anedótico, o acidental ou passageiro”. E mais adiante: “a terra é, obviamente, o ponto de partida para as nossas considerações. A terra com a sua constituição geológica, a forma do seu relevo, a sua relação com a água, com a temperatura e com os regimes dos ventos predominantes. Mas, logo a seguir, os homens. Antes de mais na sua relação com essa terra”.
Depois de explanarem cada uma das regiões citadas, não tendo abordado as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, acabam por dizer: “A conclusão a que se chega ao examinar como evoluiu o nome de Portugal e a realidade a que ele se foi aplicando é perfeitamente coerente com a falta de unidade do país (…) existe nele, de fato, uma grande diversidade cultural, paisagística e histórica. Esta [unidade] é perfeitamente compatível com uma administração fortemente centralizada. Ou melhor, é provável que um país tão diversificado como o nosso não pudesse ter subsistido sem uma administração unificada e coesa”. É, por isso, que quando estes autores se reportam à identidade portuguesa, do «ser português», insistam: “o que cria e sustenta a identidade portuguesa é, de facto, o Estado”.
Como não podia deixar de ser, o capítulo que mais me despertou a curiosidade, nesta altura, foi aquele que fala sobre o Algarve.
O Al Garb, o Ocidente, fim da terra habitada para o islão. Algarve, reino independente, tardiamente conquistado pelos reis portugueses da Reconquista (D. Afonso III). Algarve, terra do pomar e do mar. Algarve, pequena porção de terra virada a sul, debruada sobre o mar, protegida a norte pelas serras de Monchique e do Caldeirão: uma, a oeste; outra, a este. Algarve da serra, do barrocal e do litoral: uma, dando a madeira aos pescadores e a lenha à casa dos lavradores; outro, com os seus pomares de sequeiro, dando-lhes o figo, a amêndoa, a alfarroba, a laranja…, frutos que fazem a delícia da gastronomia local e nacional; finalmente, o mar, onde os pescadores buscam o sustento e o seu meio de subsistência, mas que hoje, aliado a um clima ameno no inverno e um sol radiante no verão, enche de alegria milhares de turistas que o frequentam. Algarve, hoje tão dual, vivendo na voragem da exploração desenfreada de uma pequena faixa litoral, esquecendo-se, muitas vezes, das outras duas que lhe deram a sua verdadeira e autêntica unidade. Algarve, terra prostituída pelos senhores especuladores da terra e pelos grandes monopólios empresariais do sector do lazer, dando-nos, muitas vezes, a sensação que, tal como no passado, a posse da sua terra já passou para outro reino. Algarve, que, anexado às outras parcelas do reino de Portugal, lhes copiou e lhes seguiu os mesmos passos: os do desnorte do desenvolvimento e do ordenamento do território. Mas, felizmente, ainda nos resta um Algarve possuidor de recantos paradisíacos e virginais, à espera de serem desflorados, possuídos, com carinho e amor, como à mãe-natureza é devido.
Desde a década 60/70, a ideia que tinha do Algarve, quando nessa época vinha para aqui passar férias, coincide com a de Filomena Mónica quando lembra: “(…) as férias [no Algarve] era um interlúdio abençoado (…) no início da década de setenta (…) passei alguns verões maravilhosos (…) Nesta(s) comunidade(s) ninguém jamais pensou abastecer-se numa loja, quanto mais ir a um supermercado. Aproveitavam-se os restos das caldeiradas dos pescadores, comiam-se os figos que caiam das árvores e, na maré baixa, apanhavam-se ameijoas, canivetes e conquilhas. À noite, os miúdos dormiam no terraço; os adultos bebiam licor de amêndoa amarga (…)”.
O que depois aconteceu é demasiado conhecido de todos: a primeira coisa que se nota ao chegar ao novo Algarve é a omnipresença do progresso, traduzido no barulho das picaretas, na visão dos guindastes, no ruído das escavadoras (hoje em dia já nem tanto!).
A partir dos finais da década de 70 deixei, por três décadas, de frequentar o Algarve. Hoje, contudo, não posso deixar de reconhecer, tal como os autores da obra que venho falando, que o turismo, mesmo destruidor e desenfreado, trouxe bem-estar e prosperidade a muita gente. Contudo, sou muito crítico quanto ao modelo de desenvolvimento (turístico) que aqui se implementou.
António Barreto, num programa de televisão largamente difundido em 2007 diz que, quanto a Portugal, “já lá vai o tempo dos dois países (…)” Não estou tanto assim de acordo com este autor. Malgrado todos os progressos, nomeadamente a nível das autarquias no que concerne a grande número de infra-estruturas, na verdade, continuamos a viver como se estivéssemos em dois países separados, de desigualdades entre eles: o Portugal urbano e o rural; o Portugal moderno e o atrasado; o Portugal litoral e do interior; o Portugal da capital e da província. Mesmo apesar das estradas, da democracia, do Estado Social e, como digo, do esforço em obras (algumas faraónicas, para além da escala real da autarquia a que se destina, em nítido prejuízo do erário público e grande satisfação do caciquismo local)! Aliás, a realidade do despautério obreirista e das negociatas, a que eufemisticamente chamamos crise, infelizmente, nos tempos que correm, está bem à vista de todos!
Como muito bem dizem os autores que vimos citando: “o Portugal rural é cada vez mais diferente do urbano, porque se vai aproximando do deserto; na mesma medida o litoral opõe-se cada vez mais ao interior. Se estamos mais perto de sermos «um só país», é porque o rural, o interior, pelo menos aparentemente, deixa de contar: deixa de ter escolas; serviços médicos; maternidades; polícias; transportes públicos”.
Apresentemos alguns poetas que, quanto a este Portugal, nos falam desencantados. É certo que falam antes de 74 mas… será que, apesar de Portugal ter mudado, as coisas mudaram assim tão significativamente? Ouçamos o seu protesto:
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo…
num remorso
num remorso de todos nós. (Alexandre O’Neill)
O país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das serras
os vendilhões das almas no templo do mundo (Ruy Belo)
Portugal
país defunto talvez unto para nações vivas
Portugal meu país de desistentes (Ruy Belo)
Meu país desgraçado
por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram? (Sebastião da Gama)
Este país te mata lentamente.
País que tu chamaste e não responde.
País que tu nomeias e não nasce. (Sophia de Melo Breyner)
Pátria magra – num corpo figurado
Meu pobre Portugal de pele e osso:
Nada na tua imagem se alterou:
A casca e o caroço
dum sonho que mirrou (Miguel Torga)
Entretanto, que faremos deste Portugal quase vazio, andando a desnorte?
II
Aproximam-se velozmente as eleições autárquicas. De longe da terra que adoptei como minha, me nasceram os filhos e se encontram sepultados os restos dos meus entes queridos, não paro de pensar acerca do seu futuro. E vêm-me à lembrança estas palavras que, urje, as interiorizemos: “Hoje, ao contrário do passado, os portugueses deixaram de ter uma conceção épica acerca da sua História e tentam ocupar realisticamente o seu lugar na Europa, isto é, à sua escala [mas sem tibiezas e subserviência] e que demonstrem uma plena capacidade de saber gerir os seus recursos. Talvez agora se abra para eles uma nova era em que as diferenças de oportunidades e direitos práticos não sejam tão grandes como no passado, e em que a gestão dos seus recursos materiais e culturais se faça de forma mais racional e mais rentável. Espera-se que a democracia, tão tardiamente conquistada, seja para eles um bom caminho, na busca de novas formas de identidade nacional [e de um novo futuro]”.
E, apesar de tudo, acredito que ainda há lugar, no mundo de hoje, para uma conceção humanista da existência, baseada no respeito pelo Homem e pela sua dignidade. Porque, apesar de tudo, acredito que nem tudo é, ou pode ser reduzido, a mercadoria e que tudo seja medido em função da mesma. A mercadoria e o dinheiro, embora tidos como valor, não são o fim de todas as coisas. São simplesmente meios ao serviço do Homem, da sua realização como pessoa numa sociedade mais justa, solidária e amigo do ambiente, terra-mãe donde vimos e para onde iremos.
Seria bom que estas palavras fossem bem interiorizadas pelos futuros dirigentes políticos, em particular os que estão na calha para disputarem o espaço do poder autárquico, em especial os meus conterrâneos flavienses.
Já aqui, nesta coluna, tenho vindo a falar dos requisitos (qualidades), que reputo essenciais, daqueles (as) que se preparam para serem os (co) responsáveis máximos dos destinos da nossa terra. Da sua lucidez, assente numa correta e adequada compreensão e conhecimento da sociedade em que vivemos e da terra em que nos é dado viver. Lucidez que aporte uma visão de esperança para o futuro – que se nos apresenta incerto e muito complexo. E da atitude, humilde e sincera, que devem ter na construção desse futuro, chamando os munícipes à partilha dessa mesma e efectiva construção.
Por outro lado, meu entendimento, e consequente apelo, é que estes (as) homens e mulheres, com «arrojo» de se candidatarem a lugares de dirigentes (políticos) locais, que o façam em franco espírito de serviço (público). Tão só. Simplesmente…
Embora tenha sérias dúvidas quanto a este desiderato – pois considero 50 anos de ditadura e mais de 30 de partidocracia, em que as mentalidades não se modificam de um dia para o outro – acredito, sinceramente, que mudar é preciso e… é possível!
E tal desejo não se aplica apenas aos tradicionais partidos do arco do poder autárquico como também ao recente criado MAI (Movimento Autárquico Independente), dadas as sérias dúvidas que tenho quanto à sua génese, ao seu ideário e programa de acção, independentemente de algumas pessoas que o integram.
Em suma, hoje mais que nunca – talvez mais que no passado – para além de dirigentes políticos lúcidos e competentes, precisamos que sejam «justos».
Corroboro inteiramente as palavras de José Mattoso quando, no final da obra que venho a referir, diz: “Só Deus sabe que proporção de «justos» no conjunto dos habitantes de cada cidade é suficiente para ela subsistir [tal como se deduz da conversa de Javé com Abraão antes da destruição de Sodoma e Gomorra] (…) o que a vida me tem ensinado é que existem mais «justos» neste mundo do que se pode saber através dos jornais. Há muitas formas de santidade oculta, nem que seja por meio do sofrimento assumido, do apaziguamento, da noção do dever. A religião católica, aliada ao individualismo, atrofiou o conceito de «justo». A história do Génesis propõe que se crie no efeito da ação do «justo» sobre a comunidade a que pertence em virtude do princípio da solidariedade. Os «justos» são a porção viva e sã, mas escondida, da comunidade a que pertencem. Garantem a sua capacidade de regeneração. O fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos «justos» que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela «justiça». Talvez isto sirva de antídoto contra a desilusão que nos causam os poderosos da finança (…)” da «alta» política ou do espectáculo (circense, entrando todos os dias pela casa dentro).
Um «justo» reconhece que, em última análise, a terra, «a nossa terra» é o fundamento concreto e palpável que pode justificar qualquer tentativa de descobrir o espírito de um lugar e de uma região e, com ele, se encetar um novo futuro.
Para terminar, não resisto de, com Miguel Torga, invocar os deuses que lhe fizeram não só compreender tão bem o seu querido Trás-os-Montes mas também Portugal. Porque, ao invoca-los, outra coisa não fazemos que continuarmos na busca do perpétuo mistério do ser humano:
“Vinde à terra do vinho, Deuses novos!
Vinde, porque é de mosto
O sorriso dos deuses e dos povos,
Quando a verdade lhes deslumbra co rosto.
Houve Olimpos onde houve mar e montes
Onde a flor da amargura deu perfume,
Onde a concha da mão tirou das fontes
Uma frescura que sabia a lume.
Vinde, amados senhores da juventude!
Tendes aqui o louro da virtude,
A oliveira da paz e o lírio agreste…
E carvalhos, e velhos castanheiros
A cuja sombra um dormitar celeste
Pode fazer os sonhos verdadeiros!”
António de Souza e Silva