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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

15
Set13

Discursos Sobre a Cidade - Por Francisco Chaves de Melo


Não sei de encantado ou embruxado pelas bruxas da sexta-feira 13 de Montalegre, só hoje, neste fim de tarde de domingo, é que consegui assentar bem os pés em terras flavienses e daí só agora conseguir corrigir um erro por mim cometido no último post de “Discursos Sobre a Cidade” da última sexta-feira, pois o “discurso” publicado já tinha sido publicado uns meses atrás. Em jeito de correção fica agora o “discurso” (inédito) que deveria ter sido publicado. As minha desculpas a todos, principalmente ao autor do “discurso”, mas pela certa foi coisa das bruxas.


Fer.Ribeiro



 

 

 

Rumos desencontrados.

 

A cidade e o concelho de Chaves já conheceram melhores dias. Assistimos, há demasiado tempo, a uma contínua atitude despesista. Drena-se o dinheiro de empréstimos já insuportáveis para as mãos de empresas de construção civil e gabinetes de arquitetura. Quer se construam as obras de discutível oportunidade, quer a Câmara desista delas após, precipitadamente, as lançar a concurso, o dinheiro desaparece e os encargos para as gerações futuras avolumam-se.


A maior parte das vezes investiu-se “para turista ver”, pelo que, não nos admira, que os residentes se vão embora em grande número a cada dia que passa (não querendo fazer publicidade veja-se a revista “Visão” do último fim de semana).


Mas, alheios a esta dura realidade que teimosamente insistem em não querer ver, os repetentes da gestão autárquica local, apresentam-se ao concelho a defender apenas um passivo, já sem capacidade de se projetar no futuro.


Apresentam números de despesa em associações, fundações, etc. e tal, como se eles garantissem a transformação instantânea da quantidade em qualidade. Já os números da gigantesca dívida que criaram ou o da população que o concelho perdeu nos últimos 12 anos, são constantemente olvidados na propaganda que nos fazem.


Porque é que um plano para a contenção do custo de vida das famílias que as ajude, por exemplo, reduzindo o IMI, as tarifas da água, do saneamento e da recolha de lixo não se faz?


Os passes dos transportes públicos não se reduzem, a utilização das piscinas ou do Gimnodesportivo não se reduzem. Mesmo as rendas da habitação social não se graduam para valores mais consentâneos com as possibilidades das famílias atingidas pelo desemprego ou pela doença.


Já Chega! É tempo de pensar em cada pessoa que se enfrenta com duras dificuldades. É tempo de pensar em todos os jovens que estão desempregados. É tempo de pensar nos casais desempregados e nos seus filhos em idade escolar. É tempo de pensar nos idosos com dificuldades na compra de medicamentos.


Como é possível que a Câmara, com a equipa repetente que lá está, viva fechada nas suas equívocas cumplicidades e traições e nos seus jogos de interesse?


Não se costuma dizer que aqueles cujos rumos são diferentes não podem fazer planos um para o outro?


Estou convencido que o rumo desta autarquia já não é o mesmo que o rumo de muitos flavienses.


Não vão fazer mais planos para mim! E para si?


Francisco Chaves de Melo


14
Set13

As Coisas Boas da Vida


 

Ler um bom livro

 

Um livro. Um pouco de tempo. Uma mente aberta. E, de repente, como por magia, temos entre mãos muitos mais do que um conjunto de folhas impressas e prensadas entre duas capas; temos muito mais do que caracteres que se juntaram para formar palavras e frases... Temos ideias, cenários, viagens, emoções, sorrisos e até lágrimas... Temos personagens, heróis e vilões... Temos entre mãos um dos maiores prazeres da vida: a leitura. É então que nos esquecemos de tudo o que nos rodeia para nos concentramos apenas na história, envolvendo-nos tão profundamente que ficamos prisioneiros do seu enredo. Mais ainda, a dada altura, sem darmos por isso, até rimos e choramos com as personagens. Assimilamos avidamente cada detalhe, cada palavra, voltamos as páginas umas a seguir às outras e tentamos adivinhar o que virá a seguir; umas vezes acertamos, outras surpreendemo-nos, outras ainda, desiludimo-nos profundamente. Tudo isto existe, tudo isto é leitura...




Aceite o meu conselho. Um dia destes marque na sua agenda um pouco de tempo para si mesmo. Vá até à sua estante dos livros e percorra as lombadas à procura de um título que lhe agrade, ou então simplesmente escolha um ao acaso. Se já não tiver em casa livros para ler aproveite para sair e vá até uma livraria, de preferência daquelas onde se pode entrar, pegar nos livros e esfolhá-los calmamente sem que o empregado venha a correr oferecer-nos ajuda. Depois, em casa, instale-se confortavelmente numa poltrona ou num sofá, abra a capa e entregue-se a uma verdadeira viagem com a imaginação.


Experimente e depois diga-me qualquer coisa...

 

Luís dos Anjos



13
Set13

Discursos Sobre a Cidade - Por Francisco Chaves de Melo


 

Vivemos assim, mas não devíamos!

 

Muito do que pensamos para a cidade de Chaves, quer individualmente, quer coletivamente, compagina-se com o conflito latente, íntimo até, entre o que a geração já aposentada ou perto dessa etapa da vida, deseja (segurança, saúde, carinho dos filhos e netos) e o que a geração mais nova sonha alcançar (emprego dignamente remunerado, locais modernos de convívio, consumo e diversão). Pelo meio “entalam-se” os que estão no ativo. Estes, vivenciam hoje três grandes receios. Medos, para falar com franqueza.


O primeiro medo é o de perder o emprego, o pequeno negócio, a fonte de rendimentos, que permita continuar a usufruir a já limitada liberdade de acção que os rendimentos, mesmo que a diminuir rapidamente, vêm possibilitando desde o 25 de Abril.


O segundo medo é o de perder os filhos para outras terras. Filhos que com empenho e muito custo se enviaram à escola e à universidade. Agora, ou partem para viverem no litoral, na melhor das hipóteses, ou para o estrangeiro. Muitos para lá do Mar! Na verdade, é doloroso saber que os filhos, como consequência da apatia em que os poderes públicos deixaram cair a cidade, não podem regressar para trabalhar e constituir família. Na cidade não existiram políticas que gerassem postos de trabalho. Não vai haver emprego. Na cidade e concelho, a cada dia que passa, residem menos pessoas, quer por fecharem as portas muitos dos estabelecimentos de comércio e serviços das principais ruas do centro, quer ainda pelo esvaziamento e mesmo encerramento de serviços públicos.


Sem pessoas a residirem no concelho e na cidade o emprego continuará a diminuir mas, a cada dia que passa, mais rapidamente.


O terceiro medo sente-o quem tem a necessidade de prestar apoio à geração que está aposentada e aos idosos. Não poder sinceramente garantir-lhe, quando a saúde por má ventura faltar, que será cuidada num hospital na nossa cidade pois, o que temos, vem sendo esvaziado de serviços à vista dos poderes públicos locais. Estes, nada mais fazem, a não ser desviarem culpas próprias para os outros, desculpando-se assim da sua falta de força política e apoio em Lisboa para mudar as coisas por cá. Mas existem outros serviços de saúde, para além do hospital, que estão em falta. Por exemplo, se um idoso tiver a má sorte de dar uma queda, a convalescença raramente se pode fazer por cá.


A geração que está no ativo, ameaçada pelo desemprego e pelos cortes nos ordenados, poderá ver-se, não a cuidar dos seus pais já aposentados, como seria natural, mas, a ter de ser novamente ajudada por estes porque caiu no desemprego ou nos salários de miséria. E, será ainda para os avós a obrigação de cuidar dos netos. Mesmo a de os receber em casa, pois muitos empréstimos de habitação poderão ficar por pagar e, com a nova lei, os despejos por dívidas serão dramáticos.


Com menores salários e à beira da catástrofe do desemprego, que podemos esperar?


Imaginem a cidade neste cenário!


Por exemplo, a Rua Direita, bonita artéria do nosso Centro Historio, se já mostra muito a perda de gente a viver lá e a comprar nos seus estabelecimento comerciais, como ficará?


Resignação e atirar culpas para quem lá tem os seus negócios e as suas casas não é razoável.


Quem autorizou que se gastassem sete milhões de euros num só edifício para albergar a Fundação Nadir Afonso, que à beira do nosso Centro Histórico não é nada, quem não desenvolveu uma ação de fomento da actividade comercial local e de estímulo à residência e aos serviços na cidade, é o responsável pela sua morte lenta.


Podemos alterar o rumo dos acontecimento, recuperar a esperança. Ao contrário do que nos querem convencer, vivemos assim, mas não devíamos.


A Chaves e o concelho voltarão a erguer-se, a recuperar a população perdida.


Esse é o nosso futuro!

 

Francisco Chaves de Melo



12
Set13

O Homem Sem Memória - 169


 

O Homem Sem Memória

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

169 – Quando estamos presos, alguns momentos que vivemos entre grades são particularmente trágicos. E o mais trágico de todos é quando recebemos a visita da mulher que nos trouxe ao mundo. Aquilo não é muito bonito de se ver e não é nada, mesmo nada, fácil de viver. Uma mãe banhada em lágrimas a olhar para nós como se estivéssemos prestes a morrer, é desolador. E a cena torna-se ainda mais dramática quando nela entra a Dona Rosa.


Mal a colocaram frente ao seu filho preferido tratou logo de desmaiar. E todos nós sabemos como a Dona Rosa é poderosa no momento do desfalecimento. Desmaiou devagar, mas com um estilo muito próximo do teatro da mais alta qualidade. Se William, o Shakespeare, tivesse mesmo existido, e fosse contemporâneo da Dona Rosa, temos a certeza absoluta de que não se atreveria a morrer sem antes escrever uma peça pensando única e exclusivamente no desempenho dramático de uma atriz com o génio, o talento e o carisma da mãe do José.


Todos os que assistiram à cena ficaram espantados, menos o nosso terno herói que já sabia dos dotes dramáticos de sua mãe. Todos quantos puderam, correram a tentar amparar a pobre senhora em grandioso pranto e estudado desalinho. Os mais sensíveis condescenderam mesmo em deixar correr espontaneamente uma lágrima mais atrevida e afetuosa. O José, temos de reconhecer, mesmo comovido quase até às lágrimas, segurou-as com muito empenho e audácia. Os reacionários não podiam ter o prazer de o ver chorar. Um revolucionário não chora, mesmo que se encontre em processo de dissidência. E desesperar jamais.


Devido a esse facto, muitos dos guardas prisionais acharam-no insensível, o que não acrescentou nada ao conhecimento deles sobre os comunistas, pois todos os reacionários lhes reconhecem a frieza e o desprezo pelos sentimentos próprios, e alheios, como uma das suas principais características.


Quando se recompôs, a Dona Rosa começou logo a ralhar ao filho como se ele fosse um rapazinho da escola primária. O José ficou ainda mais frágil e triste. E lembrou-lhe que ela bem o tinha avisado de que as más companhias o haviam de conduzir à desgraça. Os comunistas não dão nada a ninguém, nem sequer bons conselhos. Pelo contrário, tiram tudo a uma pessoa: a vontade, a educação, a fé e a alma. São uns danados.


O José perguntou-lhe pelos irmãos e pelo pai. Ela informou-o de que o pai não a quis acompanhar com o pretexto de que estava de serviço, mas ela sabia bem o porquê de desculpa tão esfarrapada. Ela bem sabia que o guarda Ferreira a achava choramingona e espalhafateira. Além disso, pensava a mãe do José com alguma propriedade, tinha vergonha de ser militar da GNR e ter um filho preso por motivos políticos. Confessou, no entanto, que ainda se estava a habituar à ideia, mas mandou-lhe cumprimentos e cigarros e algum dinheiro para despesas correntes.


A Dona Rosa: “Com um pai destes, tinhas de sair herege. E logo tu que foste bafejado pelo Espírito Santo, que te pôs a falar na minha barriga. Não soubeste aproveitar o dom, agora estás para aí na companhia do Demónio e desses seus filhos.”


“Mas, mãe, o Graça é bom rapaz, um bom camarada…” “Não te iludas, meu filho. Foi o Graça quem te trouxe para esta desgraça. Foi ele quem te meteu essas más ideias na cabeça. Foi ele quem te enfiou na cadeia.” “Por favor, mãe, não digas isso, porque não é verdade. Eu sou um homem livre…” “Livre? Mas estás preso!” “Sou livre no pensamento que é como o vento que podem prendê-lo, matá-lo não…” “Tu és mesmo parvo. Sempre com as tuas toleimas, com essas rezas mentirosas, com esses falares enganadores.” “Não são rezas mãe, é poesia. Há lá coisa mais bonita do que a poesia!” “Há sim senhor, as orações a Nosso Senhor…” “Pois!” “Não existe por aqui um padre?” “Claro que sim.” “Então confessa-te e volta ao caminho de Deus. Por favor José, desta vez faz a vontade à tua mãe que te quer mais do que a qualquer outra coisa no mundo.” E começou a chorar copiosamente.


Ao José, mesmo contra sua vontade, também os olhos se lhe marejaram de lágrimas pequeninas, mas sensíveis. Ficaram os dois em silêncio. O José não podia contar à sua mãe que, à sua maneira, estava a seguir os seus conselhos, estava a cortar as amarras que o ligavam ao Partido e aos seus antigos camaradas.


Todas as suas decisões foram tomadas individualmente e para isso apenas tinha consultado a sua consciência. Desta vez também não podia ser diferente. Apenas ele e a sua consciência são os donos do seu destino. E seja o que Deus quiser. Bem, Deus não, ou talvez sim, ou… Quem não tem dúvidas não pensa. Só os grandes sábios e os maiores idiotas é que nunca mudam de opinião.


“E os meus irmãos?” “Estão lá fora. Não os deixaram entrar. Mas mandam-te cumprimentos. Dizem que têm saudades tuas e que te querem seguir os passos. Vês, José, os teus irmãos querem seguir-te os passos. Querem dizer coisas tolas, fazer coisas parvas e vir parar à prisão. É esse o ensinamento que lhes envias. És um mau exemplo.” “Por favor, mãe. Eu não fiz nada de mal. Limitei-me a defender as minhas ideias e o meu povo…” “Com armas! Se todos quantos defendem as suas ideias e o seu povo pegassem em armas, não restava uma única pessoa viva no planeta.” “Mas os reacionários apesar de defenderem as suas ideias, não defendem o povo.” “Ai não que não defendem. Tu convences-te de cada coisa. Só vós, comunistas rancorosos e vingativos, é que sois os salvadores do povo? Deixa-me rir. O povo não vos presta nenhuma atenção, nem vos respeita. Rejeita-vos. Detesta-vos.” “Isso é porque as pessoas são ignorantes.” “Tu é que és ignorante. Tu é que não percebes o povo que dizes defender. Tu e os teus camaradas prometeis-lhes o paraíso na Terra. Mas o pobre povo, quando a esmola é grande, desconfia. E com razão. Todos lhe mentem.” “Eu não.” “Tu és igual aos outros. Andas com eles, iludes-te com eles, mentes como eles.” “A revolução liberta os povos.” “Vês. És um mentiroso compulsivo…” “Compulsivo? Quem te ensinou essa palavra?” “É a palavra de Deus…” “De Deus…” “De certa forma sim, pois é a que mais utiliza o senhor padre quando fala da mentira, dos comunistas e do Demónio, que, na sua visão, constituem a Trindade Demoníaca.” “E tu sabes o seu significado?” “O senhor padre diz que quando o Diabo vos transforma em comunistas não sois capazes de conter a tendência para a mentira, pois mesmo pensando que estais a dizer a verdade, não conseguis resistir a apregoar a mentira. E a vossa mentira é medonha.”


O José ficou novamente calado e a Dona Rosa também. Passado algum tempo, a mãe vira-se para o filho e pede-lhe para rezar com ela. Ele levanta-se de imediato do banco e diz-lhe que se insistir na proposta a visita terminará nesse preciso momento. O silêncio instala-se de novo. A Dona Rosa ajoelha-se então sozinha, virada para o crucifixo da sala, junta as mãos, inclina a cabeça para o chão e reza. Os guardas prisionais fazem o mesmo, mas de pé. O José deixa-se ficar sentado a olhar para os pés.


Após a oração, a Dona Rosa senta-se de novo na cadeira, enxuga as lágrimas com o lenço e entrega ao filho as iguarias que lhe trouxe, avisando-o: “Não as desperdices com os teus camaradas e amigos.” Ele respondeu-lhe com a verdade, que também era um enigma para a sua mãe: “Os meus camaradas não são os meus amigos e os meus amigos não são meus camaradas.”


A Dona Rosa, surpreendida com a deixa, questionou-o: “Zangaste-te com os teus camaradas?” “Prefiro não responder.” “É uma boa notícia. Então já não tens amigos…” “Amigos tenho, mas não são os meus camaradas. São os outros.” “Quais outros? Os outros que não são comunistas são ladrões e assassinos. Não me digas que…” “Mãe, em Lucas 23:32-43 é contada a história de Jesus e dois ladrões na cruz. Um desses ladrões demonstrou uma atitude reta para com Jesus e pediu-lhe uma bênção futura. “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” foi a resposta que Jesus lhe deu. Para as pessoas, este é o parágrafo mais consolador da Bíblia.”


“Deus te abençoe, meu filho, voltaste ao caminho da fé e da esperança. Apesar disso, não faças muita confiança nos teus novos amigos. Come, reza e descansa. E afasta-te dos teus antigos camaradas.” “Assim farei mãe. E agradece os cigarros ao pai. E que Deus te abençoe e a mim não me desampare.” E riu-se. A Dona Rosa fez o mesmo.


O guarda prisional disse-lhes que a visita tinha terminado.

 

170 – Como já dissemos no capítulo anterior, quando estamos presos ...

 

(continua)

 

11
Set13

Chá de Urze com Flores de Torga - 6


 

Na última semana fizemos aqui uma pequena introdução aos diários de Torga e até deixámos aqui duas passagens do seu diário e a primeira que faz alusão a terras flavienses. Pois os diários de Torga irão passar por aqui muitas vezes, principalmente as passagens escritas aqui em Chaves e na região. Mas hoje, embora também tenhamos aqui duas passagens do seus diários vamos abordar as entrevistas.

 

Torga era conhecido por ser avesso a entrevistas, a ser fotografado, a ser abordado pela “nata intelectual”. As únicas abordagens que penso que ele ia consentindo e até gostava, eram as despretensiosas das pessoas simples do povo. Curiosamente a segunda passagem nos seus diários escrita em Chaves Torga aborda e assume isto mesmo que acabo de dizer:

 

Chaves, 23 de Setembro de 1958

 

Converso e discuto até onde me vejo obrigado com um intelectual amigo que as mazelas trouxeram também aqui, mas largo-o logo que posso e regresso sorrateiramente a um convívio menos tenso e mais fecundo. Desço os degraus do mercado, e aí estou eu perdido e achado no meio da verdadeira vida.

Sem esperança nos letrados – as desilusões têm sido muitas -, volto-me para os analfabetos. Junto deles encontro ainda o riso, a indignação e o espanto (…)


Miguel Torga, in Diário VIII

 

Torga gostava da liberdade dos seus passos. Eu diria mesmo que herdara o instinto selvagem dos animais das montanhas ao gostar de passar esquivo que encontrava na palavra o seu refúgio e o seu abrigo, onde também gostava de ser livre.

 

Chaves, 14 de Setembro de 1986


Na sala de repouso das Caldas a descansar do banho. Entra um desconhecido, também aquista, estende-se numa cadeira à minha frente e abre um livro meu. Ainda alagado, sem cuidar de resfriados, ergo-me e saio discretamente. Escrevo para que me leiam; não gosto, porém, de me ver lido. Desvendo o indesvendável, mas o pudor impede-me de ser o autor exposto da transgressão.


Miguel Torga, in Diário XIV  

 

(Um aparte que não tem nada a ver com a prosa de hoje – Torga a partir de 1960 e até quase os últimos dias da sua vida,  passou a ser um frequentador assíduo das Caldas de Chaves e daí haver tantos registos nos seus diários de Chaves, das aldeias de Chaves e da região de Chaves. Sem qualquer intenção Torga - o maior poeta e escritor de Portugal e dos Portugueses - ao ser simultaneamente o médico Adolfo Rocha tornou-se um embaixador das Caldas de Chaves e de Chaves. Essa assiduidade de frequência das Caldas, acabam por ser também um reconhecimento dos seus bens terapêuticos. Inocentemente, sem ser com  a inocência  das crianças, os responsáveis das termas nunca se aproveitaram dessa realidade, agora imperdoável por parte dos flavienses (responsáveis) é nunca ter sido feita a devida homenagem a Miguel Torga. Já sei que Torga dá nome a avenidas flavienses, mas numa terra onde até a Betesga do Olho … tem direito a placa, isso é pouco ou nada e depois, o nome numa placa de uma avenida, nada mais é do que um nome numa placa de uma avenida, é homenagem pouca para um terra que até ergue estátuas a quem abandonou a população de Chaves e a entregou ao inimigo invasor. Era este o aparte.)

 

Tal como dizia no início do post,  hoje quero deixar aqui a introdução às entrevistas de Torga, das poucas que Torga  concedeu, fica aqui hoje uma na íntegra, sem mais palavras, e que foi concedida a  César António Molina para publicação no  JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 26 de Janeiro e 1988:




Torga

A Solidão Solitária e Criadora

 

" Acabei por me incompatibilizar com tudo"

  

Miguel Torga, um "gigante" da literatura de língua portuguesa, continua, aos 80 anos, na solidão solidária e criadora do seu "retiro" em Coimbra, a trabalhar e ampliar uma obra que ficará como um dos marcos fundamentais das nossas letras e que está a ter crescente, e justa, projecção internacional. O JL dedica-lhe estas páginas, começando com um exclusivo cuja importância será desnecessário enaltecer: trata-se, praticamente, nesta altura da sua vida, da primeira entrevista do grande poeta, que apenas em 1977, em Bruxelas, quando lhe foi atribuído o Grande Prémio Internacional de Poesia, fez algumas declarações à imprensa. A entrevista foi conduzida por César António Molina, conhecido escritor e poeta espanhol, amigo de Portugal, que é agora um dos responsáveis pelo novo suplemento "Cultura", do "Diário 16", de Madrid, com o qual o JL estabeleceu um acordo de intercâmbio. A entrevista é publicada aqui em exclusivo, com a concordância do próprio escritor, que deu também ao nosso jornal um poema inédito, Inéditas são também as fotografias de Fernando Marques, (mais conhecido, em Coimbra, pela alcunha de Formidável), e que constituem por si, também, documentos significativos, dado que Torga, além de não falar a jornais e não autografar livros, também é avesso a deixar-se fotografar. (?)

 


César António Molina


César António Molina- Pensa, como afirmou Saramago, que a entrada da Espanha e de Portugal para o Mercado Comum pode provocar a perda do carácter autóctone da Península Ibérica, a dissolução da sua cultura, da sua maneira de ser?


Miguel Torga - A nossa entrada no Mercado Comum tem vários perigos. Em primeiro lugar, vamos ser forçados a adaptar-nos a mentalidades que não são iguais às nossas. Todos os povos peninsulares contribuíram grande e singularmente para a cultura do mundo ocidental. Demos à Europa uma dimensão universal que não tinha, uma vez que levámos os nossos hábitos, os nossos costumes, o cristianismo, a língua, a arquitectura para as Américas, a África e a Ásia. Tornámos universais os nossos valores. E só agora vamos entrar numa Europa que os não vai aceitar como os povos que contactámos noutros tempos, uma vez que estes não tinham a cultura que a Europa tem agora. Eram povos primitivos, com um desenvolvimento inferior ao nosso, e aí pudemos realmente dar largas ao nosso génio. Agora vamos contactar com outros povos que têm uma cultura muito definida, de modo que nos vai ser difícil competir com essas outras civilizações, fazer ouvir a nossa voz no conjunto de nações com as quais teremos de conviver.


P. - Acha que vai haver perigo para a identidade dos nossos povos?


R. -
Julgo que a nossa identidade vai ser posta à prova. O meu desejo é que tenhamos a força e o engenho suficientes para adoptar, na relação com eles, as mesmas técnicas e as mesmas leis sociais, desenvolvendo ao mesmo tempo o génio suficiente para preservar a nossa identidade. Assim, quando regressarmos desse contacto estaremos mais enriquecidos. Isto é válido para Portugal e para o resto dos povos ibéricos.


A ideia de iberismo


P. - Que entende por iberismo?


R. -
Considero que os povos ibéricos são nações. São mais do que aglomerados de povos; quer dizer, nações. A Península funciona para mim como um continente. Os povos não têm fronteiras visíveis, mas têm fronteiras individuais e dentro delas são irredutíveis. Porque não há dúvida nenhuma de que o povo galego não tem nada a ver, mas mesmo nada, com o castelhano, nem o andaluz com o catalão, e o mesmo se aplica ao basco. É evidente que estão todos ligados por laços históricos, culturais, mas têm uma personalidade específica e, portanto, o perigo da nossa entrada na Europa é igual para todos os povos da Ibéria.


P. - Pensa que a sua ideia de iberismo é a mesma que de fendeu ao longo de toda a sua vida?


R. -
O iberismo é um problema sem solução enquanto Castela mantiver esse espírito centrípeto. Tem de perceber que não pode submeter os povos periféricos porque, como eu dizia há pouco, são tão específicos, tão próprios, têm uma tal personalidade, que são realmente invencíveis, E, claro, o povo português conseguiu sempre, e apesar de tudo, ser independente. Os povos galego, catalão, basco ou asturiano não o conseguiram até ao dia de hoje, mas continuam irredutíveis. De modo que Castela tem de se convencer do seguinte: que formamos uma unidade geográfica, que todos juntos podemos ser uma grande força cultural, mas cada qual na sua própria casa.


P. - No entanto, em todos os seus "Diários" mostra um carinho especial por Castela Parece-me ter percebido, como leitor, que de todos os povos espanhóis a que se refere, é por Castela que sente mais admiração. Uma Castela nada actual, multo Influenciada pelas Ideias de 98. Uma Castela que o emociona pela sua paisagem agreste, dura, sem concessões, um tanto metafísica.


R. -
Não, o problema é diferente. Conhece o Alentejo?


P. - Sim.


R. -
Pois bem, escrevi um livro sobre Portugal. Há nele umas páginas sobre essa zona que são talvez as mais conseguidas, ou pelo menos assim são consideradas pelos alentejanos, que pensam que é o melhor que se escreveu sobre eles.


O Alentejo é completamente oposto a Trás-os-Montes. E começo dizendo: "Há duas coisas grandes em Portugal: Trás-os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, e o Alentejo é a respiração, é o alento." Passa-se o mesmo em relação a Castela. Tenho uma grande admiração por Castela. Justamente porque significa uma singularidade especial dentro daquilo que conheço no mundo. É algo de seco, forte, valente. Mas isto não quer dizer que toda a Península seja um feudo castelhano. Portanto, a minha admiração por Castela não equivale a uma entrega incondicional. É a verificação de que, em relação aos Outros povos, teve uma força fanática que um galego ou um português não tiveram. Nós temos outras qualidades que eu não contraponho, mas que ponho ao lado e que para mim são mais simpáticas do que esse fanatismo do povo espanhol. Os castelhanos sempre levaram as coisas até às suas últimas consequências. Não obstante, faço nos "Poemas Ibéricos" referências a castelhanos e a muitos outros que o não são. Picasso não era castelhano, Lorca também não, nem Goya, etc.; no entanto, são todos figuras dos "Poemas ibéricos. Evidentemente, temos de reconhecer que a história que se fez até agora acusa a predominância da marca castelhana. O que não quer dizer que de futuro não tenha uma marca galega, catalã ou basca.


A necessidade
do "Diário"


P. - O diário é um género que, tanto em Espanha como em Portugal, tem sido muito pouco praticado. No entanto, dois dos livros mais importantes da literatura portuguesa contemporânea são precisamente os seus "Diários", e outro que aparentemente também o é, "O Livro do Desassossego", de Bernardo Soares (Pessoa). Atrever-me-ia a dizer que, com a sua forma peculiar de o redigir, criou uma espécie de género dentro do género.


R. -
O diário foi começado quando eu era uma criança. Continuou durante a etapa trágica da ditadura. Portanto, não havia liberdade de pensamento. Existia uma censura brutal. Todos os jornais estavam calados, tal como os livros. Publiquei vários que foram apreendidos imediatamente, como sabe, estive preso. A minha mulher foi expulsa da Universidade. Então, o diário foi surgindo de várias necessidades que havia em mim. Uma delas, uma das mais importantes, foi precisamente a de estar em oposição a um poder totalmente autoritário e opressivo. Assim ia mantendo as minhas próprias contas em dia com o espírito, ia clarificando em pensamento a minha situação humana e literária, e também sentimental. Depois sucedia o seguinte. Todos os livros que publicava eram apreendidos e era como se estivessem mortos. O "Diários", como o editava de três em três anos, ou de quatro em quatro unos, durante esse período de tempo tinha a certeza de que eu estava intacto ali e que dispunha, portanto, do meu próprio retrato. Era assim uma espécie de espelho diante da minha própria consciência. Reforçava-me nesse espelho, aumentava a minha coragem para continuar a lutar e a resistir. Depois o "Diário" também era sequestrado, mas eu já tinha iniciado outro e continuava a estar diante desse mesmo espelho. Sou um andarilho, um homem que gosta de conhecer as coisas. E uma das maneiras de fixar as ilusões, as sensações, as impressões que tinha diante das coisas ao recordá-las, ao querer torná-las presentes para o seu estudo, era registando-as. E o "Diário" é isso. Por outro lado também havia a parte poética. Como sabe, no "Diário" há muita poesia. Recorda-se do primeiro poema que escrevo no "Diário"? É um dos mais significativos. É realmente a chave. Intitulava-se "Santo e senha": "Deixem passar quem vai na sua estrada/ Deixem passar quem vai cheio de noite e de luar/Deixem passar e não lhe digam nada..." O "Diário" queria abrir uma brecha numa grande solidão, numa grande opressão. É por isso que começo com esse "Deixem passar, deixem passar!", O "Diário" é o resumo de todos aqueles caminhos que percorri e que ainda continuo a percorrer. É a história de um homem insubmisso, de um poeta rebelde, de um homem inconformista; portanto um homem no fundo solidário, mas solitário.




Escrita,
acto ontológico


P. - O que poderia explicar a ruptura com o grupo da "Presença". A sua auto-marginalização do mundo literário e das correntes que se impuseram na literatura portuguesa a partir dos anos quarenta.


R. -
Desde jovem sempre tive a impressão de que a arte, a escrita, era um acto ontológico, um acto sagrado. As revistas literárias e os movimentos são sempre coisas da juventude. Eu também cometi esse pecado durante algum tempo. Tive esse romantismo, essa inclinação para me meter nalgumas aventuras, aventuras literárias, que surgiam sempre de conversas amistosas de café. Mas mesmo nesses momentos sempre tive a impressão de que a literatura não era isso, era uma coisa muitíssimo mais séria, mais profunda e, sobretudo, tremendamente solitária. Que o indivíduo tinha de lutar sozinho contra os seus próprios demónios. Foi assim que acabei por me incompatibilizar não só com o mundo literário, mas também com tudo. Porque no fundo fui perdendo tudo. Fui um estudante rebelde, por tanto um homem incompatibilizado com a ditadura... Inclusive, durante a revolução de 25 de Abril podia ter tirado parti do dos meus anos de luta, mas quando vi que os militares estavam outra vez metidos no caso, pensei que também aquilo nada tinha a ver comigo.


Torga sobre o "Diário":

" Uma espécie de espelho

diante da minha própria consciência"


Agora a Universidade de Coimbra - e também outras universidades - querem fazer-me, nada mais, nada menos do que doutor honoris causa. Disse que não, que nem lhes passe isso pela cabeça.


P. - Também foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel da Literatura.


E. -
Sim, é verdade. Mas isso não tem menor interesse.


P. - Como vão as suas relações com a Imprensa? Continua a atormentá-los com correcções sucessivas?


R. -
As minhas relações com a Imprensa são boas. Na acepção em que ela me ignora e eu faço o mesmo. Ou seja, ignoramo-nos mutuamente. De vez em quando dizem coisas a meu respeito, às vezes certas, às vezes erradas, mas eu não digo nem que estão bem, nem que estão mal. De modo que as nossas relações são boas.


As línguas ibéricas
no mundo


P. - Não há multo tempo levantou-se uma impressionante polémica em Portugal por causa da revisão ortográfica com o Brasil. Talvez venha a suceder um dia o mesmo entre a Espanha e a América de língua espanhola. Qual é a sua opinião?


R. -
O problema da língua portuguesa no Brasil é semelhante ao que há em relação aos outros países africanos. Evidentemente que é impossível manter a língua na sua pureza clássica, porque isso nem sequer acontece em Portugal. Gil Vicente depararia hoje com uma língua que sofreu uma grande evolução. É impossível manter uma língua estática, porque a língua é por natureza um ser dinâmico. No Brasil, devido à mistura de raças e procedências, teve uma dinâmica especial. Já comentei essa preocupação há muitos anos, por ocasião da presença aqui de um escritor brasileiro. Tive de pronunciar umas palavras e disse: "Quereria manifestar ao ilustre convidado o nosso apreço pelo que de virginal, original e brasileiro foi escrito numa língua que, apesar das transfigurações do tempo, continuará a ser portuguesa na raiz e no génio." Portanto já nessa altura admitia que o tempo muda a língua. Mas no fundo, na sua tradição e capacidade expressiva, continua a ser igual. Estou totalmente convencido de que o português, tal como o espanhol na América, vai permanecer na sua essência, mas não há dúvida de que as duas línguas vão sofrer ali uma grande transformação. Existe ali uma dinâmica nova, são países jovens num processo de transformação muito rápido. Há tempos fiz a experiência com um amigo. Dei-lhe a ler uma revista, um parágrafo inteiro, e ele não conseguiu ler uma única palavra. Estava escrito com modismos, com termos que nós aqui não podemos entender. Por isso é conveniente que as instituições debatam esse assunto e estabeleçam acordos que, é claro, não servem para nada. A língua há-de sempre continuar o seu caminho sem entraves.


P. - Seriam necessários mais institutos e centros de ensino dos nossos respectivos idiomas em todo o mundo? Especialmente em lugares onde a nossa presença linguística e cultural pode vir a desaparecer?


R. -
Um país rico como a França ou a Inglaterra pode manter esse tipo de instituições. Conseguiram manter assim as suas línguas com certa pureza, inclusive nas regiões africanas ou no Canadá. Mas finalmente vai acontecer-lhes o mesmo do que a nós. A Espanha e Portugal não são países tão ricos. Não têm fundos para salvaguardar essa pureza. Evidentemente que se nós pudéssemos manter no Brasil ou em África muitos professores de português, essa deterioração seria muito mais lenta. As nossas línguas vão sofrer as vicissitudes por que passaram todas as línguas através dos séculos.


P. - E Igualmente surpreendente que o livro português não tenha uma divulgação fácil no Brasil.


R. -
A verdade é que não se divulga por meras razões económicas. Damos sempre com o mesmo problema. É sempre a nossa pobreza que nos não permite ter uma maior presença e autoridade moral. Seria preciso ter lá mais livrarias. E também dispor de acordos melhores, para ultrapassar a burocracia alfandegária...


P. - Acha que era necessário na tradução espanhola de "A Criação do Mundo", a tradutora, Eloísa Alvarez, ter acrescentado aquela série de notas abundantes, a maioria delas de carácter histórico? Crê que o desconhecimento ainda é assim tão grande?


R. -
Temos vivido voltados de costas do ponto de vista cultural. Sempre o condenei. Procurei conhecer tanto a sua história como a minha. Creio que é uma coisa ridícula prescindir de semelhante riqueza cultural tão próxima. Recorda-se talvez de que no prólogo da edição espanhola de "Bichos" disse: "A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva, mas a minha pátria telúrica só termina nos Pirinéus. Tenho no peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade basca, dos perfumes do Levante e da lua da Andaluzia. Sou, pela graça da vida, peninsular." Nunca deixei de pensar exactamente o mesmo. Além disso, creio que a tradutora evitou tanto quanto possível as notas eruditas. A maioria delas enriquecem a leitura: por exemplo, quando explicam as tradições transmontanas, E na parte sobre o Brasil seria também interessante explicar ao leitor a inclusão de americanismos.


Aprendizagem
do mundo


P. - Em "A Criação do Mundo" as únicas referências eróticas que aparecem referem-se à sua estada no Brasil. É como se depois do seu regresso a Portugal o meio lhe tivesse imposto um tipo de conduta diferente...


R. -
É no Brasil que se dá o nascimento da sexualidade da personagem. O que está de acordo com a ordem normal da vida. Mas que também coincide com uma precocidade que é determinada pelo clima. Lá, uma mulher de doze ou catorze anos é já uma verdadeira mulher. Aos vinte anos está praticamente acabada. Criaram, inclusive, um termo que nós aqui não temos. "Um broto", Broto, de brotar. Evidentemente que a sexualidade lá é mais precoce e nascente. A personagem quando vai daqui já teve as primeiras visões, os primeiros vislumbres, mas tudo muito brumosamente. Os primeiros contactos foram com uma menina da sua terra, depois em Lisboa, quando está no hotel e escuta o ruído da água. Há algo que ele suspeita vagamente, mas é todo muito brumoso. A sexualidade, enquanto não é satisfeita, é uma curiosidade. No Brasil desperta de uma maneira brutal, como a verdadeira pujança da selva tropical. Depois o indivíduo toma consciência dessa força e assenhoreia-se dela. "A Criação do Mundo" é sobretudo essa tomada de consciência por uma pessoa da sua passagem pela vida num momento e em circunstância determinadas. Toma-se consciência do fenómeno sexual, mas também do religioso, do político, disto e daquilo. Vai-se reagindo de acordo com as circunstâncias. Uma vez assumido, já não há necessidade de voltar ao assunto. É o que acontece com um homem adulto, com aquele que não ficou parado na adolescência, porque há pessoas que nunca resolvem o problema sexual e que ficam paradas nessa data inicial das suas vidas.


P. - Alguma crítica primária disse que "A Criação do Mundo" era uma autobiografia. Sou mais partidário da opinião de Clara Rocha, quando diz que "é um processo que se inicia com a apreensão de um mundo real e termina com a construção de um mundo fictício".


R. -
Da mesma maneira que a poesia é muito mais verdadeira do que o poeta, aquele livro é muito mais verdadeiro do que eu. É mais verdadeiro do que a minha própria verdade. Por isso é um livro paradigmático.


P. - O tema religioso aparece, mas dilui-se ao longo dos diferentes dias.


R. -
Uma vez esclarecido o assunto, não é preciso voltar a ele. O problema religioso surge quando somos pequenos e temos de ir à missa por obrigação e ainda por cima comungar. Em breve começam as dúvidas, que são a etapa mais dolorosa. Pensamos que aquilo não tem solução. "A Criação do Mundo" não dá solução para esse assunto, simplesmente porque não há solução. Não sou ateu, mas também não sou crente. Sou um ser religioso, como qualquer pessoa. Nada mais. Muitas vezes as pessoas perguntam-me porque é que deixei no ar alguns dos aspectos de que falou. Muito simplesmente porque não há solução, ou pelo menos porque não a encontrei.


Quem são os heróis


P. - Os seus heróis não têm uma história relevante, não têm de perpetrar façanhas. São pessoas simples, a maior parte das vezes camponeses...


E. -
As minhas personagens não são, evidentemente, heróis clássicos. No entanto, não deixam de ter o seu heroísmo, mas é um heroísmo modesto, quotidiano. Foi nesse sentido que escrevi "Rua", "Pedras Lavradas" e "Bichos", que é um livro simbólico. Mas "Contos da Montanha" já é outra coisa, porque sendo também heróis quotidianos têm uma força de tal ordem que transcendem muito mais. O meu conceito do herói não é representado por Vasco da Gama. Para mim, o herói é um indivíduo que dá o máximo da sua humanidade. Não é o homem que pratica uma façanha esporádica à qual pode ter sido forçado pelas circunstâncias, podendo inclusivamente não estar à altura delas. Os meus heróis não são heróis à força, são seres modestos, pessoas realmente humildes, com tanta humildade que alcançam a heroicidade e universalidade. Pelo menos, foi essa a intenção com que eu escrevi. E, claro, isto é assim salvo em certas histórias, como, por exemplo, no último capítulo de "Bichos", intitulado "Vicente". Este é uma figura simbólica, mítica, que encarna a liberdade na sua expressão máxima. O senhor Ventura, por exemplo, é o herói português, uma espécie de D. Quixote. Geralmente, os heróis não estão em contacto com a realidade, são figuras criadas artificialmente. O meu herói é um homem vulgar, que dá tudo o que tem dentro de si. Todos nós temos uma capacidade de o ser. Da maneira como o entendo, estão enraizados, e a raiz condiciona o comportamento nalguns aspectos.

 


"Todos os livros que publicava eram apreendidos"      


P. - Que papel tem então para si a cidade e as suas personagens, envolvidas nesse ambiente diferente?


R. -
As minhas personagens urbanas também estão em "Ruas", "Pedras Lavradas" e, principalmente, em "A Criação do Mundos". Para mim, a cidade é o lugar onde o homem se pode realizar culturalmente. Mas as minhas raízes profundas não estão na cidade. As minhas raízes continuam a ser telúricas.


P. - Que limites impõe ao local e ao universal?


R. -
O universal é o local sem paredes. Quando um indivíduo se realiza humanamente ultrapassa esses limites, sem por isso ter de perder as suas raízes. O mal da nossa literatura actual é a ausência de raízes, é ser uma literatura igual à de todos os lados e, portanto, não tem a marca da personalidade do criador, nem os heróis que lhe dão movimento têm personalidade. Para mim a paisagem, o meio, têm uma importância decisiva, porque fazem o homem, fazem-no universal, na medida em que é capaz de encarnar todas as suas potencialidades. Aqui, em Coimbra, que é uma terra desenraizada, continuo a sentir as forças anímicas que recebi da minha terra.


P. - Que papel atribui ao onírico, ao fantástico, ao mágico?


R. -
A mim interessa-me muito o que fez Gabriel Garcia Márquez. É uma grande literatura lírica, que parte precisamente da sua terra. Ele retomou essa paisagem, as suas recordações, e é isso que faz a sua universalidade. Fez com Macondo o mesmo que eu quis fazer com São Martinho de Anta.


César António Molina, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, 26 de Janeiro e 1988

 

Entrevista retirada de http://www.netprof.pt/

 

10
Set13

Intermitências


 

A Insónia

 

Há madrugadas em que é inexplicavelmente forçado a lutar contra o tempo como um caçador solitário. Então, planeia emboscadas numa realidade complexa e mutante. Não desarma, mas quando anda a caçar sonhos, não se contenta só com uma presa...


Isto porque há dias em que só vê, ouve e conta histórias que não embalam. Muita violência, agressão gratuita, deslealdade. Fica ansioso, nervoso, com mente altamente reactiva, com transtornos emocionais.


Como seria se tivesse nascido num país em guerra? Como seria se tivesse nascido num país com fome? Como seria se tivesse nascido num país sem o direito de dizer o que pensa ou de deixar o coração escolher a quem amar? Não, não tem razões para acordar... nem para dormir...


Quanto mais lida com elas, mais odeia as madrugadas. Nunca quer pegar na caçadeira, mas sente-ameaçado pelo silêncio e sombrio delas, como se algo ruim estivesse prestes a acontecer ou algo feliz e ansiosamente aguardado nunca mais acontecesse. Então, enquanto planeia as suas emboscadas, pensa: quanto tempo falta para o desespero?


Cansou-se de ser um caçador solitário involuntário. Apenas quer viver dia e noite cumprindo a missão com que foi posto ao mundo. Sem pressa de partir nem de chegar. Para conseguir isto, pregar olho e não despertar sem razão, disseram-lhe que não se pode mover muito, que tem de ficar quieto, silencioso no seu lugar. Cego, surdo e mudo.


Catacumbas de Paris, França, Agosto 2005 - Foto de Sandra Pereira


Tanto mais fácil, ao não ter nascido num país em guerra, com fome ou oprimido. Então, o caçador solitário planeia mais facilmente as emboscadas numa madrugada complexa e mutante, já que, nessas circunstâncias, o sucesso só depende da astúcia colocada no plano e das armas com que luta.

Já nem sabe se odeia mais as madrugadas ou que vem a seguir a elas. Isto porque há dias em que só vê, ouve e conta histórias que desencantam. Muito egoísmo, cinismo, deslealdade. Não tem meios para controlar nada: fica ansioso, nervoso, com mente altamente reactiva, com transtornos emocionais.


E ei-lo, mais uma vez numa longa madrugada que parece não ter fim, transtornado em caçador solitário que nunca se contenta com uma só presa, nem que seja a mais bela do bosque...


... enquanto muitos outros caçadores por esse mundo fora, já nem armas têm para caçar, quanto mais tempo para dar-se conta: quanto tempo falta para o desespero?

 

Sandra Pereira



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