Na última semana fizemos aqui uma pequena introdução aos diários de Torga e até deixámos aqui duas passagens do seu diário e a primeira que faz alusão a terras flavienses. Pois os diários de Torga irão passar por aqui muitas vezes, principalmente as passagens escritas aqui em Chaves e na região. Mas hoje, embora também tenhamos aqui duas passagens do seus diários vamos abordar as entrevistas.
Torga era conhecido por ser avesso a entrevistas, a ser fotografado, a ser abordado pela “nata intelectual”. As únicas abordagens que penso que ele ia consentindo e até gostava, eram as despretensiosas das pessoas simples do povo. Curiosamente a segunda passagem nos seus diários escrita em Chaves Torga aborda e assume isto mesmo que acabo de dizer:
Chaves, 23 de Setembro de 1958
Converso e discuto até onde me vejo obrigado com um intelectual amigo que as mazelas trouxeram também aqui, mas largo-o logo que posso e regresso sorrateiramente a um convívio menos tenso e mais fecundo. Desço os degraus do mercado, e aí estou eu perdido e achado no meio da verdadeira vida.
Sem esperança nos letrados – as desilusões têm sido muitas -, volto-me para os analfabetos. Junto deles encontro ainda o riso, a indignação e o espanto (…)
Miguel Torga, in Diário VIII
Torga gostava da liberdade dos seus passos. Eu diria mesmo que herdara o instinto selvagem dos animais das montanhas ao gostar de passar esquivo que encontrava na palavra o seu refúgio e o seu abrigo, onde também gostava de ser livre.
Chaves, 14 de Setembro de 1986
Na sala de repouso das Caldas a descansar do banho. Entra um desconhecido, também aquista, estende-se numa cadeira à minha frente e abre um livro meu. Ainda alagado, sem cuidar de resfriados, ergo-me e saio discretamente. Escrevo para que me leiam; não gosto, porém, de me ver lido. Desvendo o indesvendável, mas o pudor impede-me de ser o autor exposto da transgressão.
Miguel Torga, in Diário XIV
(Um aparte que não tem nada a ver com a prosa de hoje – Torga a partir de 1960 e até quase os últimos dias da sua vida, passou a ser um frequentador assíduo das Caldas de Chaves e daí haver tantos registos nos seus diários de Chaves, das aldeias de Chaves e da região de Chaves. Sem qualquer intenção Torga - o maior poeta e escritor de Portugal e dos Portugueses - ao ser simultaneamente o médico Adolfo Rocha tornou-se um embaixador das Caldas de Chaves e de Chaves. Essa assiduidade de frequência das Caldas, acabam por ser também um reconhecimento dos seus bens terapêuticos. Inocentemente, sem ser com a inocência das crianças, os responsáveis das termas nunca se aproveitaram dessa realidade, agora imperdoável por parte dos flavienses (responsáveis) é nunca ter sido feita a devida homenagem a Miguel Torga. Já sei que Torga dá nome a avenidas flavienses, mas numa terra onde até a Betesga do Olho … tem direito a placa, isso é pouco ou nada e depois, o nome numa placa de uma avenida, nada mais é do que um nome numa placa de uma avenida, é homenagem pouca para um terra que até ergue estátuas a quem abandonou a população de Chaves e a entregou ao inimigo invasor. Era este o aparte.)
Tal como dizia no início do post, hoje quero deixar aqui a introdução às entrevistas de Torga, das poucas que Torga concedeu, fica aqui hoje uma na íntegra, sem mais palavras, e que foi concedida a César António Molina para publicação no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 26 de Janeiro e 1988:
Torga
A Solidão Solitária e Criadora
" Acabei por me incompatibilizar com tudo"
Miguel Torga, um "gigante" da literatura de língua portuguesa, continua, aos 80 anos, na solidão solidária e criadora do seu "retiro" em Coimbra, a trabalhar e ampliar uma obra que ficará como um dos marcos fundamentais das nossas letras e que está a ter crescente, e justa, projecção internacional. O JL dedica-lhe estas páginas, começando com um exclusivo cuja importância será desnecessário enaltecer: trata-se, praticamente, nesta altura da sua vida, da primeira entrevista do grande poeta, que apenas em 1977, em Bruxelas, quando lhe foi atribuído o Grande Prémio Internacional de Poesia, fez algumas declarações à imprensa. A entrevista foi conduzida por César António Molina, conhecido escritor e poeta espanhol, amigo de Portugal, que é agora um dos responsáveis pelo novo suplemento "Cultura", do "Diário 16", de Madrid, com o qual o JL estabeleceu um acordo de intercâmbio. A entrevista é publicada aqui em exclusivo, com a concordância do próprio escritor, que deu também ao nosso jornal um poema inédito, Inéditas são também as fotografias de Fernando Marques, (mais conhecido, em Coimbra, pela alcunha de Formidável), e que constituem por si, também, documentos significativos, dado que Torga, além de não falar a jornais e não autografar livros, também é avesso a deixar-se fotografar. (?)
César António Molina
César António Molina- Pensa, como afirmou Saramago, que a entrada da Espanha e de Portugal para o Mercado Comum pode provocar a perda do carácter autóctone da Península Ibérica, a dissolução da sua cultura, da sua maneira de ser?
Miguel Torga - A nossa entrada no Mercado Comum tem vários perigos. Em primeiro lugar, vamos ser forçados a adaptar-nos a mentalidades que não são iguais às nossas. Todos os povos peninsulares contribuíram grande e singularmente para a cultura do mundo ocidental. Demos à Europa uma dimensão universal que não tinha, uma vez que levámos os nossos hábitos, os nossos costumes, o cristianismo, a língua, a arquitectura para as Américas, a África e a Ásia. Tornámos universais os nossos valores. E só agora vamos entrar numa Europa que os não vai aceitar como os povos que contactámos noutros tempos, uma vez que estes não tinham a cultura que a Europa tem agora. Eram povos primitivos, com um desenvolvimento inferior ao nosso, e aí pudemos realmente dar largas ao nosso génio. Agora vamos contactar com outros povos que têm uma cultura muito definida, de modo que nos vai ser difícil competir com essas outras civilizações, fazer ouvir a nossa voz no conjunto de nações com as quais teremos de conviver.
P. - Acha que vai haver perigo para a identidade dos nossos povos?
R. - Julgo que a nossa identidade vai ser posta à prova. O meu desejo é que tenhamos a força e o engenho suficientes para adoptar, na relação com eles, as mesmas técnicas e as mesmas leis sociais, desenvolvendo ao mesmo tempo o génio suficiente para preservar a nossa identidade. Assim, quando regressarmos desse contacto estaremos mais enriquecidos. Isto é válido para Portugal e para o resto dos povos ibéricos.
A ideia de iberismo
P. - Que entende por iberismo?
R. - Considero que os povos ibéricos são nações. São mais do que aglomerados de povos; quer dizer, nações. A Península funciona para mim como um continente. Os povos não têm fronteiras visíveis, mas têm fronteiras individuais e dentro delas são irredutíveis. Porque não há dúvida nenhuma de que o povo galego não tem nada a ver, mas mesmo nada, com o castelhano, nem o andaluz com o catalão, e o mesmo se aplica ao basco. É evidente que estão todos ligados por laços históricos, culturais, mas têm uma personalidade específica e, portanto, o perigo da nossa entrada na Europa é igual para todos os povos da Ibéria.
P. - Pensa que a sua ideia de iberismo é a mesma que de fendeu ao longo de toda a sua vida?
R. - O iberismo é um problema sem solução enquanto Castela mantiver esse espírito centrípeto. Tem de perceber que não pode submeter os povos periféricos porque, como eu dizia há pouco, são tão específicos, tão próprios, têm uma tal personalidade, que são realmente invencíveis, E, claro, o povo português conseguiu sempre, e apesar de tudo, ser independente. Os povos galego, catalão, basco ou asturiano não o conseguiram até ao dia de hoje, mas continuam irredutíveis. De modo que Castela tem de se convencer do seguinte: que formamos uma unidade geográfica, que todos juntos podemos ser uma grande força cultural, mas cada qual na sua própria casa.
P. - No entanto, em todos os seus "Diários" mostra um carinho especial por Castela Parece-me ter percebido, como leitor, que de todos os povos espanhóis a que se refere, é por Castela que sente mais admiração. Uma Castela nada actual, multo Influenciada pelas Ideias de 98. Uma Castela que o emociona pela sua paisagem agreste, dura, sem concessões, um tanto metafísica.
R. - Não, o problema é diferente. Conhece o Alentejo?
P. - Sim.
R. - Pois bem, escrevi um livro sobre Portugal. Há nele umas páginas sobre essa zona que são talvez as mais conseguidas, ou pelo menos assim são consideradas pelos alentejanos, que pensam que é o melhor que se escreveu sobre eles.
O Alentejo é completamente oposto a Trás-os-Montes. E começo dizendo: "Há duas coisas grandes em Portugal: Trás-os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, e o Alentejo é a respiração, é o alento." Passa-se o mesmo em relação a Castela. Tenho uma grande admiração por Castela. Justamente porque significa uma singularidade especial dentro daquilo que conheço no mundo. É algo de seco, forte, valente. Mas isto não quer dizer que toda a Península seja um feudo castelhano. Portanto, a minha admiração por Castela não equivale a uma entrega incondicional. É a verificação de que, em relação aos Outros povos, teve uma força fanática que um galego ou um português não tiveram. Nós temos outras qualidades que eu não contraponho, mas que ponho ao lado e que para mim são mais simpáticas do que esse fanatismo do povo espanhol. Os castelhanos sempre levaram as coisas até às suas últimas consequências. Não obstante, faço nos "Poemas Ibéricos" referências a castelhanos e a muitos outros que o não são. Picasso não era castelhano, Lorca também não, nem Goya, etc.; no entanto, são todos figuras dos "Poemas ibéricos. Evidentemente, temos de reconhecer que a história que se fez até agora acusa a predominância da marca castelhana. O que não quer dizer que de futuro não tenha uma marca galega, catalã ou basca.
A necessidade
do "Diário"
P. - O diário é um género que, tanto em Espanha como em Portugal, tem sido muito pouco praticado. No entanto, dois dos livros mais importantes da literatura portuguesa contemporânea são precisamente os seus "Diários", e outro que aparentemente também o é, "O Livro do Desassossego", de Bernardo Soares (Pessoa). Atrever-me-ia a dizer que, com a sua forma peculiar de o redigir, criou uma espécie de género dentro do género.
R. - O diário foi começado quando eu era uma criança. Continuou durante a etapa trágica da ditadura. Portanto, não havia liberdade de pensamento. Existia uma censura brutal. Todos os jornais estavam calados, tal como os livros. Publiquei vários que foram apreendidos imediatamente, como sabe, estive preso. A minha mulher foi expulsa da Universidade. Então, o diário foi surgindo de várias necessidades que havia em mim. Uma delas, uma das mais importantes, foi precisamente a de estar em oposição a um poder totalmente autoritário e opressivo. Assim ia mantendo as minhas próprias contas em dia com o espírito, ia clarificando em pensamento a minha situação humana e literária, e também sentimental. Depois sucedia o seguinte. Todos os livros que publicava eram apreendidos e era como se estivessem mortos. O "Diários", como o editava de três em três anos, ou de quatro em quatro unos, durante esse período de tempo tinha a certeza de que eu estava intacto ali e que dispunha, portanto, do meu próprio retrato. Era assim uma espécie de espelho diante da minha própria consciência. Reforçava-me nesse espelho, aumentava a minha coragem para continuar a lutar e a resistir. Depois o "Diário" também era sequestrado, mas eu já tinha iniciado outro e continuava a estar diante desse mesmo espelho. Sou um andarilho, um homem que gosta de conhecer as coisas. E uma das maneiras de fixar as ilusões, as sensações, as impressões que tinha diante das coisas ao recordá-las, ao querer torná-las presentes para o seu estudo, era registando-as. E o "Diário" é isso. Por outro lado também havia a parte poética. Como sabe, no "Diário" há muita poesia. Recorda-se do primeiro poema que escrevo no "Diário"? É um dos mais significativos. É realmente a chave. Intitulava-se "Santo e senha": "Deixem passar quem vai na sua estrada/ Deixem passar quem vai cheio de noite e de luar/Deixem passar e não lhe digam nada..." O "Diário" queria abrir uma brecha numa grande solidão, numa grande opressão. É por isso que começo com esse "Deixem passar, deixem passar!", O "Diário" é o resumo de todos aqueles caminhos que percorri e que ainda continuo a percorrer. É a história de um homem insubmisso, de um poeta rebelde, de um homem inconformista; portanto um homem no fundo solidário, mas solitário.
Escrita,
acto ontológico
P. - O que poderia explicar a ruptura com o grupo da "Presença". A sua auto-marginalização do mundo literário e das correntes que se impuseram na literatura portuguesa a partir dos anos quarenta.
R. - Desde jovem sempre tive a impressão de que a arte, a escrita, era um acto ontológico, um acto sagrado. As revistas literárias e os movimentos são sempre coisas da juventude. Eu também cometi esse pecado durante algum tempo. Tive esse romantismo, essa inclinação para me meter nalgumas aventuras, aventuras literárias, que surgiam sempre de conversas amistosas de café. Mas mesmo nesses momentos sempre tive a impressão de que a literatura não era isso, era uma coisa muitíssimo mais séria, mais profunda e, sobretudo, tremendamente solitária. Que o indivíduo tinha de lutar sozinho contra os seus próprios demónios. Foi assim que acabei por me incompatibilizar não só com o mundo literário, mas também com tudo. Porque no fundo fui perdendo tudo. Fui um estudante rebelde, por tanto um homem incompatibilizado com a ditadura... Inclusive, durante a revolução de 25 de Abril podia ter tirado parti do dos meus anos de luta, mas quando vi que os militares estavam outra vez metidos no caso, pensei que também aquilo nada tinha a ver comigo.
Torga sobre o "Diário":
" Uma espécie de espelho
diante da minha própria consciência"
Agora a Universidade de Coimbra - e também outras universidades - querem fazer-me, nada mais, nada menos do que doutor honoris causa. Disse que não, que nem lhes passe isso pela cabeça.
P. - Também foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel da Literatura.
E. - Sim, é verdade. Mas isso não tem menor interesse.
P. - Como vão as suas relações com a Imprensa? Continua a atormentá-los com correcções sucessivas?
R. - As minhas relações com a Imprensa são boas. Na acepção em que ela me ignora e eu faço o mesmo. Ou seja, ignoramo-nos mutuamente. De vez em quando dizem coisas a meu respeito, às vezes certas, às vezes erradas, mas eu não digo nem que estão bem, nem que estão mal. De modo que as nossas relações são boas.
As línguas ibéricas
no mundo
P. - Não há multo tempo levantou-se uma impressionante polémica em Portugal por causa da revisão ortográfica com o Brasil. Talvez venha a suceder um dia o mesmo entre a Espanha e a América de língua espanhola. Qual é a sua opinião?
R. - O problema da língua portuguesa no Brasil é semelhante ao que há em relação aos outros países africanos. Evidentemente que é impossível manter a língua na sua pureza clássica, porque isso nem sequer acontece em Portugal. Gil Vicente depararia hoje com uma língua que sofreu uma grande evolução. É impossível manter uma língua estática, porque a língua é por natureza um ser dinâmico. No Brasil, devido à mistura de raças e procedências, teve uma dinâmica especial. Já comentei essa preocupação há muitos anos, por ocasião da presença aqui de um escritor brasileiro. Tive de pronunciar umas palavras e disse: "Quereria manifestar ao ilustre convidado o nosso apreço pelo que de virginal, original e brasileiro foi escrito numa língua que, apesar das transfigurações do tempo, continuará a ser portuguesa na raiz e no génio." Portanto já nessa altura admitia que o tempo muda a língua. Mas no fundo, na sua tradição e capacidade expressiva, continua a ser igual. Estou totalmente convencido de que o português, tal como o espanhol na América, vai permanecer na sua essência, mas não há dúvida de que as duas línguas vão sofrer ali uma grande transformação. Existe ali uma dinâmica nova, são países jovens num processo de transformação muito rápido. Há tempos fiz a experiência com um amigo. Dei-lhe a ler uma revista, um parágrafo inteiro, e ele não conseguiu ler uma única palavra. Estava escrito com modismos, com termos que nós aqui não podemos entender. Por isso é conveniente que as instituições debatam esse assunto e estabeleçam acordos que, é claro, não servem para nada. A língua há-de sempre continuar o seu caminho sem entraves.
P. - Seriam necessários mais institutos e centros de ensino dos nossos respectivos idiomas em todo o mundo? Especialmente em lugares onde a nossa presença linguística e cultural pode vir a desaparecer?
R. - Um país rico como a França ou a Inglaterra pode manter esse tipo de instituições. Conseguiram manter assim as suas línguas com certa pureza, inclusive nas regiões africanas ou no Canadá. Mas finalmente vai acontecer-lhes o mesmo do que a nós. A Espanha e Portugal não são países tão ricos. Não têm fundos para salvaguardar essa pureza. Evidentemente que se nós pudéssemos manter no Brasil ou em África muitos professores de português, essa deterioração seria muito mais lenta. As nossas línguas vão sofrer as vicissitudes por que passaram todas as línguas através dos séculos.
P. - E Igualmente surpreendente que o livro português não tenha uma divulgação fácil no Brasil.
R. - A verdade é que não se divulga por meras razões económicas. Damos sempre com o mesmo problema. É sempre a nossa pobreza que nos não permite ter uma maior presença e autoridade moral. Seria preciso ter lá mais livrarias. E também dispor de acordos melhores, para ultrapassar a burocracia alfandegária...
P. - Acha que era necessário na tradução espanhola de "A Criação do Mundo", a tradutora, Eloísa Alvarez, ter acrescentado aquela série de notas abundantes, a maioria delas de carácter histórico? Crê que o desconhecimento ainda é assim tão grande?
R. - Temos vivido voltados de costas do ponto de vista cultural. Sempre o condenei. Procurei conhecer tanto a sua história como a minha. Creio que é uma coisa ridícula prescindir de semelhante riqueza cultural tão próxima. Recorda-se talvez de que no prólogo da edição espanhola de "Bichos" disse: "A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva, mas a minha pátria telúrica só termina nos Pirinéus. Tenho no peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade basca, dos perfumes do Levante e da lua da Andaluzia. Sou, pela graça da vida, peninsular." Nunca deixei de pensar exactamente o mesmo. Além disso, creio que a tradutora evitou tanto quanto possível as notas eruditas. A maioria delas enriquecem a leitura: por exemplo, quando explicam as tradições transmontanas, E na parte sobre o Brasil seria também interessante explicar ao leitor a inclusão de americanismos.
Aprendizagem
do mundo
P. - Em "A Criação do Mundo" as únicas referências eróticas que aparecem referem-se à sua estada no Brasil. É como se depois do seu regresso a Portugal o meio lhe tivesse imposto um tipo de conduta diferente...
R. - É no Brasil que se dá o nascimento da sexualidade da personagem. O que está de acordo com a ordem normal da vida. Mas que também coincide com uma precocidade que é determinada pelo clima. Lá, uma mulher de doze ou catorze anos é já uma verdadeira mulher. Aos vinte anos está praticamente acabada. Criaram, inclusive, um termo que nós aqui não temos. "Um broto", Broto, de brotar. Evidentemente que a sexualidade lá é mais precoce e nascente. A personagem quando vai daqui já teve as primeiras visões, os primeiros vislumbres, mas tudo muito brumosamente. Os primeiros contactos foram com uma menina da sua terra, depois em Lisboa, quando está no hotel e escuta o ruído da água. Há algo que ele suspeita vagamente, mas é todo muito brumoso. A sexualidade, enquanto não é satisfeita, é uma curiosidade. No Brasil desperta de uma maneira brutal, como a verdadeira pujança da selva tropical. Depois o indivíduo toma consciência dessa força e assenhoreia-se dela. "A Criação do Mundo" é sobretudo essa tomada de consciência por uma pessoa da sua passagem pela vida num momento e em circunstância determinadas. Toma-se consciência do fenómeno sexual, mas também do religioso, do político, disto e daquilo. Vai-se reagindo de acordo com as circunstâncias. Uma vez assumido, já não há necessidade de voltar ao assunto. É o que acontece com um homem adulto, com aquele que não ficou parado na adolescência, porque há pessoas que nunca resolvem o problema sexual e que ficam paradas nessa data inicial das suas vidas.
P. - Alguma crítica primária disse que "A Criação do Mundo" era uma autobiografia. Sou mais partidário da opinião de Clara Rocha, quando diz que "é um processo que se inicia com a apreensão de um mundo real e termina com a construção de um mundo fictício".
R. - Da mesma maneira que a poesia é muito mais verdadeira do que o poeta, aquele livro é muito mais verdadeiro do que eu. É mais verdadeiro do que a minha própria verdade. Por isso é um livro paradigmático.
P. - O tema religioso aparece, mas dilui-se ao longo dos diferentes dias.
R. - Uma vez esclarecido o assunto, não é preciso voltar a ele. O problema religioso surge quando somos pequenos e temos de ir à missa por obrigação e ainda por cima comungar. Em breve começam as dúvidas, que são a etapa mais dolorosa. Pensamos que aquilo não tem solução. "A Criação do Mundo" não dá solução para esse assunto, simplesmente porque não há solução. Não sou ateu, mas também não sou crente. Sou um ser religioso, como qualquer pessoa. Nada mais. Muitas vezes as pessoas perguntam-me porque é que deixei no ar alguns dos aspectos de que falou. Muito simplesmente porque não há solução, ou pelo menos porque não a encontrei.
Quem são os heróis
P. - Os seus heróis não têm uma história relevante, não têm de perpetrar façanhas. São pessoas simples, a maior parte das vezes camponeses...
E. - As minhas personagens não são, evidentemente, heróis clássicos. No entanto, não deixam de ter o seu heroísmo, mas é um heroísmo modesto, quotidiano. Foi nesse sentido que escrevi "Rua", "Pedras Lavradas" e "Bichos", que é um livro simbólico. Mas "Contos da Montanha" já é outra coisa, porque sendo também heróis quotidianos têm uma força de tal ordem que transcendem muito mais. O meu conceito do herói não é representado por Vasco da Gama. Para mim, o herói é um indivíduo que dá o máximo da sua humanidade. Não é o homem que pratica uma façanha esporádica à qual pode ter sido forçado pelas circunstâncias, podendo inclusivamente não estar à altura delas. Os meus heróis não são heróis à força, são seres modestos, pessoas realmente humildes, com tanta humildade que alcançam a heroicidade e universalidade. Pelo menos, foi essa a intenção com que eu escrevi. E, claro, isto é assim salvo em certas histórias, como, por exemplo, no último capítulo de "Bichos", intitulado "Vicente". Este é uma figura simbólica, mítica, que encarna a liberdade na sua expressão máxima. O senhor Ventura, por exemplo, é o herói português, uma espécie de D. Quixote. Geralmente, os heróis não estão em contacto com a realidade, são figuras criadas artificialmente. O meu herói é um homem vulgar, que dá tudo o que tem dentro de si. Todos nós temos uma capacidade de o ser. Da maneira como o entendo, estão enraizados, e a raiz condiciona o comportamento nalguns aspectos.
"Todos os livros que publicava eram apreendidos"
P. - Que papel tem então para si a cidade e as suas personagens, envolvidas nesse ambiente diferente?
R. - As minhas personagens urbanas também estão em "Ruas", "Pedras Lavradas" e, principalmente, em "A Criação do Mundos". Para mim, a cidade é o lugar onde o homem se pode realizar culturalmente. Mas as minhas raízes profundas não estão na cidade. As minhas raízes continuam a ser telúricas.
P. - Que limites impõe ao local e ao universal?
R. - O universal é o local sem paredes. Quando um indivíduo se realiza humanamente ultrapassa esses limites, sem por isso ter de perder as suas raízes. O mal da nossa literatura actual é a ausência de raízes, é ser uma literatura igual à de todos os lados e, portanto, não tem a marca da personalidade do criador, nem os heróis que lhe dão movimento têm personalidade. Para mim a paisagem, o meio, têm uma importância decisiva, porque fazem o homem, fazem-no universal, na medida em que é capaz de encarnar todas as suas potencialidades. Aqui, em Coimbra, que é uma terra desenraizada, continuo a sentir as forças anímicas que recebi da minha terra.
P. - Que papel atribui ao onírico, ao fantástico, ao mágico?
R. - A mim interessa-me muito o que fez Gabriel Garcia Márquez. É uma grande literatura lírica, que parte precisamente da sua terra. Ele retomou essa paisagem, as suas recordações, e é isso que faz a sua universalidade. Fez com Macondo o mesmo que eu quis fazer com São Martinho de Anta.
César António Molina, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, 26 de Janeiro e 1988
Entrevista retirada de http://www.netprof.pt/