Quem conta um ponto...
1 - Apetites freudianos
– Mãe, estou toda molhada.
– Sim, espera um pouco que vamos ali comprar um guarda-chuva aos chineses.
– Mãe, estou cheia de frio.
– Pois, mas espera um pouquinho, não vês que estou a dar de mamar ao teu irmão!
– Mãe, estou cheia de fome.
– Eu sei que estás, mas tens que ter paciência e esperar um pouco até te poder comprar qualquer coisa para comeres.
– Mãe, apetecia-me leite quente.
– O quê?
– Apetecia-me leite quente.
– Espera um pouco. Não vês que estou a dar de mamar ao teu irmão! Quando chegarmos ao café logo te dou qualquer coisa.
– Que coisa, mãe?
– Qualquer coisa. Uma sandes de fiambre ou de queijo e um sumol para beberes, por exemplo.
– Mas mãe apetecia-me muito beber leite quente. É que estou cheia de fome e ainda é longe até ao café.
– Tem paciência. Espera um pouco. Deixa-me acabar de dar de mamar ao teu irmão.
– Mãe, estou cheia de fome e de frio e estou toda molhada. E apetecia-me muito beber leite quente.
– Será que também queres mamar? Não tens vergonha! Uma menina da tua idade a querer mamar na teta da mãe.
– Mas mãe o Rui também já é crescidinho e mesmo assim tu ainda lha dás.
– Não me digas que estás com ciúmes do teu irmão.
– Não sei. Eu ainda sou pequenina e tenho muita vontade de beber leite quente. Dá-me a teta, mãe. Sinto tantas saudades de mamar.
– Se não te calas, o que te dou é um bom par de bofetadas…
2 - Céu muito nublado
– Não vás com tanta velocidade.
– Achas que sou oligofrénico?
– Não. Nem por isso. Mas o que é que tem isso a ver com a velocidade?
– Tudo tem a ver com tudo.
– Não sei se és oligofrénico ou não. Tenho a certeza é que aceleras muito dentro das cidades.
– Só dentro das cidades?
– E fora delas. Tu aceleras em qualquer lado.
– Mas achas mesmo que sou oligofrénico?
– O que tu és é maluco.
– Então achas que sou mesmo oligofrénico.
– O que tu és é um chato.
– Modera-te. Oligofrénico sim, chato nunca.
– Que nuvens tão escuras.
– Não disfarces.
– Vem aí uma trovoada das grandes.
– Não desvies a conversa.
– Deixei a roupa a secar na varanda e vai molhar-se toda.
– Eu preocupado com a minha oligofrenia e tu pensas só na tua roupa! És uma ingrata.
– A roupa também é tua e dos garotos. E a ingratidão tem as costas largas.
– Tens razão, as nuvens são mesmo ameaçadoras.
– Eu não te disse?
– Achas que sou mesmo oligofrénico?
– Não, não acho. O Mundo é que não te compreende.
– Assim está melhor. Mas não dizes isso só para me agradar, pois não?
– Não.
– Não?
– Não.
– Escusas de ser tão evasiva.
– Eu não sou evasiva, sou sincera e curta de palavras.
– Então achas que não sou oligofrénico? Não dizes nada?
– Vai mais devagar que isso passa. Temos muito tempo para chegar.
– Mas não disseste que querias chegar a casa rapidamente para apanhares a roupa que se pode molhar?
– Que se lixe a roupa. Eu quero é chegar a casa tranquila e inteira.
– Achas que sou oligofrénico? Achas ou não? Diz a verdade.
– …
– Está bem, eu vou reduzir a velocidade. Começou a chover. Eu gosto da chuva. E tu?
– Olha, liga o rádio.
– O teu basta.
– Achas que sou oligofrénico?
– I’m singing in the rain…
3 - Conversa captada por uma antena parabólica entre o Senhor e um pardal
– A maioria das pessoas limita-se a procurar a beleza em vez de criá-la.
– Piu, piu, piu, piu, piu.
– Olha à tua volta. Até eu já duvido que a beleza se encontre na natureza, da mesma forma que a verdade se encontra afastada da vida.
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Tens razão. Verdade e beleza são criações do próprio Homem.
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Tu estás mais velho, quer dizer, cresceste!
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Andas a ler romances?
– Piu, piu, piu, piu, piu.
– É estranho, isso de ler romances. Depois as pessoas passam a vida a perguntar umas às outras: já leste este? Já leste aquele?
– Piu, piu, piu, piu.
– Só Deus Meu Pai sabe o que estás para aí a dizer!
– Piu, piu.
– Então piu para ti também.
João Madureira