Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros
Um poema antigo
de José Carlos Barros
Mil novecentos e setenta e nove
1.
morria-se de muito olhar com as aves o entardecer
num pátio ou nas margens do tâmega
dos dias de setembro de mil novecentos e setenta e nove.
há sempre um instante para recomeçar as coisas
dizias
tantas vezes sem que o cheguemos a pressentir
um instante para que a memória subtilmente cresça
e nos desenhe alheios dos seus traços. em setembro
de mil novecentos e setenta e nove foi
assim:
as tuas frases desprendidas de tudo quando a sombra
nos tocava de descer por um fio das folhas das árvores
a música
o morrison hotel
a área popular com variações opus 15 nº 3 de joão
domingos bomtempo
a memória do convite desajeitado para dançarmos no
baile do ginásio do liceu de chaves
o olhar como se estivéssemos a aprender o ofício da impaciência
as reproduções pequenas a preto e branco do toulouse-
-lautrec (as putas de montmartre)
que guardavas num bolso do casaco
a ondulação leve dos teus ombros: morria-se
pois
com as aves no entardecer dos dias de setembro
de mil novecentos e setenta e nove: o rumor das nascentes
a devolver os gestos todos desse tempo
o intervalo agora na distância que não finda
uma promessa
uma frase que não sabíamos que era mentira:
tomorrow my
love. com o amor tranquilamente o olhar
ainda
2.
eis pois o regresso ao círculo perfeito
o da memória
uma concha intacta a derivar na arca dos segredos
as manhãs abrindo devagar com a água rente aos lábios: em
setembro de mil novecentos e setenta e nove
a poesia:
um verso dura muitas vezes o tempo dos milagres
le soleil ce jour-là s’étalait comme un ventre
maternel qui saignait lentement sur le ciel (apollinaire)
o lume poisado nos teus dedos
uma nuvem a crescer por dentro das palavras
a tua pele a misturar-se ao vento: conheço
este silêncio
há muitos anos
o desejo a chegar assim
as lágrimas suspensas num fio de tecer
o tempo
meu amor
tão próximo de mim
3.
por baixo destas pedras foram encontradas em mil
novecentos e cinquenta e um
duas moedas de ouro do imperador adriano
nestas casas e neste descampado (21 de junho de mil oitocentos
e quarenta e sete)
dormiu com cinco mil e quinhentos soldados o
general lavallete a caminho do porto
nesta capela de santo estêvão
numa manhã fria do ano de mil duzentos
e cinquenta e três
beatriz de castilla y guzman foi prometida a afonso iii
sentes o quê quando a história nos atravessa de
um lado ao outro
o receio da eternidade
algum princípio de lugar? apenas
se morria com as aves
em setembro de mil novecentos e setenta e nove
um corpo quase a única certeza
o medo das despedidas:
é o que fica
a memória afinal imperfeita
um pequeno gesto capaz de atear os incêndios
a história verdadeira finalmente certa
uma flor
como nos dias antigos do mês de novembro de mil
novecentos e setenta e nove
a ilusão
do amor
[A versão original deste poema foi publicada no Diário de Notícias (suplemento DN Jovem) na edição de 27 de Janeiro de 1987]