Intermitências
Anestesia
Esqueceu o relógio em casa. Deixou também lá o telemóvel. Propositadamente. Não olhou mais para os ponteiros que se atravessam no seu afazer diário. Desconfigurou os números de todos os ecrãs. Apagou os timings da sua mente e deitou fora a agenda. Propositadamente. Desejou, a partir desse dia, anestesiar o tempo.
"Já viste as horas!?" Não, não vira. O tempo era a obsessão da sua vida, o que sempre a controlava. A ela e a toda a gente. "Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje". Queria ser anestesista do tempo. "A que horas?". Até à hora da nossa morte.
Ao ser anestesista, ia dar tempo ao tempo. Não se ia preocupar com o antes, nem com o agora, e muito menos com o depois. Afinal, o tempo é uma grande anestesia. Deixa passados, presentes e até futuros esquecidos.
Budapeste, Janeiro 2014 - Fotografia de Sandra Pereira
Ela esquecia o relógio em casa. Deixava o telemóvel em casa. Propositadamente. "Não podes viver assim!". Respondia que era anestesista do tempo. Poucos acreditavam. Ninguém confiava. "Com o tempo, vai passar-lhe..."
Pouco depois, tatuou um relógio no pulso. Enterrou outro relógio nas costas. Sem ponteiro, números desfocados. Um desafio. Na rua, em qualquer lugar, agora só olhava para o design dos relógios, tudo o mais não tinha sentido. Passava ao lado do tempo...
E para quê preocupar-se? Afinal, o tempo é uma grande anestesia.
Sandra Pereira