Chá de Urze com Flores de Torga - 22
TODOS CRIAMOS O MUNDO À NOSSA MANEIRA
I
A língua é um dos pilares fundamentais da identidade de um povo.
A escrita é uma das formas da expressão da língua.
Nas diferentes expressões da escrita, os autores, com a sua imaginação e criatividade, mostram-nos a «alma» de um povo.
Mas a «alma» de um povo, tal como esse mesmo povo, não é estática. Flui, é dinâmica. Vive num determinado lugar e num determinado tempo, ou seja, tem um determinado contexto. Possui estórias. E tem uma história.
A história do povo português é a da sua inquietude, do seu desassossego e insatisfação. Da pouca terra que a Reconquista foi «pressuriando» até ao mar alto e encapelado das Descobertas e expansão ultramarina. E que, no final de um grande e glorioso ciclo, nos (deve) lembrar que sempre fomos demasiado pequenos, embora a vontade e o querer determinado, de certas épocas, nos tenha feito grandes. E, na hora de retornar a «casa», não nos podemos esquecer do lugar donde partimos: o lindo rectângulo à beira mar plantado, nesta Europa da qual fazemos parte integrante, que anda a desnorte, à procura de um rumo que (também), ativamente, deve contar com a nossa participação como um interpares. Para não continuarmos a sair daqui, continuamente, e ir construindo e enriquecendo outros países, enquanto o nosso, exaurido das suas gentes, cada vez mais, fica pobre, árido, deserto. Nas mãos de uns poucos «abutres», tanto de dentro como de fora portas, sempre à espera de nos «comerem», até ao tutano, os poucos ossos que já temos.
A história da nossa diáspora tem tanto de grandeza como de pobreza e miséria.
Resta uma língua e uma cultura que espalhamos pelo mundo. Ora dominando, ora assimilando. Mas não perdendo a identidade num mundo cada vez mais complexo, homogénico, hegemónico e global. Onde a diversidade também conta e faz (deve fazer) a diferença.
Por isso, não nos repugna qualquer acordo ortográfico. Desde que tolerante das diferentes diferenças e respeitador da matriz essencial que a todos nos une como povos irmãos. Porque, o que deve contar, não é certa gentinha ou gentalha, que em certos períodos da história nos (mal ) governa, mas o Homem Português na sua gesta criadora de «mundos».
II
E, falando de criação de mundos, vem à colação um artigo inserto na Revista de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo/Brasil, vol. 6-nº1, pág.s 56-68, Janeiro/Junho de 2010, de Raquel Terezinha Rodrigues, com o título «Miguel Torga: do singular ao plural».
Fala-nos a autora, neste artigo, da obra de Miguel Torga A Criação do Mundo, obra, tal como Torga diz, no prefácio à tradução francesa do livro, ser escrita “temerariamente” na mocidade e que, para ele, é um misto de crónica, romance, memorial, testamento.
A A Criação do Mundo é, na opinião desta autora, partilhada por muitos outros, um texto intimista, abrindo espaço para a autobiografia literária.
A primeira definição de autobiografia pode ser encontrada no próprio nome: biografia de uma pessoa feita por ela mesma, traduzindo, assim, a sua vida em «grafias» ou «escritas».
Segundo Raquel T. Rodrigues, Lejeune define textos autobiográficos como relatos interpretativos que alguém real faz da sua própria existência. E a linha mestra deste movimento (autobiográfico) é a memória.
A A Criação do Mundo, de Miguel Torga, traz uma inovação não só na maneira de escrever um texto autobiográfico mas também na forma utilizada para tal. Foi escolhida para a escrita deste texto uma forma não convencional, ou seja, a forma de dizer, como o relato da criação do mundo feito pelas Bíblia. A Bíblia, nomeadamente o Velho Testamento, forneceu os motivos de inspiração para Torga. E talvez seja essa procura constante pelas origens, que a obra evidencia, como diz Raquel T. Rodrigues, que leva Torga a organizar da mesma maneira que o Criador o mundo à sua volta.
Assim, a obra é composta por seis dias e, no Primeiro Dia da Criação, há a expulsão desse menino do seu paraíso, o lugar que o viu crescer e aprender as primeiras letras.
Não é aqui nossa intenção fazer um resumo da obra. Por um lado, porque poderíamos ser muito redutores do(s) seu(s) diferente(s) conteúdo(s); por outro, trairíamos o objectivo que nos leva a esta escrita: o levar ou incitar o caro(a) leitor(a) a (re)ler efectivamente a obra.
Aqui basta-nos ficar com as palavras da sua filha, citadas no artigo pela autora que vimos referindo, quando, a dado passo, Clara Rocha diz que toda a autobiografia é uma auto-interpretação, em que o estilo, ao mesmo tempo que denuncia a intensão de reconstruir o passado, segundo um projecto presente, indica a relação do escritor com o seu próprio passado.
Todos nós criamos o mundo à nossa medida. Este mundo, segundo Torga, tem várias facetas e é longo, para uns, curto, para outros, e, ao mesmo tempo, simples e complexo.
E são bem verdade as palavras vertidas no final do artigo de Raquel T. Rodrigues quando diz: “A autobiografia, apesar da pretensa relação com a verdade, não pode abranger essa vida na sua totalidade; o que se tem são recortes, pedaços, ainda por cima contidos em texto, que se estrutura a priori na imagem bíblica da criação do mundo e que, diga-se de passagem, não se efectiva, não somente pelo facto de que na teoria criacionista há referência ao Sétimo Dia da Criação mas, sobretudo, pelo facto de ao ver o que criou Torga limita-se a pensar que, embora não tenha sido exactamente como desejou, encerra o ciclo com a possibilidade de remeter para o prefácio, em que diz que, por ele, fez o que pode. Cabe ao leitor dizer se valeu a pena ser visitado”.
III
Esta obra A Criação do Mundo, e este artigo, trouxe-me à lembrança a leitura de uma outra que fiz neste último verão.
A sugestão veio de uma local da revista Visão na qual o psiquiatra Daniel Sampaio recomendava vivamente a sua leitura: Luz Antiga, de John Banville, publicada pela Porto Editora.
Trata-se de um romance no qual se medita sobre o amor e a perda, sobre o imediatismo do passado nas nossas vidas presentes e, como se diz na contracapa, “sobre a forma como a imaginação inventa memórias e as memórias inventam o homem”.
Na verdade, existe alguma diferença entre a memória e a invenção?
António de Souza e Silva