Discursos (emigrantes) Sobre a Cidade
"Gatunos"
O que faz um povo incendiar as ruas?
Hoje, agora, já, por toda a Europa, sente-se a brutalidade das manifs. Nas grandes cidades, as pessoas sentem mais as suas expectativas frustradas, a rotina diária cansa-os e enraivece-os. Nas pequenas, a rotina diária aborrece-os e amansa-os.
Nas pequenas, mandam-se uns gritos e escrevem-se mensagens em cartazes. Às vezes, lá vem um insulto mais atrevido, "tão querido" de inofensivo. "Gatuno" será decerto o predilecto das manifs dos portugueses, a sua imagem de marca.
A preparação (Manifestação Anti-tortura, Barcelona, Maio 2013)
Fotografia de Sandra Pereira
Nas grandes, o ruído - e a poluição de todo o género - já atingiu níveis tão ensurdecedores, que os gritos já não se ouvem. Os cartazes confundem-se tanto com os publicitários que já não servem de nada.
O que faz um povo incendiar as ruas?
A quem pertence realmente a voz dos que manifestam? O que têm a dizer os que calam entre os enraivecidos? Se lhes fossemos perguntar, encolheriam eles os ombros? Mais perante a injustiça ou a pena?
Entre a multidão, haverá quem vire as costas e acredite que pode construir o seu próprio destino.
Haverá também quem não acredite em nada, nem sequer se reconheça a si próprio.
A preparação (Manifestação Anti-tortura, Barcelona, Maio 2013) - Fotografia de Sandra Pereira
Entre a multidão, haverá quem nunca chore e teime em mudar, ainda que muito modestamente, o que há e os que estão à sua volta.
Haverá também os mesmos "porcos" de sempre a "comer da mesma gamela".
Então? O que faz um povo incendiar as ruas?
A indignação também chega às pequenas cidades, mas aqui, na nossa terra, todos sabem desde miúdos que "a vida faz-se caminhando direito por carreiros tortos" e é de apreciar os "três gatos pingados" que aparecem no "largo dos pasmados" num sábado à hora da sesta, depois de uma boa feijoada à transmontana e um tinto caseiro, para manifestar de barriga cheia. Pois demos graças a Deus!
A acção (Manifestação Anti-tortura, Barcelona, Maio 2013) - Fotografia de Sandra Pereira
Num dia de semana??? Não senhor, que há que fazer pela vida! Pois dê-se tolerância de duas horas aos funcionários públicos e ponha-se o porco no espeto para dar força ao pessoal para segurar nos cartazes contra os "gatunos" e erguê-los bem alto quando chegarem as câmaras de televisão. Uma manif em Chaves seria confundida com uma manifestação artística em qualquer grande cidade europeia. Pois, de novo, demos graças a Deus, por ainda estarmos perante fogo que arde sem se (querer) ver.
A reacção (Manifestação Anti-tortura, Barcelona, Maio 2013) - Fotografia de Sandra Pereira
E então o povo que incendeia as ruas? Trata-se apenas de um mal-estar que vai surgindo aqui e ali, em Atenas e em Kiev... e vai sendo sucessivamente abafado com polícia de choque e helicópteros... já que a "gamela" não é suposta chegar a todos e dela cada vez "comem" menos... mais a geração dos "desencantados da vida", dos filhos da democratização escolar e da globalização cultural em quem tanta esperança se depositou, e que hoje não comanda a própria vida, mas se submete a ela e ainda paga as "despesas" dos outros... não fosse o "gatuno" - a alta finança, o capitalismo, a globalização perversa, a União Europeia - ser demasiado abstracto... já o vimos, basta uma faísca...
Sandra Pereira