Chá de Urze com Flores de Torga - 34
Repouso
Era de sua natureza um tipo macambúzio., de olhos grandes e vidrados, boca rasgada e um espesso bigode a cair-lhe da cara. Fizera a morte de Celeiroz logo no ano das inspecções, dera a seguir cabo do Marinho com um tiro no vazio esquerdo, mas tudo se reduzira a uns meses de cadeia. Com medo, ninguém queria fazer prova contra ele, e a justiça, diante do desinteresse de todos, desinteressava-se também. Mal a mulher da primeira vítima se calou de gritar pelos montes fora, a bala contra o Marinho partiu de uma pistola de guerra que furava tábuas de solho a cinquenta passos. Mas nem assim as autoridades se resolveram a proceder. Depois de o terem à sombra algum tempo, a porta ferrada do calabouço de Carrazedo abriu-se e o Joaquim Lomba continuou a afligir a terra.
Quase não trabalhava, que ninguém o queria, nem a dias nem de empreitada. Possuía contudo qualquer coisa de seu, e, com um cacho que respigava na vinha deste ou daquele e um vintém que sempre recebia de uma ajuda que uma trovoada ou o aperto de uma malhada consentiam, ia vivendo. Mas era uma existência negra a que levava, sozinho, sujo, coberto da sombra do medo e da desconfiança dalgumas léguas em redor. Outros homens tinham matado em toda a região e a fama da sua crueldade corria mundo. Ninguém se esquecia do Basílio Antunes, que assassinara a frio o moleiro de Candedo, nem do Varela, que saltara em cima da barriga da mulher e dera cabo dela. Mas a fama do Lomba abrangia outros horizontes e amargava com outro travo. Falava-se dele e corria por todos um calafrio de pavor diferente dos medos conhecidos. É que trazia estampada no rosto a ferocidade. Ao primeiro relance, a gente via que ali andavam mortes passadas e mortes futuras. Acrescia que o Lomba conhecia isto. Mazombo, ensimesmado, a marca que sentia na cara dava-lhe uma tristeza funda, de revolta esganada. Em certas horas, uma humanidade estuante, larga, generosa, que também nele morava, queria mostrar-se à luz do sol. Mas o primeiro a quem dava os bons dias cortava-lhe aquela onda fraternal em bocados. A resposta vinha seca, esquiva, a estremar os caminhos. O semblante do Lomba cobria-se então da ferocidade velha e da raiva de agora; e tornava-se ainda mais soturno e sinistro.
Foi por uma coisa destas e num dia destes que liquidou o Adriano. Erguera-se cedo, comera um naco de pão, bebera um trago de aguardente, e lá ia ele ver a vida. Mas o Adriano, a primeira alma que encontrou, respondeu-lhe tão arredio, que não se teve:
- Olha lá, ó pedaço de asno, que mal te fiz eu?
O outro sentiu-se perdido.
- Nada. Que mal me havias de fazer? Era uma explicação e um apelo à concórdia. Desgraçadamente, o coração do Lomba estava cheio de fel.
- O que tu merecias era que te desse uma lição.
Apesar de o Lomba ser quem era, o Adriano sentiu-se na obrigação de defender os brios de homem. E, embora debilmente, lá tentou:
- Atreve-te, Atreve-te e verás... Ora o diabo!
Não foi preciso mais. O Lomba chegou-se ao pé dele, ergueu a roçadoira, e de um golpe só tirou-lhe uma rodela à cabeça.
Mas ainda desta vez o crime ficou impune. Não havia testemunhas, a família do Adriano teve medo de uma vingança, e o Lomba continuou a mortificar Mondrões.
Mas também ele sentia o peso daquela cruz. Como não podia matar o concelho inteiro, nem obrigar um por um os conhecidos a falarem-lhe na paz de Deus, o aguilhão da consciência não lhe dava tréguas. Em certas horas, empolgado pela força do mal, enchia-se do próprio ódio, e não ficava espaço para qualquer míngua. Noutras, porém, um vazio infinito, um desespero sem remédio, um abandono maior do que o das pedras, prefiguravam-lhe o inferno.
- Quero-me confessar, senhor Prior - acabou por pedir abruptamente na quaresma, depois de entrar de rompante na sacristia.
- Muito bem, Joaquim... - respondeu-lhe manso e humano o capelão. - Pode ser agora.
Foram ambos para um canto, o padre sentou-se, ele ajoelhou-se-lhe aos pés, e começaram.
- Já nem me lembro de nada...
- Não te aflijas. Vai fazendo e dizendo comigo...
O sinal da cruz foi menos mal, o mea culpa passou, vieram os primeiros mandamentos e chegaram por fim ao pior.
- Bem, eu matei o da Gertrudes, o Marinho... E também fui quem deu cabo do Adriano...
O prior não sabia outra coisa. Por isso manteve-se calmo e, apenas perguntou:
- Estás arrependido dos teus crimes e disposto a pedir perdão a quem desgraçaste?
Aqui a situação bulia com mundos complicados do Lomba. Tinha vindo para se libertar do abismo sobre o qual a sua negra alma vivia debruçada. E quando tudo parecia conseguido e a serenidade estável do planalto lhe acenava já sorridente, - a dura penitência de voltar à fundura do poço! E perdeu-se:
- Não, senhor Prior. Nem estou arrependido, nem vou pedir perdão a ninguém.
O padre suava. E depois de tirar o lenço tabaqueiro do bolso e de limpar a calva, voltou, sempre brando e conciliante:
- Mas assim não te posso absolver, homem! Pois se tu não te queres humildar, nem te arrependes sinceramente do que fizeste... Olha lá, mas então não seria melhor para ti ires entregar-te à justiça e pedires perdão a Deus ?
- Eu não sou parvo! Vim aqui porque tenho confiança no senhor Prior... Agora se me não quer perdoar, não perdoe...
Ergueram-se ambos, tristes, desesperados daquela impossibilidade de harmonia. E mais do que até aí, a amargura, a raiva e a negridão da vida se estamparam na cara dura e desgraçada do Lomba.
Poucos meses depois, começaram em Mondrões os festejos da Senhora da Boa-Morte. E foi aí que o Lomba, sem poder mais, deu largas à sua angústia recalcada. Disposto a não sabia que loucura, com a pistola carregada de balas, entrou no adro e começou a fazer doudices.
Primeiro chegou-se ao coreto e gritou para o mestre da música:
- Pare lá com isso e toque uma valsa!
- O senhor é mordomo? - perguntou o velhote, na boa fé.
- Sou quem lá está. Mude de peça ou rebento-lhe os miolos!
O bom homem titubeou. Mas por fim, diante daqueles olhos vidrados e do sinal que lhe fez uma doceira, distribuiu novos papéis e a banda começou, de facto, a tocar uma valsa.
O sucesso da prepotência não deu paz ao Lomba. Pelo contrário: acirrou-lhe ainda mais o desejo de disparatar. E dirigiu-se ao do fogo.
- Deita lá uma dúzia de morteiros!
- Não posso. Só a Santos. Deus me livre!
- Deita ou já sabes...
A pistola era grande e negra, e as palavras do Lomba soturnas e frias. E o Pé-Tolo, sem mais aquelas, um a um, foi queimando os foguetões.
- Que estupidez é essa, ó meu burro? Quem te mandou botar desses, agora?
O mesário espumava de justa indignação. Mas bastou o outro apontar silenciosamente o Quim Lomba para tudo se remediar.
- Bem, pronto. Faz-se de conta...
O mal é que o assassino queria estancar a levada.
- Pare lá com isso já, seu trampolineiro! Desça daí
- O cavalheiro parece que quer conversa. Se não fosse a consideração que devo à honrada assistência...
Era um vendedor de drogas para todas as doenças e necessidades, que de cima de uma cadeira ganhava a vida. Homem rijo e acostumado a zaragatas. Quando, porém, lhe disseram de quem se tratava, calou-se e pôs-se a arrumar os frascos a pensar na mulher e nos filhos.
- E se alguém avisasse a guarda? - lembrou um, assim que se espalhou a noticia dos desacatos do Lomba.
- É verdade, a guarda...
O certo é que ficaram no mesmo sítio, sem coragem de ir denunciar o criminoso.
Continuaram irresolutos no adro, vagamente protegidos por aquela palavra que só por si metia respeito.
- Deixa lá ver a cana...
Simplesmente, desta vez, erguia-se diante do Lomba uma vontade. Com nove anos., o garoto, que conseguira apanhar a quimera, tinha decisão para a defender.
- Oh, oh! Não queria mais nada! Você é parvo ou faz-se?
- Deixa cá ver a cana, e cala-te.
- Vá lamber sabão. Ora o palerma! Faça como eu: desembelinhe as pernas.
Pelos olhos do Lomba o clarão de sangue e raiva passou mais vivo. Mas passou e deixou atrás de si um sorriso compassivo, terno, que lhe refrescou o coração.
- Então não dás?
- Pois não dou, não. Se estiver tão livre da peste!
O Pequeno largou, chamado por um morteiro que subia estrepitosamente ao ar, e o Lomba ficou sozinho, vencido, impotente, mas estranhamente feliz.
- Chegou para mim... - murmurou, comovido.
A música rompeu lá em cima numa marcha ligeira, ergueu-se no adro um polvorinho de dança, estralejaram mais foguetes, e um barulho ensurdecedor mostrava ao desordeiro que os seus caprichos e as suas balas não podiam vencer a onda de vitalidade.
- Chegou para mim... - murmurou outra vez, agora a caminhar vagarosamente por entre os penedos.
Mais fogo, uma polca, outra vez a voz do charlatão a vender unguentos, e a festa parecia uma flor a abrir-se. As horas, porém, foram passando, as aldeias, ao longe, começaram a acenar a cada um, e o adro, pouco a pouco, ficou deserto.
- Credo, santo nome de Deus! - exclamou a Eusébia, ao passar pelo sítio onde o Lomba despejara a pistola no céu da boca.
- É o Lomba. Que balas tão bem empregadas!...
Os olhos vítreos e arregalados pareciam querer impor ainda respeito e medo. Mas eram só eles a falar pelo corpo todo, encolhido, morto, humilde e manso como um monte de estrume.
- Também digo. Abençoadas mãos...
Seguiam caminho, sem uma palavra de pena, sem um arrepio, sem uma oração.
E assim o deixaram abandonado à grande e pavorosa noite da montanha.
Miguel Torga, In Os Novos Contos da Montanha