Pedra de Toque
As aparições da noite
Por prescrição médica e também por gosto, tenho caminhado imenso.
Para além do passeio preferido à beira Tâmega, curtindo o Polis e perscrutando as suaves e remansosas águas do velho rio, também calcorreio a cidade amada, logo que a noite começa a dar sinal.
Há dias voltei ao centro histórico e parti do Pelourinho, circundado pela bela casa das palmeiras, pela imponente Matriz e pelo edifício da velha Sociedade Flaviense.
Cirandei sozinho, porque assim é mais fácil sonhar e eu tenho reconhecida apetência para o sonho.
Corria uma brisa suave, prenúncio da primavera que se aproxima.
A noite estava estrelada.
“Cruzei-me”, poucos minutos depois com o bom amigo Domingos Valtelhas (o Domingos da Plastic) que, vindo das trevas, no seu passo miúdo e saltitante, descia a Rua Direita de cigarro na boca, esfregando as mãos.
Entrei no Largo da Principal, hoje Praça Camões.
Revi o grande negrilho (tristemente decapitado), defronte ao hospital velho, onde idosos aproveitavam a calidez da noite.
Parei na Misericórdia, uma igreja cuja talha e beleza até aos agnósticos impressiona. Não a pude rever por dentro porque estava fechada.
Saboreei o largo. Os imponentes Paços do Duque, D. Afonso, o 1º de Bragança, a estátua de M. Cabral que vira costas à Câmara e ainda o Museu e o demais casario que o envolve.
Acocorada no degrau da Capela da Santa Cabeça, “a tia Maria” (Landainas) já cansada pelo peso da idade apanhava a primeira brisa.
Foi então que “vi” o Nadir que, como era hábito, passeava pela cidade antiga.
Andamos pelo Largo do Município, onde apreciamos as varandas e janelas de casas velhas/renovadas com cores garridas, lembrando a arte naif.
Na rua do Sal, num primeiro andar, “avistei” numa janela pequena, a Sara, mulher de 40, simpática e bonita que abriu as portas do pecado a vários adolescentes da minha geração.
Era tal o cuidado e a bondade da senhora que a experiência não nos deixou mossa.
Viramos em direcção ao imponente Castelo Medieval. Estrategicamente localizado, ele ali está altaneiro, guarda-mor, sentinela da fronteira, baluarte carregado de História.
Disfrutamos o cuidado e belo jardim e fomos ao extremo da muralha.
A vista deslumbra.
Poisamos o olhar na vasta e luminosa veiga e conduzimo-lo depois, até ao sumptuoso e aprazível Brunheiro, mirando de soslaio o fragoso Leiranco.
Despoluímos, encharcando os pulmões com o ar puro, fresco e saudável, com que as cercanias nos brindam.
Recompostos seguimos para o antigo Largo do Anjo onde a Rua Direita desemboca e de onde partem inúmeras ruas e ruelas.
Bem no centro a dominá-lo o busto do padre Joaquim Marcelino da Fontoura, nascido em Anelhe, aldeia do nosso concelho, busto esse assente em pedestal, sujo e descuidado.
Marcelino da Fontoura foi pároco da sua aldeia mas dedicou grande parte da sua vida ao ensino, nomeadamente em Chaves.
Foi um pedagogo distinto e estimado sendo justíssima a homenagem que a cidade lhe prestou, muitos anos após o seu decesso.
Quando descíamos o Anjo, “encontramos” a Maria de Jesus Barradas, sempre conhecida pela Mariazinha dos Pelissados. Muito maquilhada, garridamente vestida, afável e popular, bairrista de coração, deu dois dedos de conversa e seguiu seu rumo.
Perto da rua do Aljube, sentimos a azáfama do Joãozinho Padeiro, a preparar-se para a primeira fornada da noite.
Ainda ouvimos a algazarra das crianças na Maria Rita, quando derivamos para as Portas do Anjo.
Conversamos imenso durante a passeata.
O mote era tantas vezes a nossa cidade linda e suas gentes, em especial as pessoas simples e boas, algumas figuras brejeiras e típicas que o Nadir também muito apreciava.
Chegamos por fim, à bifurcação, junto ao quartel dos Bombeiros de Cima.
O mestre seguiu em frente, despedindo-se com a costumeira frase: “Até amanhã Antoinne”.
Eu virei em direcção ao Pessegueiro. Abri a porta do prédio, subi no elevador e entrei rápido no meu apartamento.
Fui direito à cama, onde despertei, acabando por adormecer em seguida sereno e leve.
Cheiinho de Chaves por dentro,
Mas, literalmente só.
António Roque