Chá de Urze com Flores de Torga - 35
Não era bem pelos diários de Torga que hoje queria andar, mas estas coisas das novas tecnologias e da informação digital faz com que num de repente, sem aviso prévio se fique sem nada, num vazio total. O que tinha preparado para hoje e para os próximos dias está dentro de uma caixa fechada que, mesmo que a abrisse, continuaria a ser nada. Benditos livros que a esses nunca lhes desaparecessem as palavras gravadas no papel. Assim, com a brevidade possível, vamos até duas passagens pelo Barroso (aqui ao lado) mais propriamente por Carvalhelhos, com Torga à procura do milagre das fontes.
Carvalhelhos, Barroso, 17 de Junho de 1956
A doença tem-me dado muitas horas amargas, mas devo-lhe também uma intimidade com a pátria de que poucos portugueses se podem gabar. Obrigado a procurar a esperança em cada fonte, passo a vida de terra em terra, com as tripas na mão. E até a este Barroso vim parar! O problema, agora, é estar à altura das alturas onde me encontro. O escrúpulo dos tempos em que comungava, tenho-o presentemente quando me aproximo do povo. Estarei puro para lhe ouvir a voz?
Miguel Torga, in Diário VIII
Carvalhelhos, Barroso, 18 de Junho de 1956
Tarde de pesca, mas só a ver. Não sou homem de anzóis. Seja qual for o sonho que me apeteça prender, luto com eles de caras, sem isca. Entro nos matagais aos tiros, a avisar as perdizes que lá vai metralha. Agora que deve ser cómodo atirar um engodo fingindo à realidade e puxá-la depois até nós com a manivela da astúcia, deve. Enche-se o cabaz, e volta-se para casa fresco como uma alface, mesmo que se tenha chafurdado o dia inteiro – ou a vida inteira…- num baixio de águas turvas…
Miguel Torga, in Diário VIII