Discursos Sobre a Cidade
O USO DOS VENENOS
Em vez do habitual texto de José Carlos Barros, que uma vez por mês aparece nesta secção, decidimos trazer um poema e a notícia, em primeira mão, do seu regresso à poesia. De facto, e depois da publicação de dois romances ("O Prazer e o Tédio", edição Oficina do Livro, 2009, e "Um Amigo para o Inverno" -- finalista do Prémio Leya -- edição Casa das Letras, 2013), está previsto o lançamento, nos primeiros dias de Agosto, de um livro de poemas editado pela editorial Língua Morta. Com duzentas páginas -- o que actualmente é invulgar na edição poética --, este livro, além de alguns inéditos, traz-nos a sua poesia desde "Uma Abstracção Inútil", livro publicado em Évora no já afastado ano de 1991.
"O Uso dos Venenos" é o título do novo livro de poesia de José Carlos Barros, cuja edição temos o prazer de anunciar aqui em primeira mão. E é desse mesmo livro, de que em breve traremos mais notícias, que se retira o poema que hoje deixamos aos nossos leitores.
AS FESTAS DO SENHOR DO MONTE
O parecer do meu avô era o
de que o vinho deixado no frigorífico
quebrava. Nas vésperas
do Senhor do Monte ia durante
a noite à ribeira e alinhava as garrafas
entre os seixos e as ervas
altas. A meio da festa
gostava de tirá-las da seira
de vime desviando os
fentos ainda húmidos e despejar
num copo de vidro esse
líquido vivo e ligeiramente fresco
que olhava à transparência. No último
sábado de Julho o calor agarrava-se
à pele e ficava durante
muito tempo poisado nos terreiros
de saibro. Depois da procissão
os peregrinos estendiam os liteiros
nas sombras do pinhal
enquanto não fosse o tempo
de se aproximarem dos coretos a
ouvir os metais e a percussão
das filarmónicas. O meu avô começava
por essa altura a ficar impaciente
e a insistir no regresso
a casa. E recusava-se a aceitar
as bebidas tiradas das arcas
frigoríficas cheias de gelo
com a certeza de
que o vinho e a vida e o amor
quebravam quando eram
aquecidos ou arrefecidos
por métodos artificiais.