Quem conta um ponto...
Dois contos barrosões
1 - O boi da corte
Veem o Larouco lá em baixo? Era ali que eu gostava de viver, entre a relva fresca e verde, entre as nuvens, o ar puro e os animais selvagens. Tudo menos andar rodeado de seres humanos que apenas me utilizam para competir simbolicamente em nome do seu pretérito orgulho tribal. E eu não gosto mesmo nada de andar por aí às marradas aos outros bois como se eles fossem os meus inimigos. Inimigos são os homens que me fustigam o lombo com as varas quando vou para o campo de batalha, quando perco a luta ou mesmo quando a ganho. Tristes ou alegres, derrotados ou vitoriosos, dão-me sempre com os varapaus nos costados. E eu ali a aguentar o desaforo. Por vezes só me apetece lançar-me a eles às cornadas e projetá-los lá bem para longe. O que eu queria de verdade era andar por esses pastos fora em liberdade e não fazer o papel de boi da Corte, como antigamente os bobos eram obrigados a representar aos pés do seu rei. Antigamente éramos os bois do povo, agora somos os bois dos parvos ou de um patrão que nos utiliza como animais amestrados de circo. E lá se foi a simbologia totémica, a virilidade serrana, a força telúrica do seminal. O que mais desejo é ver-me livre destes patetas e ir correr à desfilada pôr esses campos fora à procura de uma vaca que me espere e deseje. Uma vaca redondinha, amável e prazenteira. O resto é-me indiferente. E por agora é tudo, porque já ali vem o meu tratador para me levar para o estábulo. E eu que enjoo quando ando na camioneta. Ó triste sina a minha!
2 - O solilóquio libidinoso sobre um boi de barroso de uma digressionista ocasional logo após uma chega
Vou filmar este bicho espantoso enclausurado dentro do contentor da camioneta. Depois da vitória, o encarceramento. Ó desconsolada ironia! Já filmei o animal a turrar com o seu competidor. Já o filmei a resfolegar. Até já o cinematografei a espumar de irritação. É um magnífico animal, sem dúvida. Uma autêntica força da natureza. Um cântico à virilidade. E que genitais, meu deus! Que genitais! Que quadris! Que força! Quando mostrar isto à Mimi de certeza que vai alterar-se copiosamente e sorrir. Ela adora animais potentes. Ela é doida por genitais. Tudo o que sugere virilidade a aproxima da parede. E ela adora ser encostada à parede. Ou estendida no chão. Ou assentada metodicamente numa mesa. Este toiro bravo faz-me evocar o Manuel. Era ele um autêntico beligerante. Era montês a esgrimir gládios. Era arrojado e destemido. Saracoteava com muito talento a silvestre agitação dos guerreiros. Agora vou confeccionar um grande plano do frontispício do viril bovino para cinematografar os seus olhos. Olhos serenos. Olhos diligentes. E que genitais, meu deus! Vou também filmar os chifres. Armadura alta. Arnês apontando o céu. E que genitais, meu deus! Também tem o dorso bem desenhado, pernas enérgicas e locomoção segura. E que genitais, meu deus! Que potência! São testículos telúricos. Uma ejaculação deste bichano deve ser como uma trovoada de Verão. Tem os músculos bem tonificados. E que genitais, meu deus! Nunca pensei que existisse realidade tão magnificente. A penetração dum bicho destes deve deixar a fêmea em estado de deslumbramento. Quando se desloca parece dócil. Mas quando investe contra o adversário até o piso tirita. Provoca cútis de galinha e tremores na espinha aos indivíduos alterosos. E que genitais, meu deus! Que genitais! Genitais destes são um excelso cântico à multiplicação indómita. E o Manelinho!? Bem, o Manelinho quando observar estas expressivas imagens vai dar saltinhos de contentamento. Vai emitir gritinhos de luxúria. Vai irradiar vagidos sincréticos e apologéticos. Mas que genitais, deus meu! Que opulência reprodutora! Que idiossincrasia indomável! Que estratégia construtiva! Que genialidade! Que genitais, meu deus! Que genes e tais! Bem alentados os genes. Bem ocorridos os garanhões informais. Bem-aventurados esses.
João Madureira