Chá de Urze com Flores de Torga - 52
Chaves, 28 de Agosto de 1992
Sem forças para cumprir o costumado ritual de banhos e massagens, espero pelos companheiros, que o levam a cabo compenetradamente, entretido a ver-me espelhado nos ímpetos e desânimos dum repuxo no jardinzinho envidraçado do balneário. Entretanto, o formigueiro de aquistas movimenta-se afanosamente. É uma procissão infinda de doentes frenéticos, alguns já meus conhecidos doutros anos, que caminham curvados, a mancar, de bengala, de muletas, obesos, esqueléticos, ictéricos, cirróticos, tolhidos do reumatismo, apostados em viver, como eu, que os observo em silêncio, a perguntar porquê e para quê semelhante freima, tão obcecada e inútil repetição de curas sem cura, tanta vontade de continuar no mundo contra os ditames da natureza, quando todos sabemos que nada vale a pena, que apenas nos espera a boa aberta da sepultura. Mas somos incorrigíveis. E persistimos no absurdo, mesmo a verificar que decoramos as flores ao passar, que ridicularizamos o amor a imaginá-lo, que estreitamos de cada mirante a largueza dos panoramas.
Pobres humanos! Nem sequer temos a justificação dos bichos, que existem sem o saber e sofrem sem consciência. Dantes, ainda nos valia a convicção de que éramos criaturas de Deus, cumpríamos na terra os seus altos designe-os, e havia um Paraíso para os mais bem-comportados. Desgraçadamente, até essa ilusão se nos foi. Agora, é por nossa própria conta que respiramos o ar empestado do ambiente, que exibimos as mazelas, a decadência e a covardia de nos escravizarmos resignadamente ao desespero.
Miguel Torga, in Diário XVI
Chaves, 1 de Setembro de 1992
Hospitalizado de urgência. Arrefeceu, comecei a sentir falta de ar, e, às tantas, esganado, tive de me render. E aqui estou a respirar oxigénio engarrafado e a bendizer todos quantos abnegadamente procuram valer-me. A secura afectiva que estiola a nossa civilização não chegou felizmente a estas benditas terras transmontanas. Médicos, enfermeiras e simples serventes são feitos do mesmo barro quente fraterno. É no sofrimento que testamos o quilate da nossa solidão. Somos nele capazes de dispensar o amor dos outros? Eu, não. Fui sempre um homem referenciado, atido ao meu próximo. Não tenho fronteiras espirituais, mas trago gravados nos cromossomas os marcos da minha freguesia e a fisionomia dos meus conterrâneos. Criei-me a pedir a Deus no seio da família que nos livrasse dos maus vizinhos à porta, e nunca deixei de acudir aos que fui tendo pela vida fora quando os vi necessitados dos meus préstimos. E recebo a paga agora de almas irmãs, que sabem apenas de mim que tive a dita de nascer, como elas, neste mesmo chão generoso, que em todas as horas e latitudes, e de todas as maneiras, por palavras e obras, exaltei como pude, rendido à lição que desde menino aprendi, a calcorreá-lo e a meditá-lo: que nele até a própria violência é cristã.
Miguel Torga, in Diário XVI
Chaves, 6 de Setembro de 1992
Necessitava de continuar hospitalizado mais algum tempo, convalescer. Mas tenho de me pôr a caminho. Cabra manca não tem sesta, ensina o povo. E eu sou precisamente essa cabra manca, com horas marcadas de aflição. E lá vou ao encontro da festa da agonia que me espera em Coimbra.
Miguel Torga, in Diário XVI