Pedra de Toque - A Ceia
A ceia
Só se chamava assim na consoada.
Na minha família prezava-se muito essa reunião, abrilhantada pelo calor da lareira e das braseiras, pelo repasto farto e pela ansiedade da gente jovem pelas prendas com que o Menino Jesus nos brindava depois da meia-noite.
À boa maneira transmontana, nessa noite comia-se muito e bem.
As mulheres passavam o dia a preparar o polvo, o bacalhau e por vezes a pescada, tudo cozido com as ótimas couves quase todas provenientes da nossa fértil veiga. Depois fritavam-se os filetes de polvo, de bacalhau e os bolos do dito, que elas confeccionavam primorosamente.
Por fim os doces, tais como as rabanadas, as deliciosas filhoses de jerimum e as normais, o arroz doce, a aletria e a tapioca que minha mãe não dispensava.
A refeição bem regada pelos adultos, terminava no pão-de-ló e no bolo rei acompanhados pelo doce vinho do Porto.
Na nossa mesa éramos muitos todos os anos e chegamos a ser mais de vinte quando uma tia e família vinham do Brasil passar a quadra.
O meu avô materno (já não conheci o paterno…) era o patriarca que comandava as operações dando início à comezaina das iguarias sabiamente preparadas sobretudo por minha mãe, cozinheira exímia.
A boa disposição reinava.
Contavam-se estórias, cantarolava-se e enquanto os mais velhos jogavam a bisca e a sueca os mais novo entretinham-se à volta do rapa tentando ganhar pinhões. Era o jogo do tira, rapa, põe ou deixa que eu vou tentar ensinar aos meus netos (se conseguir desencantar um rapa) porque era um passatempo engraçado que entretinha a miudagem.
Quando o repasto se aproximava do fim, a criançada ficava irrequieta com a chegada esperada do Menino Jesus que acompanhado de anjinhos descia as chaminés a altas horas da noite, para colocar as prendas no sapatinho.
O sono tardava a aparecer mas ao raiar da manhã as crianças saltavam da cama em busca dos presentes encomendados que lá estavam coloridamente embrulhados no sapato, junto à chaminé.
Vou fazer um curto parenteses para vos contar uma estória mágica e verdadeira.
Tinha eu uns 6/7 anos e ainda dormia com a minha saudosa avó.
Às 2 ou 3 da manhã de um dia de Natal, fui acordado de sopetão por ela que me disse que ouvira o barulho do Menino Jesus que, no momento, deveria estar a pôr-me a prenda no sapatinho.
Saltei da cama, corri para a cozinha, ouvi um barulho já pouco nítido e vi, claramente visto, uma réstia do pequeno vulto, subindo a chaminé!
Juro-vos que durante muitos, muitos anos acreditei piamente que tinha “ouvido e visto” nessa noite fascinante de um Natal inesquecível, o belo Menino.
Foi o primeiro e único milagre em que acreditei.
Já adolescente o fim da ceia de consoada terminava nas Caldas bebendo um pouco da milagrosa água bicarbonatada, que ajudava a digerir a jantarada.
Depois corríamos para o Largo do Pelourinho, junto à Matriz, para assistirmos ao Santo Sacrifício da entrada e saída da missa do Galo, o que nos dava a oportunidade de uma troca de olhares com o nosso primeiro amor.
A neblina e o frio arrefeciam o nariz e acicatavam as frieiras.
Recolhíamos então a penates, levando connosco o sorriso tímido da nossa amada e ansiando pelo próximo Natal.
António Roque