CAIU O TABU DAS ESQUERDAS, QUEBROU-SE O FEITIÇO DAS DIREITAS
No nosso último «Discurso sobre a cidade», em vésperas do ato eleitoral para a nova Assembleia da República e, consequentemente, novo governo, escrevíamos: “Tal como no final do célebre poema de José Régio - Cântico Negro - direi, no próximo dia 4 de outubro, apenas «sei que não vou por aí!» Porque o que se passar a nível nacional, óbvia e naturalmente, terá repercussões neste rincão flaviense a que pertencemos de coração!...”.
Minhas derradeiras palavras, bem assim o texto que as antecedia, iam no sentido da rejeição da continuação de um modelo de sociedade de base neoliberal, doutrina que, já na década 80 do século passado, não suscitou a simpatia maciça dos cidadãos, quer nos Estados Unidos da América, quer em Inglaterra, com Ronald Reagan e Margaret Tatcher, e que teve então, como hoje em dia com mais intensidade, brutais consequências sociais: agravamento das desigualdades, aumento do desemprego, desindustrialização, degradação dos serviços públicos, deterioração dos equipamentos coletivos, etc..
Pese embora aquelas propostas monetaristas, todos estes problemas não foram (ou sequer são) automaticamente resolvidos pela mão invisível do mercado e pelo crescimento macroeconómico.
Em suma, era urgente que a vitória do pensamento único, da pretensão universal de interesses de um conjunto de forças económicas, em particular as do capital financeiro internacional, com a militância ativa de certos políticos de pacotilha, parassem de nos asfixiar e nos reduzir, com o auxílio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), em particular da televisão e da internet, a simples, meros espetadores, a simples e meros objetos ou pura mercadoria!
E, entretanto, na Europa, que queríamos desenvolvida e solidária, e em quem acreditávamos, e com tanto orgulho teimávamos construir, pela cabeça da brilhante intelligentsia tecnocrática, era tudo levado no furacão e pendor neoliberal, resvalando na estagnação e no não crescimento e, depois, ficando sem qualquer projeto.
Sem projeto e cedendo, em toda a linha, ao capital financeiro internacional, ficando os cidadãos europeus despojados dos indispensáveis pontos de referência culturais e, consequentemente, desidentificados.
Daí ao aparecimento não só de uma crise económica, como, ainda mais grave, a pior das condições mentais - sem horizontes de referência para o futuro.
Votámos na esperança de, com o nosso voto, podermos contribuir para alterar este estado de coisas. Cientes do grão de areia que representamos, mas confiantes que a ampulheta do tempo chegará.
Mas sabemos que não é tarefa fácil!...
O futuro, hoje em dia, com a crise económica, apresenta-se incerto. E, tal como Edgar Morin afirma, estamos numa época em que as certezas se desmoronam, porquanto o mundo encontra-se numa das grandes bifurcações históricas, ainda não identificadas, e não sabemos ainda como, quando e para onde vamos.
Daí não admira que a presente hora seja de questionar certezas, rever práticas, compreender os novos parâmetros do tempo presente.
Se as sociedades europeias continuam a navegar sem objetivo bem definido e sem uma nítida representação do seu devir, urje, pois, - porque não se pode dispensar - uma reflexão a longo prazo e em profundidade, com novas práticas de encarar os problemas da economia e da sociedade.
Como cidadãos, devemos estar mais conscientes do mundo que nos rodeia. E nós, portugueses, de todo ainda não estamos!
Por isso, não nos espanta os resultados eleitorais.
Em primeiro lugar, o grau de abstenção, que poucos falam. Se a nova emigração de portugueses tem uma quota-parte de responsabilidade nela, por outro lado, os partidos tradicionais do arco do poder, ao não darem nova esperança e novo alento aos cidadãos, outra alternativa não lhes deram que não o desinteresse.
E também não espanta o resultado do Partido Socialista e a subida exponencial do Bloco de Esquerda. As políticas neoliberais que o centrão levou a cabo nos últimos anos afastou o eleitorado que queria uma sociedade mais justa e solidária ou para a abstenção ou, os mais resistentes e contestatários, para o Bloco.
Naturalmente que o «caso Sócrates», independentemente dos factos judiciários, mas com contornos de vendeta de certo poder judicial, foi aproveitado até ao limite, numa lógica não só mercantil da notícia bem assim de ajuda prática e militante à coligação no poder. No nosso entendimento, a vitória da coligação tem de ser vista (também) por este prisma.
Se bem que tenha sido crítico - e tenha escrito - quanto à forma, como António Costa subiu a Secretário-geral do Partido Socialista (PS), “porquanto não há razão alguma para que as razões de estado partidário se sobreponham à ética e aos princípios”, havemos de concordar que António Costa, ao preferir um acordo ou coligação às esquerdas do que juntar-se com as direitas, andou bem.
Nunca se deveria encarar uma eleição, qualquer que ela seja, como uma guerra - com vencedores e vencidos - mas o culminar de um profundo debate e reflexão da sociedade em que pomos a escrutínio as melhores opções para o país.
Lucidamente, António Costa, no dia das eleições, com os resultados apurados, foi claro, apresentando o quadro e as opções mais consentâneas com a lição que o eleitorado tinha dado ao PS.
Com estas eleições, quebrou-se o feitiço, vindo abaixo o tabu de as esquerdas jamais se entenderem, porquanto esse entendimento era simplesmente apanágio das direitas.
A construção de um país, hoje em dia, já não é compaginável com heróis ou políticos providenciais: é feita com líderes que tenham a humildade, a inteligência e a lucidez de que só com a participação ativa, livre e profícua de todos os cidadãos é que se encontrará a melhor visão para uma sociedade e um país. Quanto à visão da coligação das direitas, em quatro anos, ficámos confessados.
E que dizer da postura de Cavaco Silva que, muito embora indigitando legitimamente, dentro da dita tradição, Passos Coelho, no discurso da sua nomeação mostrou, de uma forma preocupante, uma postura faciosa, de seita, muito pouco isenta e pouco própria, já para não dizer, nada democrática, para aquilo que deve ser e se deve esperar de um cidadão que é Presidente da República?...
António Costa, pelo contrário, esteve bem quando, lendo e interpretando os sinais do eleitorado, chamou à mesa do diálogo todos aqueles que as direitas consideram como cidadãos de segunda, pouco dignos.
Sabemos que os projetos das esquerdas são muito diferentes uns dos outros. Que vão até ao ponto de porem em questão Tratados e compromissos que o país assumiu com outros países parceiros. Entendemos que, embora a nossa honorabilidade como país deva ir no sentido do seu respeito, contudo, jamais os devemos encarar como leis divinas e imutáveis, que não o são.
E tudo isto quando sabemos que a Europa, no seu todo, não vai bem e muitas das suas regras são contestadas por outros parceiros. Nada pode ser tido como definitivo e adquirido. Tudo se vai construindo...
Somos contra o unanimismo e o consenso único. Aqui estamos com Zygmunt Bauman quando afirma que “o único consenso que tem alguma possibilidade de êxito é o reconhecimento da heterogeneidade dos desacordos”. A pretensão de se querer que em política se obtenha um consenso geral que supere as distinções ideológicas e sistémicas, como diz Daniel Innerarity, já não é sustentável em sociedades abertas, complexas, heterodoxas, multiculturais, policontextuais, mas com forças centrípetas poderosas e homogeneizadoras, que não se articulam de maneira centralista ou hierárquica.
Esperamos, sinceramente, que a quebra do tabu quanto ao entendimento das esquerdas vá ao cerne daquilo que nos deve manter como povo. Com justiça, equidade e solidariedade, a todos os níveis. E cada um mantendo, saudavelmente, as suas diferenças e sairmos desta nova situação com uma certeza: da política não se deve esperar nem a solução definitiva de todos os problemas nem a salvação das nossas almas, mas qualquer coisa muito mais modesta, embora não menos decisiva do que o que proporcionam outras profissões e profissionais muito honrados. Assumindo a constatação da diversidade; o reconhecimento da diferença; a assunção do conflito como elemento consubstancial a qualquer comunidade ou sociedade e que só pela constatação dessa diversidade, diferença e conflito é que um diálogo sério e profícuo pode ser assumido; trabalhando como interpares, sem resquício de qualquer imperialismo ou subserviência.
Apesar da política e os políticos nunca terem estado tão limitados na sua margem de atuação, temos de reconhecer que a necessidade da sua atuação nunca foi tão decisiva como hoje.
Enfim, um trabalho e um combate que tem de ser feito com o empenhamento dos mais competentes, honestos e justos e que saibam dar corpo e alma, num sentido querido pelo povo e, tanto quanto possível, o mais partilhado por todos.
Se hoje patenteamos e assistimos, infelizmente, a uma globalização elitista, em cujos processos as condições materiais de existência são crescentemente apropriadas pelos novos cidadãos do mundo, urje lutar politicamente por uma globalização inclusiva, em que desenvolvimento passe a significar mais qualidade de vida, maior partilha do bolo de bens e riquezas, que os agentes privilegiados do sistema do mercado se negam a socializar, em vez de uma acumulação de capital predominantemente privada, conquistado à custa da descartabilidade do ser humano-cidadão.
O 25 de Abril trouxe-nos a Liberdade e a Democracia. Que aqueles que mais por ela lutaram sejam agora dignos de fazer a inversa navegação por um mar tão encapelado como aquele em que estamos e com os escolhos que nos esperam!
Num momento tão grave e difícil para todos nós portugueses, que Chaves me perdoe se hoje não falo dela. Porventura o nosso futuro também como cidade e município não dependerá deste momento?
António de Souza e Silva