CAPOTE DE GUERRA
Estarei eu por aqui por causa do capote que o meu avô António Moreiras usou na Grande Guerra?
Esse mesmo que lhe serviu de mortalha em 1976!
A 11 de novembro de 1917, o destino do Corpo Expedicionário Português na Grande Guerra ficou, dramaticamente, traçado, na reunião do Oberst Heeresleitung na Marie de Mons, sob o comando do general alemão Erich Ludendorff.
A entrada dos Estados Unidos na guerra, foi o motivo que justificou a intensificação da ofensiva alemã na Frente Ocidental. A Alemanha queria ganhar a guerra antes que os americanos entrassem no teatro das operações.
A primeira das ofensivas decididas para essa frente, naquele conselho de guerra, teve lugar em março de 1918, aproveitando as tropas provindas da frente oriental por força do Tratado Tratado de Brest- Litovsk, assinado com a Rússia em março de 1918.
Na presunção de bom tempo, os alemães escolheram a primavera para o golpe final, centrando o primeiro esforço na região do Somme. A estratégia consistia em flagelar esta zona de união entre o exército britânico e o francês. Através de pequenas ofensivas noutros pontos, fixavam as tropas inglesas para que não pudessem acorrer ao Somme. Daí que desde março, o setor português começasse a ser atacado em força, fazendo crer que se concentraria aí a força principal da guerra.
Ora os nossos Lãzudos que ocupavam o setor do rio Lys, começaram a sentir, a partir de março, um recrudescer inusitado da intensidade de guerra e cortavam prego quase todos os dias, com a frequência da metralha dos boches.
Na noite de 11de março de 1918, parte da linha da frente no subsetor de Fauquissart, próximo de Laventie, era ocupada pelo Batalhão de Infantaria 20 de Guimarães, que fazia parte da célebre Brigada do Minho, que havia de ser dizimada na noite de 9 de abril. Na linha B, por essa ocasião, encontrava-se parte do Batalhão de Infantaria 3 de Viana do Castelo do qual fazia parte António Pereira dos Santos 1º Cabo de Infantaria com o nº 814. Fora mobilizado em Agosto, pelo Regimento de Infantaria 19 de Chaves e colocado em 23 de novembro de 1917 na 4ª companhia do 1º Batalhão de Infantaria nº 3 de Viana do Castelo.
Na retaguarda, ao abrigo dos perigos mais eminentes, embora cumprindo um papel fulcral na guerra, que era o de tratar dos feridos, por isso não era considerado um cachapim, estava colocado um Capitão médico, mobilizado também pelo RI 19 de Chaves. Tratava-se do Dr. Adelino Augusto Fernandes, já com 41 anos de idade, colocado na ambulância nº 1 em 4 de agosto de 1917 e nomeado Chefe dos Serviços de Saúde da 6ª Brigada de Infantaria em 7 desse mesmo mês.
Uma vez nas trincheiras, os soldados iniciavam um calvário diário de convívio com a metralha. Os dias eram violentíssimos sob o ponto de vista físico, mas sobretudo psicológico. Porém, à medida que o corpo, mais até o espírito, se iam habituando àquela estranha forma de vida, o convívio com o sofrimento e a morte ganhavam novos contornos sob pena de ser insustentável tal inferno.
A Avenida Afonso Costa, como era chamada, jocosamente pelos militares, a Terra de Ninguém, era o espaço entre as primeiras linhas Aliadas e as alemãs, bem como todo o ambiente bélico que a rodeava, tinham o aspeto desolador que o romance de José Rodrigues bem relata:
“A terra estendia-se pelo campo quase plano, desértico e desolado, ao mesmo tempo molhado, enlameado, sujo. Até onde os olhos podiam ver o solo era revolto, árido, tudo se encontrava queimado, o chão apresentava-se esburacado pelas crateras de granadas de obuses e esventrados por minas, aqui e ali se viam-se poças de água e lama donde emergiam ferros contorcidos, um ou outro cadáver humano em decomposição, ossos, botas com os pés decepados lá dentro, farrapos de uniformes, ratazanas mortas a boiar. As únicas coisas de pé naquele tenebroso mar de desolação eram as redes enrodilhadas de arame farpado, árvores calcinadas sem folhas e com os troncos carbonizados, paredes incompletas do que outrora foram casas e não passavam agora de tristes e irreconhecíveis ruínas.”[1]
O dia-a-dia na trincha era horrível, desumano. Quando chovia, o que era vulgar na Flandres, os soldados tinham de lutar, comer e dormir, semanas a fio, ensopados e engaranhados. A lama estava por todo o lado. A desmoralização e a doença ia aos poucos desgastando a moral dos infelizes combatentes. Para além dos boches, os piolhos não deixavam descansar ninguém. As ratazanas, grandes como gatos, e os corvos, negros como a fuligem, tornavam ainda mais pesada aquela cruz, pois roíam e debicavam os cadáveres dos camaradas que à vista dos vivos jaziam, semienterrados, na Terra de Ninguém. Na própria trincheira os bichos roedores disputavam o espaço e mesmo a comida dos infelizes expedicionários.
A convivência diária com os elementos bélicos, ligados ao sofrimento e à morte, destroçavam a mínima réstia de esperança que os iluminasse: a imagem da morte tornava a vida um martírio como bem nos relata Pedro Freitas:
“Os cadáveres de soldados, mulas, cavalos e mais fragmentos macabros, são em abundância e em verdadeiro estado de putrefacção. Espalhados à superfície da terra, incomodam-nos, horrorizam-nos. (…) O apetite desaparece (…). [Os] engulhos de enjoo [são frequentes] por ter-se topado com uma perna ou cabeça a granel de mistura com a pá ou a picareta.”[2]
O espaço nas trincheiras era exíguo e a orientação muito difícil, sobretudo à noite. Para além disso, os rigores naturais da vida na frente, no que respeita ao terreno e ao clima, afetavam profundamente os militares. A ausência generalizada de hábitos de higiene pessoal, ou a dificuldade em os praticar, ajudavam a propagar pragas de piolhos, pulgas e outros parasitas, espalhando o desconforto e a doença.
Aos momentos de espera seguiam-se os momentos de combate. Os primeiros eram ocupados na limpeza das armas, no remuniciamento, na faxina, na construção e reparação das trincheiras, em breves momentos de descanso, ao que se juntavam os serviços de vigília e de patrulhamento. Constituíam estes espaços de tempo, momentos de grande desgaste físico e psicológico, como nos diz Rodrigues dos Santos:
“O que inicialmente não parecia passar de uma fantasia irreal transformou-se agora em perigo letal, deixou de ser brincadeira e começou a ser pesadelo. Vieram os tremores, o suor, o horror, a impotência. Matias começou gradualmente a perceber que a guerra era feita de oitenta por cento de tédio e rotina, dezanove por cento de frio polar e um por cento de puro horror, o mesmo horror que naquele momento o paralisava, a si e aos seus companheiros. Fugir dali estava fora de questão, mesmo que os regulamentos militares o permitissem. Os abrigos encurralavam-no, é certo, mas sempre ofereciam alguma protecção. Lá fora, sob a tempestade de aço e fogo, suspeitava que não seria possível sobreviver muito tempo.”[3]
Os momentos de combate, eram aqueles em que se respondia ao fogo inimigo e se esperava a morte a cada minuto. A capacidade destruidora de armas novas como a metralhadora e sobretudo o gás tóxico, sujeitavam os homens a grandes tensões emocionais. De tal forma que nem a pena de morte, por fuzilamento, instituída para os desertores, retirava da mente dos soldados a possibilidade do cavanço. O medo, a que a gíria da malta chamava cortar prego, mitigava a ponderação da fuga sempre presente na mente dos combatentes mais fracos.
As relações estabelecidas entre os combatentes entrincheirados, baseavam-se num crítico equilíbrio entre os momentos de espera, os mais frequentes, e os de combate. As relações de amizade cultivavam-se na presunção de que a desgraça, partilhada, se suportaria melhor. Porém, durante o combate, aflorava o instinto individual de sobrevivência e era cada um por si. Apesar disso, as manifestações de solidariedade eram mais frequentes do que à primeira vista se possa supor, como se verá.
A gestão temporal na frente, obrigava a ritmos de vida desconhecidos e originais. A luz solar definia os limites temporais de dois momentos charneira nas suas vidas: o a postos da noite, uma hora antes do anoitecer e o a postos da manhã, na madrugada de cada dia. A noite era o tempo mais difícil e de maior aperto psicológico. O silêncio imposto, o arraial de very-lights e o trovão dos canhões era constante e assustador. À noite, o inimigo fustigava mais. O a postos da manhã desvendava o horror da metralha que teve lugar nas trevas da noite. Apesar de tudo, a luz do sol descansava a alma dos guerreiros que tinham resistido, intactos, a mais uma etapa no fio da navalha.
O a postos daquela noite de 11 de novembro, no front de Fauquissat, tinha sido calmo e sem qualquer novidade. Tudo foi conferido e cada militar ocupava o seu posto para fazer face às surpresas da noite. O frio era cortante e o crepúsculo fazia adivinhar mais uma noite de intenso sincelo. Como se isso não bastasse, os desgraçados soldados que aguentavam a noite ao sereno conviviam com o perigo sempre presente de um bombardeamento de morteiros ou de um raid alemão que os dizimasse. Havia, por isso, que estar alerta e ocupar os postos de vigia acima do parapeito observando com muita atenção as movimentações dos boches do lado de lá do Campo de Ninguém.
Não seria ainda meia-noite quando a besta deu os primeiros urros! Primeiro uma saraivada de morteiros ligeiros, talvez para corrigir o tiro uma vez que rebentaram ainda longe da primeira linha, depois uma chusma de morteiros mais pesados que faziam tremer o chão e cortar prego aos nossos infelizes soldados que se enterravam quanto podiam na lama gelada para se safarem dos estilhaços. Por fim, morteiros pesados que onde caiam arrasavam. Por volta das duas da manhã, um desses morteiros graúdos caiu em cheio na Linha B e apesar do zingue-zague da trincheira, desfez o corpo dos soldados mais próximos, feriu gravemente outros e soterrou muitos deles. Os maqueiros foram chamados em socorro, mas não davam vazão ao sofrimento, de forma que foi preciso mobilizar todos os efetivos de saúde que estivessem mais próximos.
O nosso Cabo António estava na linha C, perto do abrigo do comando, onde, entretanto, tinha chegado o Capitão médico Adelino Augusto. O Capitão deslocou-se da retaguarda por reconhecer que os maqueiros não dariam vazão a tanto sofrimento. Porém, com a pressa de socorrer os infelizes, vinha desprevenido. As botas em mísero estado e o capote tinha ficado esquecido com a pressa no abrigo da retaguarda. Quando o Cabo soube que o Capitão Fernandes estava ali em trânsito para a linha B, foi ter com ele e ofereceu-lhe as suas botas e o seu capote para que ele pudesse deslocar-se em melhores condições. Assim foi. No regresso, o reconhecimento do seu gesto de altruísmo foi tal que, para além de muito agradecimento, o médico quis saber quem era aquele Cabo e anotou os seus dados pessoais.
Como o Cabo António e outros 6 500 camaradas dos cerca de 25 000 que a 2ª Divisão tinha na frente naquela noite, também o Capitão Fernandes foi feito prisioneiro, um mês depois, na célebre batalha de La Lys. Nunca mais se encontraram, uma vez que os oficias prisioneiros da Citadelle de Lille seguiram juntos para Rasttat na Floresta Negra e mais tarde para Bressen. Os praças-de-pré (soldados rasos, cabos e sargentos) foram dispersos por vários campos por esse império alemão que se entendia até à longínqua Rússia.
A Grande Guerra acabou a 11 de novembro de 1918, o Cabo Santos regressou a Chaves em fevereiro de 1919. O Capitão Fernandes regressou no Pedro Nunes em finais de dezembro de 1918.
Passado alguns meses e já na peluda, na sua terra natal, Amoinha Nova, António Moreiras, como era conhecido, recebeu uma missiva de Adelino Fernandes, já Major, para que, indo a Chaves, o visitasse na sua Casa de Saúde em Santo Amaro. Assim foi, António aproveitou a primeira feira e foi ter com o Major médico.
O Dr. Adelino recebeu-o com grande estima e após uma longa conversa as recordar a guerra, mandou chamar o seu filho Augusto Fernandes, também ele médico. Depois de lhe contar o sucedido, recomendou-lhe que doravante deveria considerar o senhor Antoninho Moreiras como um grande amigo da família. Assim foi até à sua morte, infelizmente prematura, como já havia sido a de seu pai.
O Major Dr. Fernandes faleceu em 28 de Maio de 1943, com apenas 67 anos de idade, passando o seu filho a ser o médico da família sem que alguma vez tivesse cobrado um único tostão pelos serviços de saúde prestados.
Por isso, a 9 de maio de 1957 nasci eu, neto do Cabo António, na Casa de Saúde do Dr. Fernandes em Santo Amaro. Um privilégio, num tempo em se se nascia em casa aos cuidados das parteiras curiosas, com todos os ricos inerentes.
Talvez eu deva a vida àquele gesto, longínquo, do meu avô e ao seu capote, pois diz a minha mãe que o parto foi tão difícil que só sobrevivi porque o Dr. Fernandes, que me tirou a ferros e me fez respirar, quando as enfermeiras já me tinham dado como perdido, estendendo-me numa cama para a salvarem a ela!
– Já que o filho não se salva, salve-se sequer ao menos a mãe – diziam elas!
“Faz o bem e não olhes a quem” - Diz o povo e digo eu, fosca-se!...
Coisas da guerra!
Gil Santos
[1]Cf. José Rodrigues dos Santos, A filha do Capitão, Lisboa, Gradiva, 2007, p. 229.
[2]Cf. Pedro de Freitas, As minhas Recordações da Grande Guerra, Lisboa, L.C.G.G., 1935, p. 51.
[3]Cf. José Rodrigues dos Santos, 2007, Ob. Cit. p. 251.