Barbos de escabeche
– Rais te parta o peixe que está cheio de arganas – queixava-se o pequeno Tibério muito zangado.
– Come d’amodinho mou filho, não se te entrasgue algua espinha e te afogue! – aconselhava a mãe com o mesmo carinho com que tratava o Pécora, o outro mais velho, depois que ficou manquinho de uma perna.
Comiam barbos de escabeche. Foram apanhados nas cordas que o Tibúrcio estendera à socapa no Tâmega. Ele bem sabia que era proibido e que se fosse apanhado iria parar à choldra de S. Neutel a ver o sol aos quadradinhos e com umas arrochadas no lombo. Mas que fosse por Deus e pelos filhos da amásia. A lazeira superava o medo e valia a pena prevaricar só para ter os enteados de tripa forra.
Não havia pai para o Tibúrcio nesta arte de apanhar peixe à corda. Mas só no inverno, porque no verão praticava outra das suas especialidades o peixe ao buraco! Madrugada, ainda o sol se espreguiçava para lá das encostas do Brunheiro e já ele metia pés a caminho para a primeira presa. Chegava, lia o rio que quase sempre corria fraco por estre penedos e ougas floridas. Despia-se até ao pescoço, atava uma saca de rede à cinta, pegava numa vergasta de amieiro e rio acima fustigava a tona da água. Os peixes, ainda endorminhados, encafuavam-se nas luras por baixo das pedras. O Tibúrcio mergulhava, metia a mão e quase sempre apanhava peixe graúdo. Por vezes lá lhe calhava uma cobra de água taluda cuja cabeça esmagava contra um penedo. Outras, algum leiranco de água, perdurado pelas cavilhas no polegar. Mas, tirando isso, era peixe à farta.
A arte da pesca à corda, mais usada no inverno e de preferência quando o rio fosse grosso, era mais cómoda. Ajeitava um decâmetro de corda fina, de braçada em braçada atava-lhe umas pontas de metro de sediela forte. Em cada uma dessas extensões empatava um anzol bico de papagaio. Iscava com minhocas que apanhava na estrumeira do Maneta. Pela noitinha levava o arcanho para o Poço do Leite, um fundão a jusante da Ponte Nova. Atava um calhau na ponta da corda, arrimava-o para a outra margem em diagonal. Esperava que a corrente a esticasse e quando a topasse tensa, atava a outra ponta nas raízes de uma figueira que abraçava a parede sobranceira ao dito poço. Despois, era só esperar que a noite e a voracidade dos ciprinídeos fizesse o resto. Pela matina, antes mesmo que o galo da Pônas acordasse, ia recolher o aparelho. Rara era a vez que não tirasse pelo menos meia dúzia de barbos. Uma farturinha preciosa em tempo de racionamento!
O Tibúrcio era viúvo e sem descendência. Uma tuberculose galopante tirou-lhe a Carminda aos trinta anos, antes mesmo que pudesse conceber. Como soi dizer-se, rei morto rei posto. Não perdeu tempo, aos trinta e um aputou-se com a Chambra, mãe solteira, com dois filhos já espigadotes, o Tibério e o Pécora.
A relação alimentava-se de uma paixão forte, quotidiana. Contudo, a coisa começou a esfriar e veio um tempo em que o Tibúrcio ralas vezes visitava a sua amante. A Chambra estava cada vez menos disponível para o amante no tugúrio onde vivia, após a desgraça de que foi vítima o seu filho mais velho. A infelicidade do Pécora conta-se em duas penadas.
Teria uns seis anos quando numa manhã de janeiro o Chico da Soutília, seu padrinho de batismo, aricava uma campina de centeio, contígua à linha do comboio, ali para a Fonte Nova. Fazia-o com um arado de relha de ferro que uma mula, assustadiça, puxava aos repelões. O rapazeco, que fosse com o cheiro na merenda do padrinho, ou em andar emplouricado no arado, foi atrás dele para a lavra. Gostava que o sentasse abaixo da rabiça, com os pés sobre o timón para andar de landó rego fora. Assim estava a acontecer quando o comboio, na aproximação ao apeadeiro da Fonte Nova, abriu a goelas num estridente silvo. A mula, apavorada, desinvestiu campo afora. O Chico não teve mão nela e o mocinho caiu, entalando a perna esquerda entre a abieca e a lavrada. No movimento tresloucado, um rebo mais aguçado apanhou-lhe a pernita e amputou-a redondinha pelo tornozelo deixando-o manco para o resto da vida.
O que haveria de ser da vida desse rapaz sem uma gâmbia, num tempo em que mesmo com as duas sabe Deus?
Em ordem ao futuro do filho manco, a Chambra, precisava de trocar a paixão do Tibúrcio por alguma outra coisa que desse mais do que barbos de escabeche!
Ora, um amanhado dia do mês dos cucos, quando atravessava a linha do caminho-de-ferro com um jiga de labrestos à cabeça, colhidos na mesma leira onde o seu Pécora perdera o pé, a Chambra ia sendo apanhada pelo comboio. Não fora a mão amiga de um guarda-linha a tê-la salvo e seria morte certa. Ficou-lhe tão reconhecida que no dia seguinte, o tal, já merendava em sua casa. Dali avezaria um dinheirinho certo. Com ele poderia atenuar as dores da família, particularmente assegurar um futuro para o filho manco.
Não esteve com meias medidas, comassim! Deu-lhe a provar o licor de Vénus e fisgou-o pelo beicinho como o outro fazia aos barbos!
Tratava-se de um homem de meia-idade, solteirão, vindo do Douro. Por desgosto, quiçá de amor, pediu para vir trabalhar na linha do Tâmega, aqui para Chaves. Roupa lavada e cama quente levaram-no a viver de porta cerrada com a Chambra e os seus dois filhos.
Com aquele desgosto não pôde o Tibúrcio. Na primeira oportunidade contratou os serviços do Neves o Passador e emigrou a salto para a França. Teve tanta sorte que em pouco mais de cinco anos fez fortuna capaz de lhe alimentar uma velhice sem sobressaltos.
Durante esse tempo a Chambra vivia na fresca ribeira com o duriense e não mais se lembrou do Tibúrcio. Contudo, uma bela manhã do primeiro de agosto, o guarda-linha avisou que entrava de férias no dia seguinte, tomaria o comboio para a sua terra. Visita aos familiares. Assim foi. Evidentemente que se esqueceu de voltar no final das ditas.
Adivinhando a mandingança e achando-se de novo desamparada, a Chambra não perdeu tempo, foi pedir ao Beiças que lhe redigisse uma carta para a França.
Rezaria mais ou menos assim:
Crido Tibúrcio:
Espero qestas duas letras te bão topar de boa saúde. Nós por cá estemos bem graças a Nosso Senhor.
Escrebo-te esta p’ra te dezer que não me astrebo a aturar o Tibério e o Pécora. Desde que fostes p’rá França que me relam os dias a pedir barbinhos de escabeche. Eu bem los fazia mas num tenho quem nos pesque. Faltasme tu qeras o pitroil da minha candeia e o luzeiro dos meu olhos. Nunca na bida heide ter home tão asado qemo tu. Dabasme carinho, açaramoabasme os rapazes quando mijavam fora do penico, afagabasme a palha do xaragão quando oupava e olhabasme a pita todos os santos dias para que não pusesse fora. Fostes e hades ser sempre o home da minha bida e o pai que os meus filhos nunca tiberam.
Bolta Tibúrcio da minha peituga, serei o teu aconchego na belhice.
Sem mais que te diga, recebe o afago deste coração empedernido e a promessa de um cibo ardente que te deseja!
Por ti anseio.
Desta que muito to quer!
Chambra
A missiva lá seguiu para terras de Bonaparte.
Ainda não era Natal e já à sua porta, na canelha das Caldas, parava um carro de praça a descarregar duas malas de cartão anchas e um pimpão de fato e gravata. Era o Tibúrcio que retornava, agora carregadinho de francos, aos braços da sua amada.
Daí em diante nunca mais faltou o escabeche de barbos naquela mesa. Bem entendido que já não era acompanhado apenas com carolos recessos de centeio escuro, mas com cantos de trigo e outras iguarias que a Chambra trazia, vaidosa, da praça todas os dias de feira.
Viveram felizes. Tão felizes, que até o Pécora teve direito a um pé novo, suponho que de pau de amieiro, que o doutor Fernandes mandou vir de Barcelona. Mancava um pouquinho, mas foi apenas enquanto não se habituou.
O Pécora passou o resto dos seus dias rua Direita acima, rua de Santo António abaixo, a vender cautelas para seu sustento. Não sei se algum dia teria vendido a sorte grande, mas merecia que isso tivesse acontecido.
O Tibério foi chauffer de praça no Arrabalde.
A Chambra e o seu Tibério morreram velhinhos.
Do guarda-linha nunca mais ninguém ouviu falar.
Gil Santos