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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

28
Fev18

Dia de neve em Chaves


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Dia de neve em Chaves dá quase para dizer que é dia de festa. Tenho a certeza de que quando a meio da tarde de ontem começou a nevar, todos pararam nos seus afazeras para se abeirarem da janela a ver a neve cair, isto os que estavam dentro de portas, pois os da rua transbordavam de felicidade com a neve a cair-lhes na pinha, suponho.  É a criança que vive dentro de nós que não resiste ao cair da neve.

 

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Pois outros interesses só me permitiram mesmo deitar-lhe um olhar breve e só no regresso a casa, já noite, é que deu para fazer dois registos para memória futura. Pode ser que de manhazinha, já à luz do dia, o manto branco se mantenha sobre a cidade, e aí, sejam possíveis mais uns registos para memória futura. Para já ficam os meus dois registos de ontem à noitinha, dia 27 de fevereiro de 2018.

 

28
Fev18

Nós, os homens


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XXIII

 

Na realidade, as coisas não se passaram exactamente assim! No dia seguinte ao do internamento do meu grande e sincero amigo, voltei lá, ao bar, que todos conhecíamos menos ele. Desta vez sozinho e não fiquei na sala de cadeiras forradas a veludo vermelho, não tomei nenhum whisky e não falei com ninguém, a não ser com a “Madrinha”. Era tratada assim a dona do bar, uma mulher sexagenária, alta e muito gorda. Cada traço do rosto escondia uma história para contar, a maioria delas nunca as contaria a ninguém. Bonita, mas sofrida.

Fui directamente ao primeiro andar. Isso mesmo, costas contra costas, como fazíamos na caça, como fazíamos na guerra, protegendo-nos uns aos outros.

 

A decisão foi fácil de tomar e tinha por cenário a sala de espera da urgência do hospital. Ficou-me gravada a expressão do rosto, que o médico trazia quando me veio dar a notícia:

- O seu amigo já saiu da sala de recobro e está nos cuidados intensivos. Vai sobreviver, mas teve uma anoxia cerebral de quinze minutos e isso vai deixar-lhe sequelas irreversíveis.

- Que sequelas?

- Neste momento não podemos avaliar a extensão das lesões. É um milagre, estar ainda entre nós.

 

Nunca, em toda a minha vida, tinha sentido o que senti nesse momento. Um estado de confusão mental, com pensamentos descoordenados, com uma vontade lancinante de pôr termo ao que tinha causado aquela amputação ao meu amigo. E sentia a palavra irreversível, a latejar na minha cabeça.

Até esse dia, eu pensava que irreversível só era a morte! Tudo o mais se podia, de uma forma ou de outra, contornar, mas não era assim.

- Penso que poderá continuar a exercer a sua actividade profissional, mas com algumas limitações.

- Limitações?

- Sim, digamos que guardará do passado todo o seu passado e isso permitir-lhe-á continuar a desempenhar aquilo de que o seu cérebro tem memória, mas já será mais complicado se quiser iniciar um novo projecto. Percebe o que lhe estou a dizer?

 

O que ele me estava a dizer é que o meu grande e sincero amigo tinha parado no tempo, sem que isso lhe trouxesse de presente a imortalidade.

- É difícil lidar com estes doentes e até decidir o que devem ou não saber sobre o seu grau de deficiência…

- Grau de deficiência?

- Talvez não seja a palavra mais correta, dizendo melhor, grau de insuficiência…

Por momentos deixei de ouvir a voz do médico, aquela conversa despoletava em mim sentimentos que eu nunca tinha tido e com os quais eu não estava a saber lidar.

- … em termos de raciocínio, por exemplo, pode levar mais tempo a processar a informação e chegar mesmo a não entender alguma que lhe é dada.

 

Para além de parar no tempo, o meu amigo ia ficar lento! Fui então assaltado por um pensamento mórbido: o meu amigo tinha andado a fazer de otário sem o ser e sem o saber, e agora que finalmente tinha tomado consciência disso e lhe ia pôr termo, ia ficar otário!

- O senhor está-me a ouvir? Há decisões que, nós médicos, não podemos tomar, tem de ser a família. Eu só estou a falar consigo porque foi o senhor que o trouxe ao hospital e porque ainda não conseguiram contactar a família.

- Que decisões?

- Por exemplo essa de que lhe falei, se é preferível o doente estar completamente esclarecido sobre o que lhe aconteceu, de forma a preparar-se melhor para a vida ou se, ao contrário, é melhor omitir-lhe o seu verdadeiro estado e deixar que seja ele, lentamente, a aperceber-se da sua falta de capacidade para determinadas coisas.

 

Eu estava num estado alucinado, o médico a pôr a decisão nas minhas mãos e eu a achar-me incapaz de decidir. Cheguei a um estado de taquicardia que tiveram de me sedar para que não me acontecesse nada ou para que eu não fizesse nada, ficou por esclarecer o motivo.

 

Já era tarde, o meu amigo ia ficar alguns dias no hospital para observação. Fui para casa e quando entrei na sala dirigi-me ao móvel-bar que tinha à entrada, do lado esquerdo, e bebi três whiskies, maneira de falar, porque abri uma garrafa e quando a deixei estava a meio. Fui ao quarto, abri a segunda gaveta do armário onde tinha, há décadas guardado, o meu revólver de 9 mm e carreguei-o. Saí.

 

Quando me dirigi ao primeiro andar, não utilizei o elevador, subi pelas escadas, de dois em dois degraus. Enquanto subia, debatia-me com a atitude a tomar: o que é que eu devo fazer? Bato à porta e espero que ma abram ou entro sem bater?

Escusado. Quando cheguei à entrada do quarto, a porta estava entreaberta. Em silêncio e cautelosamente, a medo diga-se mesmo, abri-a muito devagar e foi então que os meus olhos se crisparam nos dela. De imediato, descarreguei a arma. Ouviram-se gritos, muitos gritos. Pela primeira vez na minha vida eu tinha falhado. A cabeceira da cama, almofadada ao estilo inglês, tinha ficado com a esponja a descoberto.

 

Era verdade que eu estava alcoolizado, também era verdade que só por essa razão é que tinha falhado. E daí talvez não, um homem nunca sabe, em situações extremas, o que lhe passa na cabeça e aquilo era uma situação extrema.

A Madrinha não fez queixa à polícia, receando que o negócio sofresse consequências desastrosas, ao conhecer-se publicamente a tentativa de homicídio que ali tinha ocorrido. Pediu descrição aos presentes e mandou-me em paz e que o Senhor me acompanhasse. Fui, mas não em paz e o Senhor também não veio comigo.

Não sei como é que o carro me levou a casa! Só tive a certeza disso quando, no dia seguinte, o vi estacionado à porta.

 

Nunca mais lá voltei, nem sozinho nem acompanhado. Soube depois que a menina se tinha ido embora, a conselho da Madrinha, nem esse discernimento ela teve por conta própria, dizendo-lhe que não podia garantir a sua segurança se ela continuasse ali.

Fiz o que me pediram, nunca contei a nenhum dos meus amigos o que ali se tinha passado naquela noite. Se bem que eles nunca perceberam porque é que eu nunca mais lá tinha ido:

- Não leves as coisas tão a peito! Diziam, para me convencerem a acompanhá-los. Nunca conseguiram.

- Ela já lá não está, foi-se embora, parece que um cliente, que era meio marado dos cornos, lhe apontou uma arma e a gaja assustou-se!

Sorri. Meio marado dos cornos!

Cristina Pizarro

 

 

27
Fev18

Praça sem Saudades


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Praça sem Saudades

 

Dizem que a saudade é portuguesa, que não tem tradução literal em outras línguas, que é um sentimento português, e se procurarmos pelo seu significado encontramos coisas do género de ser um sentimento de mágoa e nostalgia, causado pela ausência, desaparecimento, distância ou privação de pessoas, épocas, lugares ou coisas a que se esteve afetiva e ditosamente ligado e que se desejaria voltar a ter presentes.  E na realidade a saudade e a razão da saudade, são coisas complicadas de explicar a quem não as sente ou tem, a quem não viveu e não tem memórias de um passado que não conheceu. Tomemos como exemplo o Jardim das Freiras do qual muitos flavienses têm saudades, eu incluído. Pois há dias, a minha filha disse-me não perceber porque há tanta gente que não gosta das Freiras, que ela até gosta…. Pois! Pensei eu, e de imediato lhe respondi – Pois! Porque não as viveste como eu as vivi. Claro que a minha filha não pode ter saudades do Jardim das Freiras, quando nasceu já não existia… Como se pode ter saudades de uma coisa da qual não temos memórias? — Não podemos. Ter saudades é ter memórias e não há nenhum mal nisso, antes pelo contrário, pois só temos saudades daquilo que verdadeiramente gostámos, daquilo que foi bom, dos lugares onde fomos felizes e ainda bem que essas memórias existem, pois são essenciais no viver um presente e na construção do futuro…

 

Pois tudo isto para vos explicar o título do post de hoje, o da Praça sem Saudades, porque de facto assim é — não tenho saudades desta praça — vejo-a todos os dias, continua a ter por lá a frutaria do Hélder, os pastéis da Maria, as mesmas pessoas de sempre com o viver dos mesmos dias em gestos repetidos, os cumprimentos de sempre, o vaivém de quem passa, e tudo por lá vai estando como sempre esteve. Está bem assim, é assim que gosto dela e espero nunca vir a ter saudades dela.

 

Bem, e agora bou-me que se faz tarde, e já estou com saudades da caminha…

 

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27
Fev18

Chaves D'Aurora


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  1. AFILHADOS.

 

Uma tarde, com um belo sol de início da primavera, Florinda ouviu algumas gargalhadas à porta. Desceu a escada lateral e logo viu, à frente da quinta, alguém cuja visita lhe trouxe, para já, uma enorme alegria. Há muito tempo não via Adelaide, que andava a morar fora do país, a gozar os encantos de Madrid, Paris e Berlim, no propósito de tentar amenizar as dores pela morte do seu meigo, terno e inesquecível “afilhado”.

 

Na boleia da Carochinha, estava agora um jovem tímido e desengonçado, mas trajado com certo apuro. No rosto, malgrado seus belos traços, muitos cravos e espinhas haviam deixado a sua assinatura. O corpo, todavia, era bem desenvolvido, tornando-o, em termos gerais, um beneficiado pela Natureza. Adelaide pediu a Maria que o encaminhasse à cozinha e lhe desse, por gentileza, um copito de tinto maduro, ao que Flor acrescentara – E uma talhada daquele folar que a Francisquinha nos mandou!

 

Naquele dia, as irmãs haviam saído e, à sala, estava apenas Aurora – Ai, que cachopa! Cuida que a tua menina está a se pôr! Cada vez mais jolie, minha cara Florinda, très jolie! – e logo Mamã, temente ao marido, fez sinal para que a filha saísse, o que não escapou à viúva – Ora deixa a menina cá estar, ó Flor! Ela já tem bastante idade para aprender sobre as coisas do mundo. Se bem que ela... ora, pois, muitas coisas não sou eu quem lh’as vai ensinar... – soltou, então, uma risada cristalina – Além do mais, tu sabes, Florinda, que eu não sou dada a conversas vis nem palavras chulas. Tento ser o que chamam os franceses de une femme d’esprit.

 

Florinda foi leal e sincera – Sim, sim, por certo, Dedé, considero-te e sempre hás de ser para mim uma dama – ao que a outra ajuntou – Claro que sim, minha Flor, sou uma dama em qualquer salão! – mas segredou aos ouvidos da amiga, tornando as faces desta mais coradas do que um pimento encarnado – Embora deixe de sê-lo, quando me apetece, em certos sítios e a certas horas – e soltou mais uma de suas estrondosas gargalhadas.

 

A cavaqueira já ia alegre de per si, quando Aurora cometeu a mais indiscreta das perguntas – Esse rapaz, esse seu novo cocheiro… ele também é seu afilhado, tal-qualmente o Luís Miguel? – no que, à menção daquele que se fora, Adelaide ficou séria de repente, tirou de sua bolsa um lenço cinza rendado de bordas negras e o levou aos cantinhos dos olhos. Não havia, nesse momento, qualquer dramaticidade da atriz diletante, nenhuma encenação teatral.

 

Fez-se um silêncio, um tanto quanto constrangedor, finalmente quebrado pela repreensão de Flor – Aurita!!! Isso são coisas que se perguntem?! – mas Dedé logo se refez – Deixa estar, minha amiga. A menina não me está a falar nada demais. – Pausou um pouco e – Ai, Florinda, jamais vou esquecer o meu putinho adorado! – então repetiu a pergunta que, a este narrador, não lembra quem, nem onde, mas que em um filme ou peça teatral, alguém já disse ou escreveu – “porque morrem os jovens”?!

 

Depois de outro silêncio pesaroso, solidário, Mamã colocou as mãos de Dedé entre as suas. Esta virou-se para a rapariga – Não, filha, este aí, para mim, é apenas um... um secretário-geral, digamos assim. Compra-me os precisos da casa, cozinha, põe a mesa, separa-me as roupas para entregar à lavadeira… – e para Flor, em tom mais baixo – Muitas vezes, é claro, também me serve como valet-de-chambre. Ah, mas quanto a esse ofício… percebes, minha Flor? Esse aí, em nada se compara ao Miguelito!

 

Dessa vez, mais por curiosidade do que em segundas intenções, quem se viu inconveniente foi Mamã, que logo se pôs a corar de pejo, assombrada pelo que, ela mesma, estava a perguntar – O Luís Miguel… batizaste-o já rapaz? – o que levou Adelaide a fixar na anfitriã os olhinhos miúdos, mas vivíssimos – Ora pois, minha amiga, o Miguelito já lá ia pelos dezasseis anos, quando o conheci. Era um dos criados da quinta onde eu estava a festejar as bodas de uma sobrinha, lá na Madeira, em… em que aldeia era mesmo? Bom, o que vale é que eu… ai minha rica saudade, quando me lembro daquele dia!

 

Como se estivesse em um Cinematógrapho, seus olhos pareciam acompanhar o filme que estava a descrever. – Havia, no meu quarto, uma janela que dava a um pequeno ribeiro, desses bem rasinhos. O Miguelito… ou melhor, o Miguelão... ele atravessou esse ribeiro e me chegou todo encharcado, da cintura pra baixo… molhadinho. Como eu que, de outro modo, também já estava... percebes? Ai, meu Deus, agora falo eu: isso são coisas que se digam?! – e sussurrou para Flor – Enfim, pra não me pôr a palavrear demais, só tenho a dizer-te que batizei o menino ali mesmo, com a água do ribeiro, sem sal, sem vela de cera, nem com os unguentos sagrados, percebes? – após o que, ao seu feitio, pôs-se de novo a gargalhar e nem escutou a repreensão da amiga – Dedé!!!

 

Logo, porém, a visitante entristeceu-se de novo e levou o lenço ao nariz – Te lembras como ele era? Ajudei-o a se tornar um cavalheiro, dei-lhe escola, ensinei-lhe as boas maneiras… nunca me haverá ninguém como ele! – enquanto Aurora e Mamã fitavam-na caladas, sem saber o que dizer. Certas dores não passam com remédios, nem se curam com o mero e vão consolo dos amigos.

 

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26
Fev18

De regresso à cidade


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Hoje fazemos o regresso à cidade pela Rua de Stª Maria. É um olhar repetido que vamos registando de tempos a tempos, nem que seja e só para ver como vão as coisas por lá, se a Casa de Saúde ainda lá está, mesmo não abrindo às suas portas há mais de trinta anos, se há novas casas comerciais, se as obras iniciadas há praí 10 anos já acabaram, se os prédios abandonados já têm gente dentro, se o prédio destruído por um incêndio já iniciou a sua reconstrução. Entretanto também podemos ficar a saber que no dia 4 de fevereiro às 16H20 e 48 segundos, uma pessoa descia a rua enquanto outra a fotografava.

 

Boa semana.

 

26
Fev18

Quem conta um ponto...


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381 - Pérolas e diamantes: Vícios

 

Uma coisa, segundo André Canhoto Costa, autor do livro Os Vícios dos Escritores, separa Shakespeare de Camões. O primeiro, como bom britânico, queria criar público para ganhar dinheiro, enquanto o nosso poeta pretendia, como é compreensível, bajular um rei, construir pateticamente um sentido patriótico de povo e inscrever o seu nome na galeria dos poetas imortais. 

 

Camões podia incluir-se no grupo dos escudeiros. Não era fidalgo, mas ser escudeiro era uma função antiga que consistia em ajudar o cavaleiro a armar-se e a montar. Ou seja, Camões era uma espécie de Sancho Pança. Nos finais da Idade Média, os escudeiros confundiam-se com os cavaleiros, dado que na guerra eram por vezes mais eficazes.

 

Também Vasco da Gama, mais tarde conde da Vidigueira, era um escudeiro, filho de um oficial da fazenda.

 

Ou seja, Camões estava entalado entre a alta nobreza e um bando de nobres que não tinham onde cair mortos. Teve uma infância misteriosa, tão misteriosa que há historiadores que o “fazem” nascer em Vilar de Nantes. Não andou na universidade, ou, pelo menos, não existem registos que o comprovem.

 

Por incrível que pareça, tal como Shakespeare, Camões sabia pouco latim e ainda menos grego. Mas de uma coisa temos a certeza, leu os poetas: Petrarca, Garcilaso, Boscán, Bembo, Sanazzaro, Ariosto.  E também as crónicas do reino. E os filósofos.

 

Camões foi criado na casa dos Noronhas, onde serviu D. Francisco e D. Violante e frequentou vários palácios. Naquele tempo era costume muitos jovens com certa aparência de nobreza, mas sem grandes posses, a não ser as do talento, terem acesso à mesa do rei e serem frequentadores das grandes casas do reino. Aprendiam letras e faziam companhia aos filhos dos aristocratas, desempenhavam o papel de companheiros de brincadeira e, entretanto, aprendiam a nobre arte de não contar nada e de sorrirem quando os questionavam.

 

Camões foi um desses, mas depressa começou a perder o sorriso.

 

O historiador do século XIX, Oliveira Martins, no seu livro Camões, fala na trilogia típica da juventude do poeta: mulher, mesa e amigos. De facto, Camões participava num certo luxo, exibindo as camisas bordadas, as ceroulas de chamalote, as carapuças de solear e os chapéus de abas exageradamente largas.

 

Andava bem vestido. Mas, mesmo assim, adquiriu fama duvidosa. Talvez a sua ilusão o tenha levado a tomar liberdades perigosas. Ganhou a reputação de poeta boémio. Chamavam-lhe o trinca-fortes. Frequentava tabernas, locais dissolutos em Alhos Vedros e no Barreiro e andava até por casas de boticários, o que talvez indiciasse algum interesse por substâncias alucinogénias.

 

A sua vida era passada na companhia de fidalgos e também por grupos de escravos, mulatos e negros.

 

Segundo André Canhoto Costa, Camões poderá ter sido bastardo ou judeu, que por causa das gajas e das zaragatas perdeu um olho, e também um homem que por causa do seu desejo ardente lixou a vida. Foi condenado ao exílio e enviado para uma terra sem mulheres. Poderá haver maior desterro?

 

Foi ainda ladrão e um vigarista pouco talentoso com algum jeito para as contas.

 

Já Frederico Lourenço, o exímio tradutor da Épica Grega e da Bíblia, avançou, numa sua desconhecida obra de ficção, com a tese de um Camões homossexual. Era o que mais nos faltava.

 

Por seu lado, e seguindo a tese de André Canhoto Costa, o professor Aguiar da Silva, na sua obra crítica sobre José Hermano Saraiva, intitulada Camões: Labirintos e Fascínios (1994), não acrescenta grandes explicações para algumas “das dilacerantes queixas de abuso, apresentadas por Camões na sua lírica, para lá de uma enxurrada de citações clássicas. Com efeito, Camões nunca se cansa de nadar numa torrente de sadomasoquismo atormentado, perseguições, erros, culpas, prisões e desterros.”

 

A grande questão do autor é sobre se será possível um louco poder escrever uma obra-prima.  Os especialistas dizem que a vida dos autores não encerra nenhuma utilidade para compreender os seus livros.

 

No entanto, os estudos sobre as grandes obras literárias acabam sempre por explicá-las através da vida e personalidade dos escritores.

 

Este livro revela-nos que, por exemplo, Kafka foi sempre um hipocondríaco vegetariano com um gosto suspeito por menores; que Eça de Queiroz era um vaidoso mulherengo com tendência para o cinismo; que Camilo Castelo Branco tinha tendências maníaco-depressivas e uma forte propensão para o jogo; que Dickens manteve uma amante secreta e expulsou a mulher de casa; que Gogol era um fanático religioso e um homossexual reprimido; e que Dostoiévski arruinou financeiramente a família no casino. 

 João Madureira

25
Fev18

O Barroso aqui tão perto - Brandim


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Vamos lá até mais uma aldeia do Barroso do Concelho de Montalegre, desse Barroso aqui tão perto de nós e que muita da nossa gentinha lhe passa ao lado sem dar por ele, sem conhecer e descobrir as suas maravilhas, onde há do melhor no que respeita à nossa gastronomia, acompanhada de bons vinhos que não produzem mas sabem escolher, com rios e ribeiros de águas cristalinas, cascatas e paisagens de encantar, fauna e flora para explorar, parques naturais, etc, tudo aqui ao lado a partir dos vinte e poucos quilómetros, a meia hora de caminho ou pouco mais.

 

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Hoje vamos até Brandim, a 52 quilómetros de Chaves a menos de uma hora de viagem, seja qual for o itinerário que escolhermos até lá chegar, mas como sempre recomendamos um deles e deixamos alternativa para um segundo itinerário.

 

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O itinerário recomendado cai mais uma vez pela opção da estrada de Braga, EN103 até à Barragem dos Pisões, passando por S.Vicente da Chã, Travassos da Chã. Penedones, Parafita e Viade, pois logo a seguir, ainda antes de chegar à aldeia dos Pisões, viramos à direita (CM1011) e dois quilómetros e pico à frente temos Brandim. Esta estrada CM1011 é uma das secundárias mais interessantes do Barroso, mas mais à frente falaremos dela. Fica o nosso habitual mapa e de seguida o itinerário alternativo.

 

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A opção pelo itinerário que deixámos atrás foi tomada apenas por ser o mais rápido e de melhor estrada.

 

O itinerário alternativo, em termos de distância, é quase idêntico ao itinerário recomendado, é mais curto em apenas 100m (51.9Km), mas demora mais tempo a percorrer e é maioritariamente feito em estradas secundárias, no entanto, pessoalmente, acho-o mais interessante. Trata-se o itinerário via estrada do S.Caetano, Soutelinho da Raia, Meixide, aqui no final da aldeia, na bifurcação da estrada optamos pelo lado esquerdo em direção a Pedrário e Sarraquinhos, nova viragem à esquerda em direção a Zebral, com passagem pelo Cortiço e logo a seguir o Barracão, ou seja, entramos no itinerário por nós recomendado, pois a partir do Barracão até Brandim o itinerário é comum.

 

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Para sermos mais precisos, e também como vai sendo habitual, ficam as coordenadas e altitude da aldeia:

41º 45’ 39.01” N

7º 53’ 18.91” O

Altitude média: 950 m (sempre acima dos 900 e abaixo do 1000m)

 

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Pois entremos em Brandim, coisa que na realidade nós fizemos pela primeira vez há coisa de um ano, mais propriamente no dia 21 de abril, já a meio da tarde, num dia nublado e com alguma chuva e para sermos sinceros, não tomámos nenhum dos itinerários que aqui recomendámos, pois foi num outro itinerário em que Brandim calhava no regresso a casa, já vindos de outras aldeias barrosãs. Penso que tínhamos deixado para trás já meia dúzia de aldeias, fazendo a nossa abordagem a Brandim a partir da aldeia vizinha de Fervidelas. Ou seja, entrámos na aldeia pela seu “parque industrial” de grandes armazéns e construções mais novas e só depois é que entramos no seu centro histórico.

 

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É, as aldeias também são um pouco como as cidades, com o seu zonamento à sua escala. Coisas novas, a nós, passam-nos ao lado, pois também a arquitetura se globalizou e aparecem cópias de tudo por todo o lado. Nós gostamos mais daquilo que se fez no passado, com as mãos dos filhos das aldeias em que a arquitetura que mandava era a da necessidade daquilo que precisavam, com aquilo que tinham à mão, ou seja, a pedra que a terra dava, a madeira que tinham nas poulas e a arte dos artistas locais (pedreiros, carpinteiros) além da gente da casa. E podem crer que dessa arquitetura caseira, local e simples, nasceram muitas relíquias dignas de serem apreciadas, não só pelos pormenores, mas também pelas soluções encontradas, mas o mais impressionante é que nunca havia duas construções iguais. Todas seguiam mais ou menos a mesma identidade mas sempre diferentes.

 

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Claro que esta riqueza arquitetónica sente-se mais nas aldeias de maiores dimensões do que nas de menores dimensões. Brandim é uma aldeia pequena, daí a variedade também não ser grande, mesmo assim tem pormenores interessantes e pelo meio algumas intervenções mais recentes, mas continua a manter-se a integridade da aldeia.

 

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Construções típicas barrosãs também as há, ainda com o testemunho do murete de amparo do colmo em alguns telhados, alguns canastros, a capela pequena, de pedra à vista com uma característica que muitas capelas e igrejas hoje não “cumprem” ou seja a da preocupação da sua orientação em que os fieis ficam virados para Oriente “ad orientem”. Alminhas também vimos e o restante, à volta da aldeia, o verde das pastagens, algumas com gado dentro. Gado que a nossa teleobjetiva também conseguiu captar já em pleno monte, um pouco entregue a si próprio como vai ainda acontecendo um pouco pelo Barroso fora.

 

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E neste andar por meios rurais vamos tendo a sorte de às vezes “tropeçarmos” com a fauna local. Em Brandim tivemos a sorte de uma Poupa posar para nós. Não é que por cá não as veja com alguma regularidade, pois já são um pouco urbanas, mas muito esquivas à fotografia. Esta não, esperou pelo clique e só depois partiu. Poupa que eu conheço como Boubela mas cujo nome científico é Upupa Epops . Bonitas são, mas quem já as teve por perto, dizem que cheiram mal. Como nunca estive perto de uma, não sei se é mito ou verdade.

 

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Se forem pelo itinerário que recomendámos no inicio, vão ter as vistas gerais da aldeia à vossa disposição para fotografarem. Se como nós entraram vindo de Fervidelas, só dão conta da aldeia quando entrarem dentro dela. Seja como for, se regressarmos a estrada CM1011, recomendo que façam o regresso a Chaves via Montalegre, isto para poderem apreciar as vistas e aldeias que esta estrada atravessa, pois é raro elas calharem nos itinerários principais dentro do Barroso.

 

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Esta estrada CM1011 liga a EN103 à M514 e M308. Saindo da simbologia das estradas, na prática liga a Barragem dos Pisões à Barragem de Sezelhe, ou seja, faz a ligação entre o Rio Rabagão e o Rio Cávado e pelo caminho além de Brandim, passa ainda por Contim,  São Pedro, ao lado da Srª de Vila Abril, passa por cima do paredão da albufeira de Sezelhe  e termina no cruzamento da aldeia com o mesmo nome.

 

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Administrativamente falando, Brandim pertencia à freguesia de Viade de Baixo mas com aquela coisa da união de freguesias, passou a pertencer à União de Freguesias de Viade de Baixo e Fervidelas.

 

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Nas nossas pesquisas encontrámos algumas referências a um “Povoado romano localizado num monte sobranceiro à aldeia de Brandim, do lado Noroeste, denominado Vale do Antigo ou Monte do Grito. São ainda visíveis fragmentos de cerâmica de construções de tipologia romana. 

Segundo a população local, aquando de trabalhos agrícolas encontraram-se aqui vários fragmentos cerâmicos e restos de mós. Junto a um muro de propriedade destacam-se umas escadas bem talhadas na rocha.”

 

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Esta informação do povoado romano encontrámo-la em dois sites da internet, no entanto não encontrámos nenhuma referência ao mesmo nas páginas oficiais do município ou livro “Montalegre”, nem tão pouco noutros livros e documentos que costumamos consultar, daí esta pequena justificação. Contudo no “Archeologo Português”  há uma referência a Brandim: “No aro de Brandim, segundo nos informaram, têm aparecido algumas mós manuárias.” O texto é de Fernando Braga Barreiros, Montalegre, Junho de 1914.

 

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Só nos falta abordar a “Toponímia de Barroso”, pois no restante, sobre Brandim, nada, nem no livro “Montalegre” onde há apenas uma referência, a de que a aldeia faz parte da freguesia de Viade de Baixo e Fervidelas.

 

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Vamos então à “Toponímia de Barroso”:

 

Brandim

“A raiz deste vocábulo é o nome pessoal germânico Branda pelo genitivo (indicativo da posse de terras e outros bens) de forma alótropa  Branda+inus, portanto, (villa) Brandini, > Brandim.

Foram possessões de um tal Brandino.

Não aparece nas Inquirições mas sim no Arq.Hist.Port. e já com 11 fogos o que deixa supor que já existia sob outro nome, bem como Telhado.”

 

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Na “Toponímia Alegre” não há nada para Brandim, o que não é mau de todo, pois mais vale nada do que ser apelidado com um impropério, que faz rir os vizinhos mas  não deve agradar muito aos apelidados, suponho!.

 

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Bem queria deixar por aqui mais qualquer coisinha sobre Brandim, mas nada mais encontrei e inventar não está muito nos nossos hábitos. Mas numa última tentativa encontrei dois lugares no facebook que vão parar direitinhos a Brandim:

 

https://www.facebook.com/brandim.aldeia

https://www.facebook.com/groups/110814602938121/about/

 

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E ficamos por aqui, mas antes ainda deixamos como sempre as referências às nossas consultas. Quanto aos links para as anteriores abordagens às aldeias e temas de Barroso, desde o último fim de semana, passaram a estar na barra lateral deste blog,. Se a sua aldeia ou a aldeia que procura não está na listagem, é porque ainda não passou por aqui, mas em breve passará.

 

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BIBLIOGRAFIA

BAPTISTA, José Dias, (2006), Montalegre. Montalegre: Município de Montalegre.

BAPTISTA, José Dias, (2014), Toponímia de Barroso. Montalegre: Ecomuseu – Associação de Barroso.

 

WEBGRAFIA

http://www.cm-montalegre.pt/

https://www.allaboutportugal.pt/pt/montalegre/monumentos/povoado-de-brandim-vale-do-antigo

https://www.igogo.pt/povoado-de-brandim-vale-do-antigo/

 

 

24
Fev18

Maços - Chaves - Portugal


1600-macos (58)

 

Na nossa ronda pelas aldeias hoje toca a vez à aldeia de Maços, freguesia de Nogueira da Montanha e uma das aldeias do planalto do Brunheiro.

 

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Se a Serra do Brunheiro vista desde o vale de Chaves serve de limite ao mesmo, mais parecendo uma parede onde o vale termina, lá em cima, as terras planas parecem assentar  em cima dessa mesma parede, como se tratasse de um piso superior ou um terraço com vistas lançadas para o vale de Chaves, quase parecendo também que além deste longo planalto não há mais montanhas.

 

1600 macos (81).jpg

 

É ao longo deste longo planalto que termina já em terras de Valpaços que se encontram as 11 aldeias da freguesia de Nogueira da Montanha, por sinal uma das freguesias que mais tem sofrido com o abandono da sua população, o que até nem é de estranhar, pois graças a altitude que se encontra todo o planalto, sempre a rondar os 900 metros, o rigor do inverno por lá dói mais, mas também viver apenas daquilo que a terra dá, hoje em dia quase nem dá para sobreviver, muito menos dá para dela viver.

 

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Maioritariamente as terras do planalto são terras de cultivo, conhecidas pela produção de batata de qualidade que lá se produzia e ainda produz, mas em menor quantidade, pois sem gente para trabalhar a terra, esta, vai sendo invadida pelo mato, mesmo assim, as propriedades maiores ainda se vão mantendo cultivadas.

 

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Mas esta nova ronda pelas aldeias é para trazermos aqui alguns olhares que nos escaparam nas anteriores abordagens à aldeia. Em tempos aqui no blog ia fazendo o elogio ao fio azul, o melhor, pois por onde que que fosse ou vá, há sempre um fio azul a ser utilizado no que quer que seja. É um verdadeiro utilitário mas nunca o vi tão bem aplicado como o estava na baliza do recreio da antiga escola de Maços, uma preciosidade que só ela merecia todo um post. Se houvesse um prémio para a melhor utilização do fio azul, esta aplicação sem qualquer dúvida que seria a vencedora.

 

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E como Maços é uma aldeia por onde vou passado, de vez em quando também por lá vou registando uns olhares, às vezes repetindo-os, sem querer, mas com leituras completamente diferentes, ficam  dois desses olhares, um bem frio e o outro mais quentinho, em ambas com a Serra do Larouco em último plano.

 

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E por Maços é tudo. Como nesta ronda pelas aldeias vamos seguindo a ordem alfabética, na próxima semana teremos por aqui Mairos. Digo isto porque há dias alguém pedia Mairos, pois estamos quase lá, só temos de esperar até ao próximo sábado.

 

 

 

23
Fev18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

DESTINOS

 

Chaves, cidade raiana, foi desde sempre pólo de atração para muita gente. Durante largos anos das terras vizinhas, ou mesmo de lugares mais distantes, rumaram à cidade famílias inteiras à cata de melhor vida: raparigas tenras para criadas de servir, mulheres feitas para serviços domésticos mais qualificados, rapazes para paquetes e homens maduros para os trabalhos mais pesados na cidade e na veiga. Mesmo até da vizinha Espanha, sobretudo durante a guerra civil de 1936 e 1939, veio muita gente assentar arraiais nesta urbe das águas caldas.

 

Da Galiza, precisamente, veio Dominguez Rámon, o protagonista desta estória.

 

Desertor das tropas do ditador espanhol e perseguido por ser do reviralho, com apenas dezoito anos parou em Chaves vindo de Xinzo de Limia, sua terra natal. Foi acolhido por António Carlão, um mestre serralheiro, cuja oficina se encontrava ao fundo da rua do Sol, no Tabolado.

 

Da arte de moldar o ferro o rapaz nada sabia. Porém, fino como azougue, prestes se especializou, orientado por mestre, este sim, um verdadeiro artista da forja. Passado pouco mais de um ano, dado o empenho e honestidade que emprestava à arte, a confiança que o patrão depositava nele era já enorme. Não hesitou em lhe confiar os mais refinados segredos do metier, exclusivo na região, da abertura de cofres-fortes, na ocasião a sua mais apurada especialidade.

 

O Rámon moldava o ferro como ninguém. Alegre e folgazão, acompanhava as pancadas cadenciadas do martelo na bigorna, entoando modas galegas da sua meninice. Uma delas, entretanto aportuguesada, rezava mais ou menos assim:

 

São Beneditino do olho redondo

Quiero ver mi madre senão morro

Quiero llevar-le uma bota de viño

E uma bôla de pan do forniño!

 

O galego vivia, por favor, nas traseiras da oficina que davam para o Tâmega. Ocupava os seus tempos livres pescando no rio, que lhe fazia lembrar o seu Limia. Colhia, no Monte da Forca, umas canas-da-índia que punha a secar nos caleiros da fabriqueta para que ficassem direitinhas. Depois de secas, acertava-lhes os nós, pendurava, na melhor, uma sediela na ponta fina e flexível, um anzol de bico de papagaio e duas chumbadas que ele próprio fabricava com o metal que o coveiro lhe arranjava. Prantava uma bóia de rolha de cortiça que ajeitava com uma navalha do Palaçoulo e lá ia para o rio. Os seus maiores cuidados eram postos na seleção do isco. Para ele o barbo só pegava bem à mioca do estrume! Por isso, tudo o que fosse verme da terra não lhe servia. O mais das vezes pescava no Poço do Leite, mais ou menos no local onde assenta hoje a Ponte Nova. Era um regalo observá-lo a pescar. Não tanto pelo calibre do peixe, que raramente era graúdo, mas sobretudo pelo espetáculo que emprestava à luta com os barbos palmeiros. O moço tinha jeito, parece que até falava em barbalez!... Então, quando o rio enlourásse com as fortes zerbadas de abril, era o ideal. Nesses dias Ramón não falhava. Um verdadeiro desinço dos barbos do Tâmega!... Para casa levava, quase sempre, uma caqueirada que a Ireninha, esposa do patrão, preparava em escabeche avinagrado. O pitéu ficava a recocar vários dias para que as espinhas amolecessem. Depois era comido, acompanhado com batata cozida do Brunheiro. Constituía um petisco muito apreciado pelos tainas, amigos de mestre Carlão, que normalmente convidava para o repasto, nos reservados do Geraldes.

 

A nomeada de Ovelha tinha origem na habilidade que tinha para balir. Fazia-o melhor do que o próprio animal. Sempre que fosse desafiado, imitava o ovino na perfeição! E fazia-o com muito orgulho. No entanto, não morria de amores pela alcunha e sempre que o atazanavam, respondia com um zurrar de burro velho que também muito bem sabia arremedar!

 

Domingos, provinha do aportuguesamento do nome original.

 

Pelos vinte anos, enrabichou-se pela Cacilda, uma moçoila mais velha e que desde tenra idade era criada de servir do padre Salgado, que paroquiava Santa Maria Maior. Uma espécie de criada para todo o serviço!.. Domingos pouco tempo namoriscou com ela. Aquela relação, ao estilo da janela para o postigo, não lhe agradava. Estava mortinho por provar as carnes maciças da rapariga e isso só poderia acontecer após o casório. Pediu-a em casamento ao prior, na curva do meio ano de namoro. O padrinho acedeu, apesar de contrariado. Preparou-se a boda. Os convidados eram poucos porque a família e os amigos contavam-se pelos dedos de uma única mão. Mas nem por isso deixou de se fazer festa rija. O Ti Carlão encomendou dois cordeiros ao peleiro de Izei. O prior uns cinco garrafões de maduro tinto à Adega do Faustino. Depois do compromisso, selado na Igreja Grande, o repasto. Escusado será dizer que foi raro o convidado que não tivesse apanhado uma respeitável cardiela! Mesmo o representante do Pai na terra não foi poupado. Estou que por falta de treino teve de esgomitar parte do cordeiro no arrumar da festa.

 

Mestre Carlão ajeitou-lhes uma casa de renda barata na rua do Poço. Aí se instalaram, mantendo as suas ocupações originais: o galego a malhar ferro, a Cacilda a dar volta aos saiotes do padre, a amanhar os trochos das couves de penca e a mudar as flores do Santíssimo.

 

O garanhão não perdeu tempo, a cada nove meses era pai. Já ia na quinta vezada!

 

A Cacilda, rapaça trigueira, passeava pelas ruas da cidade uma beleza saloia de bodrelho. Era reboluda como se queria uma mulher naquele tempo! Quando levava o cesto da roupa suja à cabeça, para os lavadouros do Ribelas, transindo o baraço do avental pela cintura, não conseguia esconder dos gulosos polidores das esquinas da rua do Postigo o bambolear provocatório das nádegas rechonchudas! Contudo, a cabrita tinha tanto de bela como de rapioqueira! Onde pudesse meter a mão de raposa ladina, não perdoava! Amiga do alheio, nem mesmo a caixa das esmolas respeitava. E assim ia governando a vidinha!..

 

Ao clérigo, seu amo, de vez em quando oferecia uma pita, criada nas traseiras da oficina de mestre Carlão, em arroz de cabidela e que ele muito apreciava. Presenteava-o ainda com uns cibos de febra do lombo do requito que matava pelo Natal e com outras preciosidades que a argúcia do leitor certamente não deixará de adivinhar!..

 

O Dominguez dava jeito a quase tudo e sempre que eram precisas pequenas intervenções na Matriz do cónego, lá o convidava para as fazer. E aceitava as tarefas de bom grado. O mandador era franco. Cada vez que recorria aos seus serviços não o deixava de mãos a abanar: um macito de cigarros ou uma lisca de presunto, nunca falhava! E, claro, o Domingos não renegava estes presentes porque trabalho tinha-o gracioso em seus braços e tabaco ou presunto apenas avezava a pus de vintém!..

 

Ora, um belo dia o abade pediu ao galelo para guiar um braço ao Santo Antoninho que tinha sido desguiado na ornamentação da Semana Santa. Emplouricado no altar do casamenteiro, lá corrigiu o remo ao santinho. O trabalho ficou tão perfeito que parecia executado por qualquer especialista santeiro da cidade dos arcebispos. Ao elogiá-lo junto das beatas, o abade deu uma facada nos bons costumes. Referiu-se ao dito cujo pela conhecida alcunha de Ovelha. Alcoviteiras como eram as hipócritas mulheres, logo meteram a novidade no cu de seus maridos. Claro que a notícia depressa chegou aos ouvidos da vítima que, por sinal, não ficou nada agradado! Aos lavadouros do Ribelas chegou igualmente célere à sua Cacilda. Esta, íntima do sotaina, logo se disponibilizou para acompanhar o ofendido a tirar satisfações na sacristia da Matriz, após a missa das seis. Enquanto o cura se desparamentava, não esteve com meias cantigas, investiu sacristia adentro arrimando:

 

Ah… seu abade abadinho! Seu barbas untadas do meu toucinho! Seu comedor das minhas frangas! Seu pai dos meus filhos! Vossemecê chamou Domingos Ovelha ao meu home? Chamasse-le entes carneiro barbudo com cornos e tudo!..

 

O vigário, rodeado das beatas que o auxiliavam, de tão envergonhado não sabia onde se havia de meter! A sorte é que as velhotas pouco mais sabiam do que desfiar Avé-Marias, pelo que não conseguiram decifrar o lado negro da mensagem da descompostura. E foi o que lhe valeu para continuar a manter o prestígio que todos, apesar de tudo, lhe reconheciam!

 

O Domingos, perante tão temerário arreganho, inchava de orgulho na fidelidade da mulher que tinha!..

 

Croncho, atirou estas palavras em jeito de agradecimento:

 

Ó mujer, por Dios… Que recado le passastes! Vem daí às minhas costas que te llevo daqui até caza!

 

A Cacilda não se fez rogada e aproveitou a boleia.

 

Destinos!

 

Gil Santos

 

 

 

22
Fev18

Flavienses por outras terras


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Célia Fernandes

 

Nesta crónica do espaço “Flavienses por outras terras” continuamos pela zona de Lisboa. Em Belas, no concelho de Sintra, vamos encontrar a Célia Fernandes.

 

Cabeçalho Célia Fernandes.png

 

 

Onde nasceu, concretamente?

Nasci em Oura, no concelho de Chaves.

 

Nos tempos de estudante, em Chaves, que escolas frequentou?

Frequentei a Escola Primária de Nantes, a Escola Primária do Caneiro, a Escola Preparatória de Chaves (atual Nadir Afonso), a Escola Secundária Fernão de Magalhães e a UTAD – Pólo de Chaves.

 

Em que ano e por que motivo saiu de Chaves?

Saí em 2002, para colocação numa escola do 1º CEB.

 

Em que locais já viveu ou trabalhou?

Em Lisboa, em Campo de Ourique, de 2002 a 2003, na Amadora, de 2003 a 2006, em Agualva/ Sintra, de 2006 a 2008, e em Belas, a partir de 2008.

 

Diga-nos duas recordações dos tempos passados em Chaves:

A infância e a adolescência no meu bairro com os amigos e os tempos do Liceu.

 

Proponha duas sugestões para um turista de visita a Chaves:

O centro histórico com as suas varandas e o circuito pedonal das Caldas.

 

Estando longe de Chaves, do que é que sente mais saudades?

Primeiro, dos meus pais, e depois dos antigos espaços verdes que não voltam, nomeadamente o Jardim das Freiras e a Alameda do Raio X.

 

Com que frequência regressa a Chaves?

Atualmente, três a quatro vezes por ano.

 

O que gostaria de encontrar de diferente na cidade?

Gostava de ver uma cidade dinamizada com investimentos que proporcionem aos jovens e aos menos jovens a possibilidade de se estabelecerem na sua terra.

 

Gostava de vê-la de novo a crescer como em tempos se pensou, aproveitando o facto de estar próxima de uma das fronteiras terrestres mais movimentadas do país.

 

Gostava que a zona industrial fosse, de facto, uma zona industrial.

 

Gostava que quem orienta os destinos desta cidade/concelho trouxesse e exigisse condições de progresso e não deixasse levar o que já tivemos de bom, como a UTAD ou o serviço de obstetrícia/maternidade do Hospital Distrital de Chaves.

 

Enfim, gostava de não ter tido necessidade de abandonar os meus entes queridos e a minha terra por não ter espaço para mim.

 

Gostaria de voltar para Chaves para viver?

Claro que sim, mas os anos passam e talvez na reforma, quando no fundo já não fizer sentido, possa voltar.

 

 

O espaço “Flavienses por outras terras” é feito por todos aqueles que um dia deixaram a sua cidade para prosseguir vida noutras terras, mas que não esqueceram as suas raízes.

 

Se está interessado em apresentar o seu testemunho ou contar a sua história envie um e-mail para flavienses@outlook.pt e será contactado.

 

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