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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

23
Jan23

Quem conta um ponto...


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621 - Pérolas e Diamantes: Eu e Corto Maltese

 

Houve um tempo em que pensei fumar papirossas, passar os serões entre escritores, algumas vezes pálidos de tristeza ou a tremer de frio e raiva, outras alegres e divertidos. E eu a irromper pelos salões, timidamente ardente, fogoso, delicado, conquistando corações, tocando com a minha ingenuidade os lábios ardentes das donzelas, que até podiam ser camponesas, princesas ou literatas. Ambicionava provar o sabor do pecado sem pecar. Ser rebelde e corajoso, sem abandonar os bons costumes e a boa educação. E fingir delicadamente tristeza para as mulheres me darem mimos. E depois, animado por um ou dois copitos de vodka, começar a ler os meus poemas transbordantes, repletos de alegria, tristeza,  amor e abandono, deixando os aplausos para o fim, como nos concertos de música clássica. Altura em que me despedia e ia para casa escrever novos poemas atormentados, no meio do sofrimento da criação e da inspiração. E, nos intervalos, ir assistir, como um juiz, à Revolução de Outubro, vendo o poder a oscilar e a mudar de mãos nas várias lutas entre “Brancos” e “Vermelhos”. E, continuando a fumar papirossas e a beber copitos de vodka, deslocar-me até à velha cidade de Jerusalém e propor a todas as nações do mundo que ajudassem Israel e a Palestina a conviverem em paz e harmonia. Sonhei ser amigo de Corto Maltese e aprender com ele a amar as mulheres misteriosas e a perceber os homens. Todos os homens, independentemente da sua ideologia. Ele a fumar cigarrilhas e a beber rum no seu veleiro e eu a seu lado a fumar papirossas e a beber copitos de vodka. Ele sempre misterioso e eu sempre poeta. Ele sempre a praticar o bem sem olhar a quem. E eu a escrever a sua Odisseia. Constantemente a navegar por dentro da Balada do Mar Salgado, a percorrer a Sibéria, a viver a Fábula de Veneza ou a visitar A Casa Dourada de Samarcanda, sempre sob O Signo do Capricórnio. Eu, além do francês obrigatório, aprendia línguas, o russo, o iídiche, o árabe, o aramaico e o italiano. Há lá língua mais saborosa que o italiano! E há lá herói mais herói que Corto Maltese! Este mundo está pejado de inimigos e apenas de alguns amigos. Por isso há guerra, miséria e opressão. Mas também existem heróis de banda desenhada como Corto Maltese e candidatos a escritores que fumam papirossas e bebem copitos de vodka quando estão em saraus literários ou entre amigos. Olho agora para uma foto tirada quando eu usava bigode e boné, ao lado do Corto Maltese, sempre jovem. Ele a sorrir quase como a Mona Lisa. Enigmaticamente. Nele vejo astúcia e determinação. Em mim observo uma enorme vontade de possuir esses dois atributos. Eu alto e magro como um lareiro, de lacinho, olhos ingénuos, óculos redondos por causa do astigmatismo, meio embaraçado, meio orgulhoso, rosto a transbordar de otimismo. E o desejo escondido de fumar papirossas como os revolucionários anarquistas russos e beber copitos de vodka. E escrever poemas iluminados. E infinitos. E de passear na Praça Vermelha vestido com elegância e a cabeça coberta pelo chapéu russo chamado chapka, ao lado de Corto Maltese, o Príncipe Mitchkin, Dostoiévski, Nikolai Vasilievich Gogol, Anna Karenina e Nastasya Filipovna. Todos ainda decididos, desafiando o destino. Neva. La place Rouge était blanche… Depois, como sempre acontece desde que o mundo é mundo, o solo da Rússia começou a fugir-nos debaixo dos pés e foi o cabo dos trabalhos. Lá se foi a revolução, a poesia romântica e a superioridade moral dos comunistas. Mas uma coisa é perder os ideais e outra bem diferente é perder a honra. Desta amizade, ficaram alguns postais, raras cartas e o seu exemplo extraordinário. Corto Maltese, desde que Hugo Pratt morreu, passa o tempo deitado, com os olhos abertos e os braços e as pernas sempre a mexer. Por vezes grita. Tanto ele como eu, continuamos a desprezar e a ignorar as opiniões abjetas, outra vez bastante difundidas. Desprezando o racismo e os preconceitos. E por aqui andamos a defender a Europa das Luzes, a racionalidade, a tolerância e o progresso. Aqui. Até ao fim. Imaginando fumar, ele umas cigarrilhas, eu algumas papirossas, e beber copitos de vodka e rum.

 

João Madureira

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