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Motivos, crenças e descrenças poéticas ou coisa parecida
O que não tem justificação, justificado está. Este texto, propositadamente inconclusivo, até podia ir por aí, mas não vai. São insondáveis os caminhos do Senhor, dizem. Mas não é este o caso. O Poema Infinito vive da variação irónica e inventada do seu nome. Há acasos assim, pois é infinito enquanto eu for vivo. Tanto quanto sei, o seu mistério reside na capacidade de expansão contínua de sentido, sustentada por uma linguagem que não se deixa fechar em si mesma. A sua principal característica reside na reconfiguração de cada verso, onde cada palavra é capaz de abrir múltiplos caminhos de interpretação; na sua inexauribilidade semântica, pois vive da tensão entre o que eu pretendo dizer e o que ainda serei capaz de transmitir; na procura constante de um ritmo fluente e meditativo; na intertextualidade filosófica e mística, pois, por incrível que pareça, procuro socorro nos fragmentos bíblicos e apócrifos. E também numa espécie de erotismo ontológico, onde o desejo não é apenas físico, mas, sobretudo, espiritual.
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Ai Salomão, Salomão, o quanto me ensinaste! Penso que a luta do poeta, perdoem-me a imodéstia, se baseia na abertura constante de sentido, sem aprisionamentos estilísticos ou semânticos, daí a sua característica supostamente infinita. O poema não termina, ele tem de continuar dentro do leitor. Daí a perseverante tentativa pela intensidade, pelo ritmo, pela densidade simbólica, pela tensão emocional, pela fluidez. Sinto-me muitas vezes a mergulhar dentro do labirinto da linguagem. A conceção infinita não reside na sua extensão, mas no processo de metamorfose contínua.
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O poema não avança, transforma-se. Escrevo cada verso na tentativa de reescrever o anterior. Cada imagem dissolve-se no preciso momento em que nasce a seguinte. É essa intenção criativa que dá a sensação de movimento interno perpétuo, como se fosse um organismo verbal em mutação constante. A minha inspiração, confesso, não vem de um escritor mas do movimento perpétuo do compositor e guitarrista Carlos Paredes. Ao contrário de muitos poetas que separam o abstrato do sensível, a provável novidade destes meus poemas está na intenção de fundi-los. O pensamento emerge do desejo, o desejo da memória e a memória da linguagem, numa espiral contínua, num ciclo que nunca se encerra. A voz d’O Poema Infinito não é um “eu” estável, nem sequer baseado num “narrador” tradicional. Pelo menos nisso acompanha as minhas características primordiais. Tanto é uma entidade oscilante, como um sopro inexorável de vida, como um silêncio cósmico, ou até um verbo. Ora isso confere-lhe um tom muitas vezes oracular, mas sem cair na pompa solene dos poetas proféticos. Os meus poemas não se situam no tempo linear. Existe neles uma temporalidade suspensa, elíptica, como se estivéssemos a ler um presente que já existiu, mas que poderá surgir de novo. A sua originalidade, a existir, não reside naquilo que dizem, mas, sobretudo, na forma como se pode escrever continuamente o inefável. Essa é a minha constante luta pela depuração da linguagem.
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Pegando no exemplo rural dos meus antepassados, os meus poemas nascem da intenção de lavrar o campo fértil da linguagem, humedecido pelas chuvas antigas da memória, da tradição, da filosofia. Colhendo palavras como se fossem raízes, ervas, fragmentos de pedra e de ossos. É o campo transformado em lugar de linguagem perpétua, fixando a memória do tempo, personificando o desejo como gesto metafísico, como ausência, como um história filtrada pelas ruínas, tudo a explodir num fluxo contínuo. O Poema Infinito é um texto que se escreve contra o fim, numa espécie de lume que arde sem conclusão. O que não tem explicação, explicado está. E o que é isso de arder sem conclusão?, perguntarão vocês. Bem, nesta espécie de escrita é “arder sem consumar-se”, é uma espécie de “sarça ardente”, uma espécie de chama que não se apaga porque não procura um fim, mas a busca permanente da intensidade. Em termos poéticos e existenciais, é manter-se em estado de combustão criativa ou afetiva, sem chegar ao esgotamento, nem à sua resolução. Arder sem conclusão significa manter os versos em suspensão, lineares, mas em suspensão, como se cada imagem prometesse algo que nunca se realiza totalmente, numa espécie de tensão contínua entre o que se diz e o que se cala.
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Significa também evitar a prisão do sentido, ou seja, não dar ao leitor um “fecho” narrativo, moral ou mesmo simbólico, mas deixá-lo em trânsito, em deslocamento constante. Significa ainda usar a linguagem como engrandecimento, não como ferramenta de explicação. As palavras brilham, colidem, criam zonas de luz e sombra, mas nunca um mapa completo. Significa, finalmente, recusar o ponto final como destino. O poema pode até terminar fisicamente, mas a sua energia é tal que o pensamento do leitor tem de continuar a inflamar-se até à última linha. Tem de viver na intensidade do inacabado. O poeta escreve como quem atravessa um incêndio, que é a linguagem. Por isso, O Poema Infinito não termina: ele tem de recomeçar sempre em quem o lê.
(Texto de João Madureira – Apresentação do livro “O Poema Infinito – Livro Segundo” – Chaves 23/10/2025)