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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

09
Jun21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

17

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Dois heroes

 

Havia na 1.ª companhia do meu batalhão dois granadeiros, que eram como irmãos. Nascidos na mesma terra, tinham crescido juntos, curtindo a pele ao sol da mesma charneca e fortalecendo os braços e a alma no amanho da mesma leziria. Nos rostos quasi bronzeados os olhos luziam-lhes como carvões, e sobre as espaduas d'atletas a cabeça parecia atarraxar-se-lhes como uma bola de ferro entre duas barras metalicas. Nas marchas, seguravam a espingarda pelo fuste, como quem segura uma vara de marmeleiro. Quando vestiam o colete de granadeiros tomavam um estranho aspeto de guerreiros de lenda, respirando força e violência.

 

Dos seus lábios grossos de beduinos da charneca nunca tinha sahido um murmurio contra a guerra, prestando-se humildemente a tudo quanto deles exigiam os superiores. Só uma vez, quando um deles, por qualquer conveniencia de serviço, foi transferido do pelotão, os dois perguntaram de modo menos respeitoso ao sargento porque é que eram separados, e foram a seguir suplicar com as lagrimas nos olhos ao comandante da companhia para que os deixasse ficar a ambos no mesmo pelotão. Pouco mais sendo do que dois numeros, resvalavam pelas trinheiras ou pelos acantonamentos, sem ninguem se preocupar com eles, merecendo menos cuidado do que os cavalos que conduziam a cosinha rodada, dando menos que falar do que as mulas alentejanas que puxavam aos carros de companhia.

 

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O meu pelotão, dessa vez, guarnecia a Garden Trench. A noite ia decorrendo com uma tranquilidade que fazia desconfiar das intenções do inimigo. No silencio absoluto que dominava a terra apenas se ouvia de vez em quando uma rajada ou outra de metralhadora, cortando o ar como uma lamina e prolongando-se ao longe como uma pequena vaga que morre na areia. Para a rectaguarda mal se distinguiam os primeiros zigue-zagues da trincheira de comunicação. Adivinhava-se, num novelo mais negro de sombras, por traz da segunda linha, a Factory, com o seu esqueleto desconjuntado de engrenagens.

 

O momento critico, a meia-noite, tinha passado. Seriam 2 horas da manhã, quando já a treva começava a adelgaçar-se e o céo começava já a adquirir um vago tom violaceo, que o bombardeamento rebentou com extrema violência sobre a direita do batalhão. Os soldados evacuaram de roldão a primeira linha; e, como as trincheiras de comunicação eram batidas com pontarias certeiras, alguns fugiram a campo descoberto, esgaçando as pernas pelos arames, cahindo nas covas dos morteiros, rastejando pelos drenos para não serem apanhados pelas metralhadoras. Uma dessas trincheiras, a Junction-Street, tinha sido arrombada e obstruída, e os que haviam escolhido esse refugio viram-se obrigados a voltar para o talude e a esconder-se atraz duma antiga trincheira abandonada, onde existia a carcassa dum avião inglez que ali tinha tombado e ali apodrecia, como uma grande ave morta, de ventre para o ar.

 

1024-guerra - Cópia.jpg

 

O bombardeamento era a preparação para um raid. Tomaram-se as devidas precauções para o caso de os alemães quererem atacar a segunda linha e esperou-se pela madrugada para fazer o reconhecimento e a reocupação.

 

Um sargento deu pela falta dos dois granadeiros. Ou tinham sido mortos ou feitos prisioneiros.

 

—Os pobre rapazes !--comentou o sargento. Aos primeiros alvores da madrugada reocupou-se a primeira linha. Acompanhei o oficial que comandava o pelotão. Foram-se guarnecendo os postos. Foi aclarando o dia. Verificámos que nos abrigos não faltava nada. Nem os lençoes impermeáveis abandonados, nem depositos de granadas, tinham atraído a cubiça do inimigo. Quando passámos pelo abrigo do comandante do pelotão notámos que o S. O. S. estava intacto.

 

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O meu camarada observou:

 

—O inimigo desta vez foi gentil...

 

Uma ordenança chamou a nossa atenção para dois vultos que se entremostravam para a direita, meios escondidos entre os destroços dum travez. Avançámos de pistola na mão. E ao precipitar-se a ordenança, de baioneta calada, sobre os dois vultos, reconhecemos os dois granadeiros, surpresos do ataque, e sorrindo um para o outro.

 

— Como é que vocês estão aqui? Como foi isso?

 

Um deles vae contando, numa voz descançada, como se estivesse contando na praça da terra algum episodio duma ferra de touros:

 

— Ó meu alferes, os meninos sem braços cahiatn ahi como as nozes maduras duma nogueira varejada por boa mão. O chão tremia como um terramoto. Tanto se podia morrer ficando como fugindo. Alapardamo-nos aqui entre os travezes. Se o morteiro rebentava dum lado, escapavamo-nos para o outro. Os estilhaços voavam por cima como vespas. Parecia o fim do mundo. De repente o bombardeamento abrandou. Deixaram de cahir os morteiros na primeira linha. Calculamos que o boche viria ao cheiro da carniça. Arrastamos para aqui dois cunhetes de granadas e puzemo-nos à coca. Vimos uma cabeça erguer-se sobre o parapeito. O boche julgou que aquele tronco d'arvore que está ali defronte era algum dos nossos e atirou para lá uma granada. Lá se vê o ponto onde a granada bateu. Atraz d'aquela, outras cabeças apareceram, como uma fila de diabos. Um deles trepou ao parapeito e ficou de pé espionando a trincheira. Não estivemos com meias medidas. Joguei uma granada ao que tinha trepado para o parapeito. Cahiu logo para traz, soltando um urro, que parecia duma fera. E as granadas seguiram umas atraz das outras. As cabeças desapareceram e nós saltámos para cima da banqueta e atirámos sobre eles as ultimas ameixas. No talude o meu alferes pode ver ainda manchas de sangue até abaixo, à Terra de Ninguém...

 

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Nas caras bronzeadas dos dois granadeiros a madrugada punha uns reflexos metálicos. 

 

Os seus olhos pareciam abrir-se mais, como a penetrarem ainda a treva. O braço direito dum deles guardava ainda o movimento semi-circular do lançamento das granadas. Alguns soldados fizeram cerco, contemplando-os a certa distancia, como se estivessem deante de animaes ferozes.

 

Subimos à banqueta. Viam-se ainda no talude as hervas esmagadas por um corpo que fôra arrastado até à base e levado depois às costas atravez a Terra de Ninguém. Tinham sido arrancados alguns long-picquets e as hastes das gramineas procuravam endireitar-se às primeiras caricias do sol.

 

Quando voltávamos, os dois granadeiros dormiam a sono solto, metidos num abrigo, com as pernas estendidas para a passadeira.

 

Os seus nomes? Que importa conhecer os seus nomes? Ninguém tem nome nesta guerra.

 

Sei apenas que, enquanto os que ficaram pela retaguarda, batendo-se junto duma mulher ou duma garrafa de champagne, trazem no peito a cruz de guerra, esses dois soldados, esses dois heroes, que repeliram sosinhos um raid inimigo, foram simplesmente louvados em ordem do batalhão, como deve constar do arquivo do 22.

 

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

 

 

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