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Dez07
Cambedo da Raia - dia 1 - A razão de ser
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Cambedo da Raia – A Razão de ser
Em 16 de Julho de 2006 este blog dedicou o primeiro post a Cambedo da Raia e ficou a promessa que um dia voltaria lá de novo. Esse dia, ou melhor – esses dias, chegaram, e muita coisa há a dizer sobre o Cambedo e pela certa que muita coisa ficará, também e ainda, por dizer.
Desde esse primeiro post sobre o Cambedo que tenho dedicado grande parte do meu tempo livre à pesquisa, recolha de informação, visitas ao Cambedo, conversas com alguns naturais e testemunhas, leituras de tudo que há para ler, quer sobre a aldeia quer sobre a guerrilha antifranquista (ou os Maquis) que passa obrigatoriamente pelo Cambedo. Tanto tempo lhe tenho dedicado, que o Cambedo além de um hobby já se tornou numa paixão.
Começo hoje a dedicar uma série de post’s à aldeia do Cambedo da Raia e aos acontecimentos de 1946, precisamente hoje, dia 12 de Dezembro de 2007, em que faz 60 anos que foi lida a sentença do Tribunal Militar do Porto, que condenou e marcou para sempre gentes e amigos do Cambedo.
Também a partir de hoje temos um novo blog o CAMBEDO Maquis, em http://cambedo-maquis.blogs.sapo.pt onde tudo, que durante estes dias for aqui publicado, também por lá ficará e, pretende ser um blog aberto à participação de todos, ao debate e a todas as novidades e verdades, bem como publicações e notícias que venham a surgir no futuro sobre o Cambedo.
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Mas antes de entrar propriamente na aldeia e nos acontecimentos de 1946, no campo de batalha, há umas pequenas considerações que eu gostaria de aqui deixar para melhor ser entendido, quer no meu empenho sobre esta “história” quer em tudo que durante estes dias aqui irá ser vertido sobre o Cambedo da Raia.
Digamos então que toda esta história começa aí pelos meus 6 ou 7 anos de idade, com a história e estórias contadas à lareira, estórias barrosãs fruto de uma mãe também barrosã de Montalegre, nascida em 1925, e de um pai nascido em 1918, Guarda Fiscal. Estórias dos tempos de guerra civil espanhola, da grande guerra, de bandoleiros, bandidos, contrabando, contrabandistas e atracadores. Estórias de tempos difíceis, de fome, de nomes e acontecimentos que de tão repetidos que eram, ficaram para sempre registados na minha memória. Estórias que estiveram mais próximas de virarem a lendas, até com os seus mitos, do que propriamente fazerem história ou ficarem registados na história.
Os “bandidos e bandoleiros”, contrabandistas, “atracadores”, “assassinos e assaltantes espanhóis”,um tal Juan que com o seu grupo de bandoleiros eram autores de assaltos, mortes e tudo de mau que acontecia na região, entre os quais, a morte de um tal Pinto de Negrões e um assaltado à carreira Braga-Chaves. Estórias do Tenente Canedo e dos Canedos de Montalegre, da PIDE, de Salazar, do volfrâmio, dos tempos difíceis, do racionamento, de fome e de medo.
Imaginem agora todas estas estórias ouvidas e baralhadas no imaginário de uma criança…decorriam então os finais dos anos 60, teria eu 6 ou 7 anos de idade.
Mas no meio de todas estas estórias havia um nome que sobressaía - o do “bandido”, “atracador” Juan ou D.Juan, o terror, ou um terror, pior que qualquer “homem do saco” com que se assustavam as crianças, só que este (Juan), tinha sido real.
Em finais de 1960 chegava também a televisão aos lares dos portugueses. Ao meu também chegou e, com a sua entrada em casa, terminaram as noites de serões à lareira, terminou o contar de estórias do tempo das guerras e, lá em casa, nunca mais se falou em bandidos espanhóis nem em D. Juan’s. A televisão contava outras histórias e com a vantagem de ter imagens, sem necessidade de as imaginar, mesmo sendo a P&B, verdadeiras ou não, encantavam!
E tudo teria terminado por aqui, aliás o tal Juan, com o tempo, quase se apagou da memória, não tivesse eu, em inícios de 90, por mero acaso, comprado um livro, romance, de Bento da Cruz e, que dava pelo nome de “ Lobo Guerrilheiro”. Aos poucos, todas as estórias ouvidas aos serões da lareira dos anos 60 começavam de novo a ganhar forma, romanceadas às vezes, outras contadas ao pormenor, passo-a-passo e sobretudo com as verdades que antes do 25 de Abril nunca seriam possíveis e que, vinham alterar por completo todo o significado das estórias da minha infância. Mas surpreendido fiquei, quando chegado às últimas páginas do livro dou de caras de novo com o Juan, o tal D.Juan que era o terror em pessoa no meu imaginário e nas estórias da minha infância, o tal Juan que eu conhecia como bandido, assaltante da carreira Braga-Chaves, bandoleiro e assassino.
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Encontro o Juan, numa passagem que vou transcrever e que alterou por completo a imagem que tinha do mau da fita:
“(…)
Mas quando os Espanhóis assaltaram a carreira Braga-Chaves, repleta de lavradores que, pela manhã se dirigiam à feira anual dos Santos de Montalegre (1), todos os barrosões se sentiram ameaçados na bolsa ou na vida.
- Parece que estais a exagerar… - disse o Lobo a Consuelo.
- Nós temos as costas largas… - respondeu ela com tristeza.
- Que queres tu dizer com isso?
- Que o assalto à carreira foi concebido e executado pela Brigantilha do Franco, de colaboração com a PIDE de Salazar.
- Como é que tu sabes?
- Tenho as minhas informações.
- Qual o interesse da Brigantilha e da PIDE pelo assalto à carreira?
- O de criarem na opinião pública ambiente favorável à repressão que se vai seguir. Espera e verás…
- Desculpa, mas toda a gente diz que foi o bando do Juan quem matou o Cepriano e deu o golpe aos passageiros da caminheta. Estes afirmam que após o saque, um dos assaltantes perguntou, em galego, ao que parecia o chefe: «D.Juan, mato lo chofer?» Ao que o tal Juan respondeu: « Nom. Pincha los pneumáticos.»
- Isso só comprova a minha tese. Esse diálogo, se o houve, não passa duma encenação para desacreditar o guerrilheiro Juan Salgado, muito conhecido no Barroso pela sua lendária pontaria, mas que não comandava bando nenhum. Tanto quanto sei, o Juam García Salgado pertence à guerrilha orientada por Demétrio Garcá Álvares. O que te posso garantir é que nem o Juan nem o Demétrio têm nada a ver com a morte do Cepriano nem com o assalto à carreira. (…)”
(1) - Bento da Cruz, como barrosão, refere-se à Feira dos Santos em Montalegre, eu, como flaviense e, pela data em questão, além das notícias da imprensa da época, penso que se dirigiam à Feira dos Santos de Chaves (apenas um pormenor e aparte)
Se na primeira vez que li o “Lobo Guerrilheiro” foi de rompante, na segunda, e após ter sido lido pelos meus pais, foi lido já com outros olhos e devidamente comentado, com leitura apoiada por gentes que conhecia as gentes do “romance” e, alguns até personagens intervenientes nele. E de novo o Juan, que nesta altura já não era a meus olhos um bandido, mas antes um homem para com o qual os meus pensamentos tinham sido injustos durante toda a minha vida até então.
A partir do “Lobo Guerrilheiro” tornei-me um apaixonado pela história do Juan, pela sua verdade e, por arrastamento pelas histórias da guerrilha antifranquista, pelos Maquis.
É precisamente seguindo o rasto do Juan que chego até ao Cambedo e, em vez de uma paixão, passo a ter duas paixões que no fim, não passam de uma. A paixão do Juan e do Cambedo, pois falar do Cambedo é falar do Juan e falar do Juan, é falar do Cambedo e digo isto, assim levianamente, porque é isso que eu sinto e que se sente cada vez, que no Cambedo, nos documentos e escritos, se dá de caras com o Juan e com os guerrilheiros antifranquistas, os maquis e, sobre esse passado ainda recente, que tanto maltratou, castigou e perseguiu esta aldeia e as suas gentes e que, ao longo dos anos, têm preferido esquecer, recalcando uma realidade que passados 60 anos ainda dói e ainda mói porque ainda há gentes do Cambedo que viveram esses acontecimentos ou sofrem das suas mazelas e que durante estas últimas seis dezenas de anos, principalmente até Abril de 74 os perseguiu e castigou diariamente e que após Abril, preferiram o castigo do silêncio (quase como Deus manda) ao procurarem a justiça que lhe é devida.
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“Quando, aí por 1956, regressei definitivamente a Barroso, Juan tinha sido morto há uns bons dez anos. Mas o mito do homem continuava.
Por causa dele, comecei a interessar-me pelo fenómeno guerrilheiro antifranquista na Galiza. Mas, durante muitos anos, para onde quer que me voltasse, esbarrava num muro de silêncio e de evasivas” - Palavras de Bento da Cruz, mas também de todos os que têm tentado e tentam entrar na verdadeira (repito verdadeira) história da guerrilha e dos acontecimentos do Cambedo.
Artur Queirós, Jornalista do Jornal de Notícias, num trabalho sobre os acontecimentos do Cambedo publicado nesse mesmo jornal em 6.12.1987, queixa-se do mesmo e até lembra o apelo feito pelo irmão de Juan (Benjamim Riv(b)ero quando lhe pede: « não mexam nessa ferida que é incurável e quanto mais se mexe mais dói»
Pessoalmente penso que o irmão de Juan estava enganado, tal como todos que pensam como ele, estão enganados. Pois penso que quanto mais se mexer na ferida e que quanto mais se souber da verdade, das causas da guerrilha e mais se fale dos acontecimentos do Cambedo, do antes e depois do Cambedo, mais próximos estaremos de fazer justiça a todos os envolvidos, a justiça que merece ser feita, pois só assim se poderão libertar de alguns fantasmas do passado e só assim se curará a tal ferida, embora seja mantida alguma dor que a memória nunca permitirá esquecer.
Felizmente, no decorrer destes últimos anos e, após uma primeira abordagem tímida de Jorge Fernandes Alves nos Cadernos Culturais da Câmara Municipal de Montalegre (em 1981), de Artur Queirós (em 1987), de Bento da Cruz (desde 1991) e Paula Godinho (desde 1996) muita tinta tem corrido sobre o assunto – Livros, estudos, documentários televisivos e até filmes, homenagens (tímidas ainda) de um e outro lado da fronteira foram feitos sobre o a guerrilha e sobre o Cambedo. Mas os do Cambedo, que entre uma merenda e um copo ainda se vão abrindo sobre os acontecimentos e o que se tem contado deles, referem a vergonha e a verdade que nunca foi contada.
Partimos assim e desde o início para um capítulo que nunca será fechado, ainda para mais que os poucos sobreviventes intervenientes, pouco ou nada dizem ao respeito. Parto assim e apenas com uma verdade, a de que o povo do Cambedo foi uma das vitimas da guerra civil espanhola, do pós guerra e do regime salazarista e franquista.
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Até hoje, com verdades ou meias verdades, ainda nunca foi feita uma verdadeira e merecida homenagem oficial ao sofrimento do povo do Cambedo. Nunca foi feita justiça nem nunca o será, porque não há justiça nem homenagem que pague a dor e sofrimento de um povo inocente que foi obrigado a carregar o pesado fardo da culpa, que foi condenado aos olhos de todo o país, castigado, e que viu alguns dos seus serem presos, torturados, desterrados, castigados e perseguidos durante algumas décadas.
Quando pela primeira vez abordei gentes do Cambedo sobre os acontecimentos de 1946, ficou-me apenas retido na memória e para sempre as palavras de um filho da terra que ainda criança viveu os acontecimentos: “ – Uma vergonha, aquilo foi uma vergonha e a verdade verdadeira nunca ninguém a contou.”
Também eu não a vou contar, pois não a sei e, cada vez será mais difícil chegar a essa tal verdade verdadeira uma vez que os documentos oficiais e notícias da época, estão muito longe de serem de fiar e, as testemunhas que viveram directamente os acontecimentos, a maioria já morreu, os poucos que vivem são idosos e não querem ou ainda têm medo de falar e os restantes, dispostos a falar, eram miúdos na altura, que, ou mal recordam ou vão contando o que ouviram contar e inventando até
Penso mesmo que a verdade, a verdadeira verdade, toda a verdade, nunca será atingida. Medos e desconfianças de “gatos escaldados”. Mexer numa verdade que se quer esquecida e que, quase sempre, foi mal entendida e interpretada e em que, poucas vezes se olhou ao lado humano das gentes do Cambedo, às injustiças cometidas sobre o seu povo, ao castigo, à vergonha que durante anos foram obrigados a passar e ainda hoje por lá se sente, agora com um pouco de orgulho (por parte de alguns, poucos), mas ainda muita revolta, desconfianças e até medos de arcar com as responsabilidades dos acontecimentos do Cambedo e a morte da guerrilha antifranquista em terras de Portugal.
Mas uma verdade eu atingi sobre o Cambedo. A verdade de um povo inocente, que foi castigado, perseguido e ao qual nunca foi feita a devida justiça e, tudo apenas por terem acolhido no seu seio, familiares, amigos e vizinhos galegos que aos seus olhos, mesmo que o tivessem sido, nunca foram guerrilheiros.
É essa verdade que eu tentarei aqui abordar, a verdade de uma pequena aldeia que deu abrigo a amigos e familiares e que sofreu pela sua hospitalidade.
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Mais uma vez, repito que é levianamente que faço esta incursão aos silêncios do Cambedo, alguma por minha conta mas, quase sempre e só, para divulgar e interpretar aquilo que já foi escrito e dito nas publicações que nos últimos anos saíram a lume e que são de leitura obrigatória para melhor se compreender a história da guerrilha antifranquista, do Cambedo e claro do tal “guerrilheiro romântico” Juan Salgado o “Facundo”, culpado destas minhas duas paixões – a guerrilha e o Cambedo.
Faço-o apaixonadamente e consciente de todos os senãos de uma paixão, longe de querer fazer histórica sobre o assunto, mas antes uma abordagem também “romântica” e pessoal sobre os acontecimentos, baseando-me em alguns testemunhos de gentes do Cambedo, em alguns testemunhos do tempo de guerrilha de outra gente envolvida fora do Cambedo e nas publicações existentes, principalmente lendo o que não foi escrito naquilo que era “imprensa” da época e nos escritos de Jorge Fernandes Alves, Artur Queirós, Bento da Cruz , Paula Godinho e dos escritos de outros autores reunidos em livro pela Asociación Amigos da República - Ourense, aos quais (a todos) desde já peço desculpas pelo uso de muita da sua literatura e investigação, mas também com todo o respeito e admiração por todo o trabalho realizado na descoberta das verdades possíveis sobre a guerrilha antifranquista e o Cambedo.
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São assim leitura obrigatória sobre o assunto, pelo menos:
-Jorge Fernandes Alves – Cadernos Culturais 2 – «O Barrosos e a Guerra Civil de Espanha», Edição da Câmara Municipal de Montalegre, 1981;- Artur Queirós – Jornal de Notícias, JND Domingo, de 6.Dez.1987;- Bento da Cruz - «O Lobo Guerrilheiro» – Editorial Notícias, 1991- Paula Godinho – «O Maquis na Guerra Civil Espanhola: O caso do cerco a Cambedo da Raia» – Revista História, nº27, Dezembro de 1996- Asociación Amigos da República. Ourense, « Solidariedade galego-portuguesa silenciada – Cambedo da Raia 1946» – Ourense 2004- Bento da Cruz - « Guerrilheiros Antifranquistas em Trás-os-Montes» – Âncora Editora, 2ª Edição, Abril de 2005.
Até amanhã e já sabem que esta semana vamos andar por terras do Cambedo e regressar ao ano de 1946, aos seus acontecimentos, ao antes, ao durante e ao após Dezembro de 1946 e mais uma vez pedir desculpas ao Cambedo e às suas gentes por mexer naquilo que querem esquecido, mas que só com a verdade e o desvendar dos acontecimentos poderá ser feita alguma justiça. Espero contribuir para que tal aconteça, claro que com todos os defeitos de um olhar apaixonado!
Até amanhã e a partir de hoje não esqueça que pode acompanhar também tudo que for dito sobre o Cambedo no blog: Cambedo-Maquis