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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

30
Out09

Discursos Sobre a Cidade - Por José Carlos Barros


 

.

 

Quase as Aldeias

 

texto de José Carlos Barros

 

http://casa-de-cacela.blogspot.com

 

 

Meu Caro Fernando:

 

Lamento, desta vez, não poder aceder ao teu pedido (e meu compromisso): escrever (uma vez por mês) um texto sobre Chaves, ou sobre o que de Chaves fica (ficou, permanece) na envolvência dos nossos usos e hábitos; ou sobre, enfim, essa geografia vasta que nos une em prodígios, desencantos, mágoas, regressos. O

 

tempo. Ia a escrever com maiúscula: o Tempo. Deixámo-nos acorrentar por Ele, já se sabe. E isso nos desculpa: não O temos; ou tÊmo-lo pouco. E é essa a escusa (não única, como adiante se verá), que posso hoje invocar, às onze e meia da noite de quinta-feira, para não aceder ao teu pedido (e meu compromisso). Tu hás-de compreender e desculpar-me. Mete lá um texto sobre coleccionismo ou sobre cancelas nos campos abandonados – vai dar ao mesmo, Fernando…

 

Mas permite-me (jágora) só dizer-te: sabes? Essa tua obsessão pelas aldeias, pelas quase cento e cinquenta que o concelho de Chaves conta, deixa-me sempre interdito. Entre o sobressalto, a nostalgia e uma espécie de ressaibo que me leva a tentar compreender-te e a (quase) simultaneamente apetecer-me ignorar os reptos (desafios) desfasados do tempo (ou do Tempo, sei lá) que nos fazes. Nelas (nas imagens que prossegues e persegues) sinto-me rendido e desafiado. É que essa (esse território, esse universo) chegou, num certo sentido, a ser a minha vida [oh,

 

 como descaindo-nos o pé para a literatura chegamos tão facilmente a roçar a vulgaridade da grandiloquência…]

 

Mas as coisas são comoção: e, Fernando, desculpa dizê-lo assim tão defronte: que raio de fantasmas te arrogas tu o direito de trazer-nos enrolados em milagre e desassossego? Não saberás tu definitivamente que o mundo rural, o interior, a periferia, é (são) coisas do passado? Que arqueologia estranha pretendes tu

 

insinuar-nos? O granito, o ferro, a madeira? As sinuosas curvas de nível dos montes a caminho de Santa Marinha? As decrépitas capelas visigóticas, as aras pagãs, os postes de electricidade a erguerem-se por entre empenas de granito e o cimento à vista das construções mais recentes? As onduladas cumeadas de São Vicente da Raia? Os largos do Meio da Aldeia, os tanques, as bicas, os labirintos dos canais de rega? Segirei? Os fios azuis e cor de laranja que atam as vides e juntam as tábuas dispersas dos cancelos? As escaleiras e os combarros? As palhas dos pátios misturadas à poeira das tardes de fim de Verão? As igrejas a marcar um centro por entre casas medievais? Os muros do cadastro? Os bois olhando-nos como se nos interrogassem sobre o princípio do mundo? As janelas em ruína deixando entrever ao fundo um azul (o do céu) que não pode pertencer-nos? Tem

 

juízo, Fernando. Põe-te guicho. Não compreenderás, caro amigo, o quanto remas contra uma corrente de ramos e remos abstrusos? Não sabes fazer contas? Não sabes que «isto» dá prejuízo? Que fechar as escolas ou os centros de saúde se constitui como mecanismo obrigatório (de interesse público) de controlo financeiro? Que as paisagens e os recursos destruídos pela barragem de Padroselos entram no excel das fórmulas de Quioto? Que o abandono e os consequentes incêndios não são um mal se moverem uma indústria? Não compreendes,

 

Fernando? Não sabes fazer contas de sumir? Insistes em trazer-nos fotografias de colorida roupa pendurada em varandas e alpendres de casas de granito? De moinhos perdidos no fundo de um vale? De pequenos bosques de carvalhos inscritos na metade das encostas da montanha? De lameiros e hortas e carros de bois

 

do século passado? Onde tu andas…

 

E é também por isso, por tudo isto, que me defendo e desculpo de não enviar-te o texto que me pediste e eu me comprometi a remeter: além da falta de Tempo, meu caro, não há pachorra. Porque tu, Fernando, insistes em falar do que não interessa. Do que já não existe. Do que, há muito, foi riscado dos livros de costumes. Não queiras, pois, arrastar outros neste azougado e inconsequente desvario.

 

As nossas fronteiras, de há uns anos a esta parte, como compreenderás, diminuíram; encolheram. E, nesse rearranjo territorial, excluíram-se cancelos e largos e alpendres e pátios. As nossas aldeias são, passaram a ser, excrescências; um estorvo de que demoramos a livrar-nos. A modernidade, a contemporaneidade, portanto, vai (vão) contra ti, contra as tuas fotografias e contra a intolerável e (tua) melancolia rústica. Desculpa

 

lá: desenrasca-te. Não esperes é que eu continue a contribuir para alimentar devaneios e ilusões a que estás (parece) tão demasiado vinculado. E

 

é (também) por isso, meu caro amigo Fernando (e não apenas pela falta de Tempo), que hoje me recuso a escrever um texto sobre a cidade de Chaves, sobre as aldeias do concelho de Chaves, sobre o Barroso e o pouco que mais restará do mundo que tu persistes em estimar ainda como se pudesse existir.

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