Hoje não há feijoada - Chaves - Portugal
Hoje não há feijoada, ou melhor, há feijoada. Aliás nem seria quarta-feira em Chaves se não houvesse feijoada. Assim, hoje também há feijoada, mas não me apetece!
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Será talvez do Outono, ou do frio que finalmente parece querer chegar, talvez cansaço, talvez comungar um pouco da indiferença a que todos são devotos. Seja o que for, hoje por aqui, não se come feijoada. Pode-se fumar um cigarro, beber um copo, calçar as pantufas, ligar a televisão e “prontos”, deixemos que os outros nos conduzam até ao sono, que mais tarde ou mais cedo, chegará.
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Ainda pensei falar-vos um pouco de arquitectura, do único exemplar típico da casa portuguesa que existia em Chaves, que todos achavam bonita, que todos tinham pena de estar entalada pela modernidade do betão, que marcava a diferença e também fazia um pouco da história cá da terra. Enfim, engolida pelo betão, ninguém chorará uma lágrima sobre as suas cinzas… afinal estava desenquadrada do ambiente, dizem, por isso, para que andar “práqui” com merdas e requiens se, à única música a que terá direito será a das concertinas, tambores da Venda Nova e cabeçudos que desfilem pela rua na próxima festa.
Não, hoje não quero feijoada. Já disse, não me apetece.
De parte o intróito…esqueçamo-lo. Vamos mais uma vez a Miguel Torga, que como um bom poeta morto, deixou palavras para a posteridade e para os que ficam. Palavras, simples palavras para pensar e reflectir, os que conseguem, claro!
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Chaves, 20 de Setembro de 1963
Musa Ausente
Falta a luz dos teus olhos na paisagem:
O oiro dos restolhos não fulgura.
Os caminhos tropeçam, à procura
Da recta claridade dos teus passos.
Os horizontes, baços,
Muram a tua ausência.
Sem transparência,
O mesmo rio que te reflectiu
Afoga, agora, o teu perfil perdido.
Por te não ver, a vida anoiteceu
À hora em que teria amanhecido…
Miguel Torga, In Diário IX