Quem conta um ponto... As deduções e o espanto
As deduções e o espanto
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Catarina Portas, a irmã do distinto Paulo das feiras e do simpático e monocórdico Miguel, agora no seu novo look de empresária, confessou à Única “Sou uma jornalista que não escreve e uma documentarista que não filma”.
Por seu lado, o cantor Paulo de Carvalho, o tal dos meninos à volta da fogueira, afirmou ao jornal I: “Queria ser toureiro ou futebolista. Acabei músico, que é mais ou menos a mesma coisa”. E assegurou: “Nunca apanhei uma bebedeira”.
O que acima fica dito remete-nos para algumas deduções. E também nos causa espanto.
Vamos primeiro às deduções. Sendo Catarina uma jornalista que não escreve e uma documentarista que não filma, está em inteira sintonia com o estado actual da nação, pois também temos um presidente que a nada preside, limitando-se a passear pelo país arrastando a sua voz e a sua comitiva em inaugurações risíveis, emitindo opiniões ao nível da inocente comunicação da senhora ministra da educação; possuímos um primeiro-ministro que já nada administra, cansado, aborrecido, sem paciência para as reformas que começou a implementar e que deixou a meio, hipotecando seriamente o futuro dos nossos filhos (o que se iniciou em euforia pode terminar em tragédia); temos também uma oposição política que nunca mais se torna credível, que se anula, ou na irresponsabilidade das suas propostas ou nas lutas fratricidas entre pares; possuímos um sistema de ensino que nunca mais sai da cepa torta, caminhando de reforma em reforma até à inércia total; criámos um sistema nacional de saúde que se tornou viciante, atípico, errático, fleumático, corporativista, subordinado à tutela de políticos incompetentes e carreiristas; e desenvolvemos uma segurança social que é um misto de bodo aos pobres e de história do faz de conta (faz de conta que forma, que reforma, que transforma, faz de conta que integra, faz de conta que ajuda).
Claro que também podia referir a política económica do governo, mas não consigo articular um raciocínio completo por temer que, como os gauleses da aldeia do Astérix, o céu me caia em cima da cabeça. Podia comentar a política agrícola comum e a nacional, mas reconheço que ela não existe. E eu não consigo comentar, por muito que me esforce, uma realidade que foi estruturante para o país e que já não existe. O que sim existem são por aí alguns senhores que lá vão, nos seus tempos livres, semeando e plantando qualquer coisinha, mas mesmo esses foram já ultrapassados pelos chefes de família que tratam da relva, das flores e da oliveira (velha e única) dos seus jardins, nos intervalos da bola ou entre o almoço e o lanche da tarde de domingo. Podia ainda falar-vos na defesa nacional mas também não consigo porque me dá logo uma crise de riso. E, como isto está, quem é que será tão louco ao ponto de ter a pretensão hegemónica de tomar pela força das armas um país insolúvel (com um exército irrisório, uma marinha de opereta e uma força aérea que cada vez que põe uma esquadra a voar logo vê cair, impotente, mais uma aeronave), sempre com a corda ao pescoço, que, para provar coerência e verticalidade, faz jus ao velho aforismo do governador do império romano que, referindo-se aos lusitanos, sentenciou: é um povo para lá do istmo peninsular ibérico que nem se governa nem se deixa governar. E podia, por fim, tentar falar-vos da cultura, da política cultural do nosso governo e das iniciativas culturais das nossas instituições mais prestigiadas. Lá poder podia, mas depois de ler as palavras do Paulo de Carvalho, encontro-me do lado do espanto. Por fim encontro a razão da nossa indigência cultural.
Ora vejam lá, um dos nossos músicos mais consagrados, mais respeitados e mais acarinhados, queria ser toureiro ou futebolista e caiu na música. Assim sem mais. Uma manhã, que eu imagino de Primavera, acorda o Paulo a sonhar ser toureiro, vai até uma praça de touros no Ribatejo, pede para experimentar dar umas voltas com a capa com a finalidade de enganar uma vaca, pois é por aí que se começa, e depois da primeira corrida atrapalha-se, cai e suja a roupa lavadinha de fresco. Desiludido, segue caminho até ao Estádio da Luz, pede emprestadas umas chuteiras e põe-se a fintar os adversários, mas com pouco jeito. Para não desiludir logo o rapaz, o treinador sugere-lhe que calce as luvas e vá para a baliza. Que é sítio pouco desejado. Ele amua, tira as chuteiras e vai para casa jantar. Depois de jantar encontra uns amigos que possuem uns instrumentos e com eles forma um grupo que toca alto música rock e canta em inglês. Ele desenrasca-se na bateria. A partir daí foi sempre a subir. Abandona a bateria e começa a cantar a solo. Concorre aos festivais da canção e até chega a ganhar um. Nesse seu dia de triunfo decide abandonar os sonhos de adolescente e tornar-se um cantor profissional. Seguidamente viu uma sua canção ser uma das senhas do 25 de Abril. Ficou célebre como o caraças. A pedido de Sá Carneiro compôs o hino do PPD, fez-se militante do PCP e por aí anda a cantar e a encantar as plateias deste país de poetas e trovadores. E tudo isto sem nunca se embebedar. Olhem que é obra, enfrentar sóbrio toda uma vida artística de sucessos. Daí o meu espanto.
Mas reparem agora numa coisa: nenhum músico conseguiu impor-se fora de portas. Todos preferiram ficar por aqui a moer-nos o juízo. Os casos de sucesso artístico, que não são músicos, preferiram todos emigrar: Vieira da Silva, Paula Rego, Saramago, Mourinho e Cristiano Ronaldo. Ora isto dá que pensar. Daí o meu espanto. E os músicos, os de qualidade, são há décadas os mesmos: Paulo de Carvalho, Fernando Tordo; Sérgio Godinho, Fausto, José Mário Branco, Carlos Mendes, Rui Veloso, Luís Represas, etc., que se vão misturando em projectos aleatórios para fazerem render o peixe.
O espanto, dizem, é uma atitude de quem se surpreende com admiração diante de alguma realidade ou pessoa. Não é forçosamente a realidade a ser surpreendente. Ou melhor, a realidade pode simplesmente ser olhada desde um novo ponto de vista. Por isso, o espanto é uma reacção individual que observamos sobretudo nas crianças e nos poetas dignos desse nome. Com o passar do tempo, vamos perdendo inexoravelmente a capacidade de nos espantarmos. As experiências em vez de nos ajudarem a viver com maior intensidade, parece que criam em nós uma carapaça, uma protecção, que nos distancia da vida real, como se, ao mesmo tempo, fosse possível proteger-nos da vida e desfrutá-la até ao âmago.
Por isso deixem-me socorrer de Camões: “E, afora este mudar-se cada dia,
/ Outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.
PS – E, por favor, tomem atenção às meias, pois anda por aí muito fidalgo que compra os sapatos na Baviera e as meias nos chineses, pensando que o que não é visto não interessa. E alguma razão tem o povo quando, na sua infinita sabedoria, diz: Homem pobre, meia de seda, caldeirão de cobre.