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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

19
Nov10

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


 

.

 

 

TALHAR O COXO

 

 

 

Nove meses de Inverno e três de inferno, é o lema ancestral do Planalto!

 

O Verão, naquele ano, apresentava-se estupidamente quente. Não havia sítio nenhum onde se estivesse sossegado. Só a madrugada ou a noite escura proporcionavam algum conforto. Então a mosca atazanava de tal modo a cria que só no meio das giestas se sentia acomodada. Ainda se corresse um ribeirinho que fizesse alguma presa! Mas não, no Planalto, água corrente só mesmo nos regos dos lameiros e nas nascentes. Mas, naquele ano, não corria peta de água. Porém, para os lados da Lamalonga, tinha o Ti Balele de Fornelos uma poça funda e lodosa, sem memória de que secasse. Ora, era hábito a rapaziada ir a banhos à Lamalonga nas sestas de canícula. Assim aconteceu daquela vez. Um rancho de rapazotes combinou uma espolinhada na dita poça, nessa tarde de Sábado.

 

Chegados, despiram-se até ao pescoço e chapinharam no lodo, na santa paz do Senhor, até à noitinha. Era um alívio para o corpo e, tirando uma ou outra rara vez que eram corridos pelas labrestadas do rabo do sacho do Ti Balele, quase nunca havia azar.

 

No Domingo seguinte, quando se levantou e se debruçou do balaústre de madeira da varanda para urinar para o pátio, o Berto da Senhora Clotilde, sentiu um ardor estranho no respectivo. Examinando-o, reparou que se apresentava crivado de borbulhas de cabeça branca. Envergonhado, o rapaz pediu ajuda à sua mãe. A senhora Clotilde mirou, remirou e depois de pormenorizado exame perguntou:

 

— Para onde foste ontem, Bertinho?


— Fui com os outros para a poça da Lamalonga.


— Claro, atão não há dúvida, apanhastes coxo na pilinha! — Diagnosticou!

 

De pilinha, tinha o órgão muito pouco. Apresentava já uma penugem parecida com aquela que os pássaros mostram quando querem desaninhar!

 

— Temos de ir à Ti Mercedes, à Amoinha, para que te talhe o coxo.

 

Era Domingo, um dia azado para estas coisas. Calhava bem!

 

A senhora Clotilde foi à capoeira, escolheu uma galinha careca, das que não punham, e meteu-a no cabaz para a paga. Montou na burrita e lá foi com o rapaz à barbela até a Amoinha. Passava pouco das onze quando chegaram. O calor apertava. A burra suava em bica, não sei se por mor da canícula se pelo peso da dona. É que a senhora Clotilde era mulher para mais de cem quilos!

 

— Vá lá não se ter lembrado de meter o filho à garupa — cismava a burrita em linguagem de asno!

 

Passando pela capela do lugar, a missa do padre Luís ainda decorria. No adro, muitas bestas presas à argola esperavam os seus donos no inferno das moscas. Quando a burrita passou, ou porque tivesse exalado um cheiro a cio, que talvez pela tenra idade estendeu para Agosto, ou por outra razão qualquer, um burro experiente e amante de carne fresca sentiu o aroma e vai de armar tal estardalhaço de zurros e piparotes que o padre Luís teve mesmo de interromper a celebração. O Ti Zé Paranhos, dono do asno, quando se apercebeu que lhe tocava, sacou de um estadulho de um carro de bois e estendeu quatro sardinhas de respeito no lombo do animal, enquanto resmungava envergonhado:

 

Rais te parta no burro a pecar no adro da capela! Eu dou-te a burra, meu filho da puta!

 

A burrita, não renegando aos arranques do corpo e igualmente entusiasmada, ia arrimando a dona de cangalhas. Valeu-lhe a mão amiga do Ti Fagundes que amaciou, com uma vara de marmeleiro, as orelhas da desavergonhada!

 

Chegados à casa da curandeira, duas palmadas bem dadas na porta carral de pátio fizeram-nos anunciar. A Ti Mercedes, mulher para setenta anos, viera há tempos fugida da guerra civil de Espanha. O sotaque galego em nada prejudicava o seu respeitado desempenho. Dava-lhe até um certo ar de mistério como convém a estas artes!

 

Que pasa Clotilde?


— É o meu Bertinho que está com o coxo. Vinha ver se vossemecê lho talhava.


Antonces não talho mujer, entra!

 

Presa a burrita ao pinalho do carro de bois, a senhora Clotilde mailo rebento subiram as escaleiras de perpianho até à varanda de soalho corrido, sobranceira ao pátio.

 

— Deixa que te mire rapaz!


O Berto, envergonhado, lá abriu a custo a braguilha e mostrou o instrumento à doutora. Parecia um bicho. Estava pior!

 

Ai mocito como vás! O bitcho era bravito. Isto non vá num solo dia. Tenes que benir unos cinco. Hoy te faremos la primera benzedura.

 

Foi à cozinha e voltou com um facalhão de aço, pouco mais pequeno do que aquele que se usa para sangrar os recos. O rapaz, quando o viu, tralhou-se de medo, pensando servir para o amputar o apêndice. Sossegou quando viu que não. Afinal era só para desenhar cruzes enquanto rezava a seguinte oração:

 

Yo te talho bitcho bitchão, sapo sapão, aranha aranhão, bitcho de toda a nação. Em louvor de S. Silvestre quanto assa tudo preste, com a ayuda de Nuestro Senhor que é el verdadero mestre. Em louvor de Deus e da Virgem Maria um Padre Nuestro com una Avé Maria.

 

Depois de se ter benzido três vezes, deu a consulta por terminada. Recebeu a galinha, agradeceu e marcou para o dia seguinte nova consulta.

 

À hora, lá estava mãe e filho, como nos quatro dias seguintes.

 

Ao quinto, não sei se das rezas ou se da evolução normal da doença, o rapaz apresentava melhoras significativas, a avaliar pela análise feita pela curandeira:

 

— Mira, já está melhorcita, que já se le endireita a cabecita!


Declarado curado o mal do coxo, mãe e filho regressaram todos contentes. Bem sei que a capoeira da Ti Clotilde foi subtraída das melhores pitas, mas valeu a pena, não fosse o Bertinho perder a oportunidade de tocar umas flautadas às moças da sua idade no tempo certo!..

 

Além do mais, poderia continuar, por agora, a matar o calor na poça da Lamalonga.

 

Gil Santos

 


………………………………………………………………………………………

 

 

 

À margem da estória de Gil Santos, fica a título de curiosidade um vídeo com a reza do coxo, gravado por Gonçalo Mota e produzido por Terra de Miranda Museum:

 

 

 

REZA DO COXO from ETNOmedia on Vimeo.

 

 

 

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