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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

01
Dez10

Reino Maravilhoso * Trás-os-Montes * Portugal


 

 

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Todas as manhãs, quando acordo, o primeiro olhar que lanço para fora de casa vai em direcção ao Brunheiro. Ele é o meu barómetro e é ele quem me diz se a roupa a vestir deve ser de agasalho, mais ligeira, para chuvas ou nevoeiros. Ontem, no olhar do acordar, o Brunheiro estava vestido de Branco.

 

Desci à cidade e pelo caminho o rádio foi-me pondo ao corrente da situação – Frio, alerta amarelo, neves, estradas cortadas nas serras altas e montanhas, em suma, aquilo que poderá parecer o prenúncio de uma desgraça é afinal a alegria de muitos, principalmente dos putos, pois é um dia de borga e sem aulas, mas não só, pois também os crescidos, mesmo que não o admitam, gostam de ver a terrinha vestida de branco, principalmente quando sabem que não veio para durar.

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Eu também nunca resisto, e gosto, sou como os putos…corro logo para a neve a fazer uns bonecos, mesmo que sejam apenas fotográficos.

 

Também ontem aproveitei e fui montanha acima à procura dela. Para o Brunheiro era impossível, pois a Nacional 314 estava cortada no Peto de Lagarelhos, decidi-me então por Mairos, S.Cornélio e como aqui as coisas se começavam a complicar, em vez da opção Travancas até terras de S.Vicente, decidi-me regressar pela Bolideira e Águas Frias.

 

Pelo caminho ia-me deliciando com as maravilhas do branco, o dobrar das giestas pelo peso da neve, os patos bravos (1) na barragem de Mairos e águias por tudo quanto era alto. Sozinho no meio da imensidão do branco dei comigo a dizer: - Este é o reino maravilhoso de que Torga fala.

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Chegado a casa, abriu-me o apetite para reler o “Reino Maravilhoso” de Torga, o mesmo de que tantas vezes se fala e se faz a citação das primeiras palavras do texto… “Vou falar-vos de um reino maravilhoso (…) fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores (…)  Vê-se primeiro um mar de pedras (…)— Para cá do Marão, mandam os que cá estão!... “ e nunca aparece o texto por inteiro, e é pena, pois todo ele é um poema que nos deixa nus perante a nossa identidade transmontana, o nosso ser, um retrato fiel daquilo que somos e que todo o transmontano tem obrigação de conhecer.

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Sei que muitos de vós já o conheceis, e também sei que em blog textos longos não funcionam muito bem, mas vou arriscar a deixar aqui na integra o «Reino Maravilhoso * Trás-os-Montes» para relerem ou para finalmente terem o texto por inteiro, e tal como quando se comem cerejas, quando o começarem a ler, já não param.

 

Sei que o texto não precisa de ilustrações, mas pelo caminho vou deixando algumas da nevada de ontem. Divirtam-se.

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UM REINO MARAVILHOSO

(TRÁS-OS-MONTES)

 


Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.


Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a espessura do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:

 

— Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...

 

Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?

Mas de nada vale interrogar o grande oceano é megalítico porque o nume invisível ordena:

 

— Entre!

 

A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.

 

Reino, nestes livros sinistros que são os dicionários, é um substantivo masculino com rei à frente. Imaginem!... Como se fossem suficientes um léxico e um monarca para definir e governar uma realidade irreal!

Pelo que diz respeito a mandar, é o que sabemos

 

— Para cá do Marão...

 

Mandam todos. O poder que atravessa a muralha e penetra ali,  se tem corpo, se tem nome, ou perde a marca individual e se transforma em símbolo, ou morre. Tem de ser sempre, quer sela Pio X ou Pio XII, o «nosso Santo Papa Leão XIII», que é quem a Maria Purificada elege em cada conclave na sua Vila de Freixo de Espada à Cinta...

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Incapazes de uma obediência imposta de fora, os habitantes da terra apenas consideram naturais e legítimos os imperativos da própria consciência. O eco duma ordem estranha à sua harmonia interior desliza pela crosta das almas sem as perturbar. As mais altas dignidades de além fronteiras nada mais representam do que puras expressões nominais de valores abstractos. Meta-se um cristão por qualquer dos caminhos que levam ao coração geográfico desse mundo encantado. De certeza que lhe aparece um semelhante de aguilhada na mão, socos pregados e roupa de saragoça, a perguntar:

 

— O meu Senhor, sempre é verdade que o nosso rei agora é o Doutor Afonso Costa?

 

Faça o que fizer o Tamerlão invasor, a mesma vontade que ele julga dobrar o deseroíza e vence. É ela que, a bem ou a mal, acaba por dispor das riquezas que lhe pertencem: das águas de regadio, dos baldios, da mulher e dos filhos, e de si. De tudo o que na vida material e espiritual tem grandeza e sentido. No pormenor, no que não é seiva de ninguém, dão sentenças o Regedor e o Senhor Abade, que, afinal, pregam editais nas portas e sermões nas igrejas...

A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Montalegre, de Montalegre a Chaves, de Chaves a Vinhais, de Vinhais a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Freixo, de Freixo à Barca de Alva, da Barca à Régua e da Régua novamente a Vila Real, mas a que pertencem Foz-Côa, Mêda, Moimenta e Lamego — toda a vertente esquerda do Doiro até aos contrafortes do Montemuro, carne administrativamente enxertada num corpo alheio, que através do Côa, do Távora, do Torto, do Varosa e do Balsemão desagua na grande veia cava materna as lágrimas do exílio.

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Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.


Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas.


Nos intervalos, apertados entre os lapedos, rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta aridez. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Veigas que alegram Chaves, Vila Pouca, Vilariça, Mirandela, Bragança e Vinhais.


Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.


Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho. Mas é por isso que os naturais o beijam quando ele cai no chão...


O vinho é de moscatel, alvarelhão, penaguiota, malvasia fina, emana das fragas à ordem de vozes imperiosas como a de Moisés quando feria a pedra do Horeb — a vara mágica do patriarca substituída agora por um alvião de saibramento. Por toda a parte apetece saboreá-lo, porque mesmo onde a neve, o sincelo e o suão crestam a esperança, mesmo aí ele parece veludo no paladar. Mas há lugares santos onde a santidade é maior. Assim acontece no Roncão, Samos de todos os Samos.


Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.


Mas a terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão. Produz batata, azeite, cortiça e linho. Batata farinhuda, que se desfaz na boca; azeite loiro, que sai em luz da almotolia: cortiça que deixa os sobreiros nus para agasalhar os enxames; e linho fresco, fino, que, tecido em lençóis, faz o bragal das noivas.

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De figos, nozes, amêndoas, maçãs, pêras, cerejas e laranjas nem vale a pena falar. São mimos dum pomar variegado, que nenhuma imaginação descreve quando a primavera estala nos ramos. Ver uma encosta de Barca de Alva coberta de flores de amendoeira, ou o solar de Mateus a emergir dum mar de corolas sortidas, é contemplar o inefável. Mas o fruto dos frutos, o único que ao mesmo tempo alimenta e simboliza, cai dumas árvores altas, imensas, centenárias, que, puras como vestais, parecem encarnar a virgindade da própria paisagem. Só em Novembro as agita uma inquietação funda, dolorosa, que as faz lançar ao chão lágrimas que são ouriços. Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de espinhos deixam ver numa cama fofa a maravilha singular de que falo, tão desafectada que até no próprio nome é doce e modesta: — a castanha. Assada no S. Martinho, serve de lastro à prova do vinho novo. Cozida, no Janeiro glacial, aquece as mãos e a boca de pobres e ricos. Crua, engorda os porcos, com a vossa licença...

 

É destes que se tem de partir para chegar à trindade tradicional do reino: os presuntos, as alheiras e os salpicões.


Por alturas do Natal, começa a matança. Ao romper da manhã, a paz de cada povoado é subitamente alarmada. Um grito esfaqueado irrompe do silêncio. Dias depois desmancha- se a bisarma, e um pálio de fumeiro cobre a lareira.


Quem não comeu ainda desses manjares ensacados, prove... E há-de encontrar neles o sabor das invernadas passadas ao borralho enquanto a neve cai o perfume das graças dadas por alma dos que Deus tem, a magia da história de João de Calais contada aos filhos, e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou da índia.


Mas o panorama zoológico não se fica pelo animal de vista baixa que se desfaz em torresmos e chouriços. Passando pelo lobo do Eusébio Macário, que só por si vale um tigre do Kipling, pelo boi de Miranda, que só lhe falta falar, e pelo bicho da seda que de Bragança aveludou em tempos Ceca e Meca, temos ainda a perdiz, a fera da Mantelinha, que nenhum forasteiro deve deixar de ver. Em Outubro, quando o sol ainda a espreguiçar-se de sono lava a cara na fonte de Casal de Loivos, certo perdigueiro, que sobe o monte colado ao chão, já com um aceno perfumado a fazer-lhe cócegas no nariz, pára de repente siderado. Manda-se-lhe dar a pancada. O navarro entra, e só então Sua Senhoria aparece. Cabeça alta de quem olha o mundo de cima, peito largo aberto ao vento, pés seguros de almocreve. — Pfrrruu..u..u. Lá vai ela! Quando o tiro lhe acerta e cai, parece uma deusa morta... No cinto, ainda se lhe tem respeito...

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A truta, que representa com dignidade e bravura o mundo da barbatana, é nos açudes que mostra o que é. Sobe por eles acima como os rapazes pelos mastros ensebados, e só com sofismas a pescam uns filósofos sem filosofia, que vale a pena observar, de cana em riste e saltão no anzol. Quem for a Boticas, coma um peixinho desses e beba-lhe «vinho de mortos» em cima. Pelo que houver,  fico eu. Acudo-lhe com o único remédio decente que se conhece para moela fraca — um quarto de Pedras ou de Vidago, águas minerais que nascem perto. A terra é de tal natureza que, não contente com as dádivas a céu aberto, encerra nas entranhas riquezas que não têm conto. Entra-se no ventre duma serra, e é ferro, é oiro, é chumbo, é estanho, é volfrâmio, é zinco, é urânio, é tudo quanto Vulcano forjou. Caldas, então é um benza-te Deus. São famosas as de Carrelão, as de Moledo, as de Alfaião, as de Chaves, as Carvalhelhos e as de Sabroso — porque de todas elas fazem milagres perfeitos. E vêm então peregrinos de muito longe — gente que arrebentou ou se envenenou a comer um boi e a beber um tonel — curar nelas o estômago, o fígado, a gota, os eczemas e a melancolia. Tomam-nas durante quinze dias. Ao cabo, regressam, de corpo novo e alma nova.


Os naturais é que raramente precisam delas, por serem homens de muita saúde e sobriedade.


Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças, capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo, e nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei! Usam todos bigode e alguns suíças. E põem naqueles pêlos da cara uma dignidade tal, um sentido tão profundo da pessoa humana, que é de a gente se maravilhar. Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê- se que os motiva apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologaís porque Deus não quer. Fiéis à palavra dada, amigos do seu amigo, valentes e leais, é movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:

 

— Entre quem é!

 

Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.


Nos códigos e no catecismo o pecado de orgulho é dos piores. Talvez que os códigos e o catecismo tenham razão. Resta saber se haverá coisa mais bela nesta vida do que o puro dom de se olhar um estranho como se ele fosse um irmão bem-vindo, embora o preço da desilusão seja às vezes uma facada.


Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo émundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura.

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Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura, aos vinte anos (se não tiver sido antes), depois da militança, alguns emigram para as Arábias de além-mar. Brasis, Africas e Oceanias. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Mourejam como leões, fundam centros de solidariedade humana por toda a parte, deixam um rasto luminoso por onde passam, e voltam mais tarde, aos sessenta, de corrente ao peito, cachucho no dedo. e com a mesma quimera numa mala de couro. Gastam cem contos numa pedreira a fazer uma horta, constroem um casarão com duas águias no telhado, e respondem com ar manhoso a quem lhes censura um amor tão desvairado às berças:

 

— Infeliz pássaro que nasce em ruim ninho…

 

E continuam a comer talhadas de presunto cru.


Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemitérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito. Alegrias gratuitas têm poucas. Embebedam-se nas festas e nas feiras, batem a cana-verde nos dias grandes, e gozam os robertos e as vistas que levam de povo em povo um sofisma de ventriloquia e a irrealidade serôdia das terras do Preste João.

 

— Ó Zé Roberto:

Queres casar comigo, que sou uma rapariga bem boa?

Bem boa! Bem boa! Bem boa!


Olha o «Vaticano», olha o «Vaticano», com as suas 365 janelas e o Papa a olhar a uma delas… Quem quer ver? Quem quer ver?

 

Nas romarias, verdadeiramente, não se divertem. Pagam nelas o dízimo espiritual ao santo ou à santa com quem têm contratos pelo ano fora, e fazem a barrela das suas relações humanas.


A capela da devoção fica no alto do mais alto monte que rodeia a freguesia. E eles sobem então pela serra acima, quer à vara do pálio, quer a alombar o andor, quer de joelhos, a abrir uma chaga de sofrimento no corpo pecador — mas sem tirar os olhos do inimigo com quem hão-de medir forças no arraial. Sobem numa penitência inteira. Ao descer, vêm numa manta, esfaqueados.


Dessas mortes ficam pelos caminhos memórias de pedra com alminhas do purgatório a pedir orações, que são a História intima do reino resumida em padre-nossos. A outra, toda feita de lendas e fantasia, tem o seu tombo no coração dos que são poetas, e conta-se nas fiadas. Na loja dos bois, ao calor aconchegado da bosta quente a fermentar a palha, envolto na luz pacífica de uma candeia de azeite, o rapsodo mais velho começa:

 

No tempo da Princesa Clarimunda...

 

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A meia-noite o fuso pára nas mãos adormecidas das fiandeiras. Erguem-se todos. Mas no dia seguinte chega-se ao fim.


De Celtas, lberos, Romanos, Moiros, etc. e tal, e dos do tempo dos afonsinos, os velhos dão pouca relação. Em todo o caso mostram os dólmens do Alvão, a Porca de Murça, a ara do deus Aerno, os castros desfeitos, os altares de Panóias, a ponte romana de Chaves e a Domus Municipalis de Bragança. O tempo mudou os símbolos da fé, deliu as inscrições sagradas, e relegou para a penumbra da arqueologia o que foi vivo e útil. Por isso, olham todas essas relíquias numa espécie de melancolia esquiva, Renúncia inconformada, que, num desesperado esforço de encontrar os secretos tesoiros da unidade eterna, às vezes os leva a meter um cartucho de dinamite nas pedras veneráveis, a ver se elas resistem à inquietação do presente.


É certo que há escolas pelo pais a cabo onde as leis inexoráveis do perecível e do imperecível são explicadas. De uma sei eu em que certa palmatória de cinco olhos faz decorar tudo quanto no mundo se descobriu até à raiz quadrada. Mas mesmo nos remos maravilhosos acontece a desgraça de o povo saber duma maneira e as escolas saberem doutra. Acabado o exame da quarta classe, cada qual trata de sepultar sob uma leiva, o mais depressa que pode, a ciência que aprendeu.


A não ser o Senhor Varatojo, que dá sota e ás ao mais pintado doutor. Na inquebrantável decisão de levar tudo ao fim, na teimosia que, uma vez segura da sua verdade, não cede a nenhum argumento, e no gosto inquieto de conhecer, podia ter sido um novo Fernão de Magalhães. a dar a volta aos mundos de agora. Mas como infelizmente a pátria não convida os filhos para tais empresas, empregou-se na Câmara, come do bom e do melhor à custa de quem lho vai meter no bico, toca bandolim. e lê quantos romances se escreveram. Depois conta-os na farmácia, e pinta o diabo se alguém o desmente.

 

— Tenho a certeza matemática! — grita congestionado.

 

E tem, porque sabe de cor as vírgulas e as peripécias. Outro dia chegou mesmo a ir a Paris, só para ver num parque público o banco onde uma heroína qualquer deu um beijo ao namorado. Entra esbaforido na estação da Vila, pede um bilhete, e ai vai ele. Chegou lá, não quis saber de mais nada:

 

— Faça favor: onde é o Bosque de Bolonha?

 

Olhavam-no todos como quem olha um fenómeno, mas sempre lhe disseram.

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Parecia um tiro pelas ruas a cabo. Ao fim duma hora de caminho, chegou ao sítio. Examinou, calculou, andou, virou, tornou, até que deixou sair do peito um arranco de triunfo:

 

— Foi neste!


— Neste, o quê?!

 

Ele então explicou. Assombrados e cépticos, os de lá puseram-se a rir. Felizmente que o romance estava escrito em francês...


E como alguém duvidasse, já não do juízo do homem, mas de tudo se ter passado mesmo, mesmo naquele banco, o Senhor Varatojo mostrou a página do livro, tirou do bolso do colete o relógio, e provou:


— A cena passa-se no dia 24 de Agosto, às quatro horas. Ora bem: estamos a 24 de Agosto e são quatro horas em ponto. O banco onde os dois se sentaram tinha sombra. Não há mais nenhum com sombra. Portanto...


Meteu-se outra vez no comboio, cabeçudo, e retomou as suas funções, sentado à secretária, sempre com as virtudes do povo na ponta da língua, a garantir que Camilo é o cronista do Reino, e a confessar que vai todas as noites ao jardim da Carreira ouvi-lo sobre política, religião e literatura. Ainda não encontrou fonte onde bebesse com tanto gosto...


Os contribuintes pagam a décima e riem-se. Que diz o Senhor Varatojo!? O Camilo! O Camilo levou mas foi uma grande coça na Senhora da Azinheira, outra na Senhora da Saúde, outra na Senhora dos Remédios... Fazia-se fino!


Engole em seco e muda de conversa. Como é também da mesma laia, capaz de cobiçar a mulher do próximo e varrer uma feira a estadulho, não insiste. Sabe muito bem que vive entre irmãos que não mudam de camisa para esbofetear o mais pintado, seja ele o autor do Amor de Perdição, mas que também lhe tiram o chapéu, caso o mereça. Fracos em letra redonda, sabem todos honrar a grandeza verdadeira. E a prova é que lá o têm, a esse trágico inventor de tragédias, entronizado no coração das fragas, a receber o carinho eterno da terra onde foi menino e génio. Bateram-lhe realmente nas romarias, mas deram-lhe o maior bem que se pode ter:


O nome de Transmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama Reino Maravilhoso de que vos falei.

 

Miguel Torga, In «Portugal», 1950.

 

 

(1) - Em tempo - Por um comentário a este post fiquei a saber que as aves que eu identifiquei na barragem de Mairos como patos bravos afinal são corvos-marinhos. As minhas desculpas.

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