Treze Contos do Mundo que Acabou
Conto III
Um macho de cem moedas
- Do céu te venha o remédio! - sentenciava agoirenta a Ermelinda Landainas, sabedora do génio estuporado do Avelino.
- Não cuides que te livras assim da santa obrigação, que quem boa cama fizer, nela se há-de deitar. Bem, a verdade tem um caminho, se ela não se tem posto a jeito, nada disto tinha sucedido. Parecia que andava levantada à cainça, de roda de ti como traça de roda da candeia, e quando a cabeça não presta é o corpo quem nas paga. Mas agora mais te vale ires ter com o pai, às boas, antes que o saiba por outros e dê cabo dos dois. Olha que ele não é bom de assoar! Eu lá botarei uma mão no que puder.
Bem sabia o Ramiro que não adiantava chorar. O que estava feito, feito estava, e quanto mais cedo levasse a rapariga ao altar mais depressa calava as bocas do mundo. Assim o Avelino estivesse pelos ajustes.
Até aí, bem lhe tinha corrido, que as moças casadoiras no povo, mesmo sabendo que ele não era coelho de um toco só, pelavam-se por um belisco ou um apalpão. Ainda que muito barafustassem ou se fizessem rogadas, certo é que coravam de gozo sempre que ele lhes roubava um beijo, à conta de as ajudar a erguer o cântaro da água ou o braçado da ferranha. Para mais, um moço destes, gerigoto e afeito ao trabalho, com bens ao luar, não era partido que se enjeitasse.
E não foi coisa que não pesasse na decisão do Avelino. Como assim, mais cedo ou mais tarde a rapariga tinha de lhe sair porta fora, e se havia de ser atrás das falas mansas de algum lapantim sem eira nem beira, antes com este que não se enojava de botar a mão a qualquer serviço da lavoura, e o pai trazia vacas ao ganho e pessoal à jeira o ano todo.
- Isto de terem posto o carro adiante dos bois é que se escusava bem... Se a mãe, que Deus tenha, fosse viva sumia-se com a vergonha! Eu bem sei o que eles precisavam, ambos...
Esse engulho não lho tragavam os gorgomilos, ainda que a Ermelinda, com firmados créditos de alcoviteira, tentasse dourar a pílula:
- Deixa lá, homem, que serviço feito não mete pressa! Andais com a boda para a frente enquanto a barriga lhe não sai, e alma até Almeida. O que se quer é que a Senhora do Ó lhe dê uma boa hora e o crianço venha a nascer escorreito. O tempo é um poço sem fundo, tudo esquece...
Dali em diante, a Adélia quedava-se mais por casa, na lida da cozinha e a acomodar a fazenda, não dando ensejo a que as outras tivessem ocasião de puxar pelo fio à meada, que penas que não são vistas não são lembradas, e bem sentia que dos olhos de algumas a inveja faiscava como chispas à boca do fole. Por vezes até os dentes se lhe riam, sozinha de volta dos potes, só de pensar no que correram e fizeram, com rezas e cartas deitadas pela Marquinhas da vila, e afinal só ela tinha levado a água ao moinho. Guardado está o bocado para quem o há-de comer... O Ramiro é que passou a dançar consoante a música. Se cruzava com alguém na rua ou entrava na taberna, cara alegre e coração ao largo. Se os caminhos eram os da noite, olho vivo e pé ligeiro, mão no bolso a apertar o ferro, percatado de algum mau encontro e a angústia sempre a roê-lo por dentro. Em que trabalhos se havia de ter metido, raios partam a sorte! Para mais, dizia-se à boca cheia que o Jacinto das Carvalhas, dado ao desprezo pela rapariga, e sabedor do rumo que as coisas levavam, tinha jurado a pés juntos que, se ela não era para ele, também não havia de adoçar a boca a mais nenhum, e que sabia muito bem o que tinha a fazer. Que esperassem, não perdiam pela demora!
- Se ele te provocar, tu não te encolhas, que aqui no povo saímos todos por ti! - gritava-lhe o Sendim, mortinho que andava por ter ocasião de ajustar umas contas velhas com os das Carvalhas.
- Cautela que o gajo morde pela calada! Com um corpo daqueles e, o mais das vezes, é à falsa fé que as prega.
Não se esquecia o Firmino da estadulhada que lhe moeu as costelas, e que nem tempo teve de ver os olhos do salafrário, tal era a confusão de gente e de paus de roda do boi, quando venceu o deles na chega de Bridães.
-Sossegai, que se vier à lã pode ser que saia tosquiado, e não há-de ser preciso meter mais ninguém ao barulho. De homem para homem não vai força de boi!
Os dias sucediam-se ligeiros e o padre Luciano deu-se pressa a tratar dos papéis, não viesse o escândalo a ser maior que a barriga da Adélia. Corridos os banhos, estava a boda aprazada para o último domingo do mês, tempo bastante para o Avelino encomendar o vinho e os cordeiros e marcar a vez no forno do povo, onde a Ermelinda ficou de os assar com batatinhas novas. O vestido branco também não tardou a passar a última prova, com as pregas bastantes para acolher discretamente o ventre que começava a empinar. A Zefa costureira poucos tinha feito em toda a vida, mas quem faz um cesto faz um cento, se lhe derem verga e tempo.
- Oh tia Zefa, acha que avulta muito?
- Não, sossega que o caso é bom de remediar, com estas preguinhas que lhe botei...E que avultasse?! Cuidas que és a primeira?
- Não, mas é por via do falatório, já bem basta o que é, e o senhor padre Luciano, coitado, foi o que mais me recomendou, que arranjasse de maneira a não o fazer passar mais vergonhas...
- É um santo homem, não fiques em cuidados por causa dele. Aos anos que tem, bem pode saber já como é a vida. Agora, às invejosas, deixa que falem, que a algumas ainda lhes há-de rebentar a língua na boca! E olha, não é por me gabar, mas há bem anos que aqui no povo não entra noiva tão bem trajada na igreja!
O fumo cheiroso do forno enrolava-se devagar nas brumas sensuais daquela manhã de princípio de outono. Quem passava, por obrigação a caminho dos lameiros, com as crias a embalar a pachorra no compasso dos chocalhos, sorvia com avidez o aroma dos assados e só lhe lembrava que seriam já os do casamento da Adélia. Era domingo, e não fora a azáfama das mulheres de roda da casa do Avelino, parecia que o povo todo se recatava por detrás de uns silêncios cautelosos, por certo à espera de poder esgrilar o passo da noiva para a igreja, sem que ela desse conta dos murmúrios à boca pequena. Daí a nada o sino chamava para a missa e as ruas animaram-se em resposta.
No adro, os rapazes puxavam umas fumaças, entre chistes e larachas que mais atiçavam o tremedoiro do Ramiro. A ansiedade não o deixara pregar olho toda a noite e o vinho emborcado de véspera, no adeus às borgas de solteiro, ainda agora lhe baldeava no estômago, a pontos de os olhos se esbugalharem na ardência dos vapores da ressaca.
- Que tal te puseste, todo embonecrado, parece que vais à madrinha, oh Ramiro!
- Deixa, que quebrar uma perna há-de ser pior! Põe outra cara, e não te aflijas que se não fores homem de dar conta do recado logo à noite, estamos aqui nós, temos de ser uns para os outros!...
- Vá, a ver se tendes tento na língua! Botai cá mais um cigarro que já me estranha a demora da Adélia...
- Se calha arrependeu-se! Vais ver que ainda não é desta que te deixas atrapar!...
A Adélia subia a rua com passos inseguros, empelouricada a custo nos sapatinhos brancos, a fralda do vestido a arrastar pelo chão, as bochechas ruborizadas da vergonha mal disfarçada e a vista pregada nas costas do pai, que seguia à frente cuidando que tapava o sol com a peneira, crendo que encobria o que já todos tinham visto. De súbito o silêncio tenso da manhã rasgou-se de alto a baixo como se o tivesse fendido um raio:
- Oh tio Avelino, cuidava vossemecê que tinha aí um macho de cem moedas, afinal acabou por lhe borrar nas barbas! Tivesse ela vergonha, cobria era a cara, que a barriga não paga a pena, já está bem empertigada! À porta da taberna, de copo na mão e os olhos raiados de ódio, o Jacinto acabava de deitar da boca para fora palavras que, bem sabia, não tinham retorno, como os zagalotes à boca dos canos de uma Sarrasqueta. Que mais dava?! Era um homem perdido. Mal entrara a porta para dentro a pedir bagaço ao tendeiro, com desculpas de ainda não ter matabichado, todos viram que já trazia um grão na asa e as intenções não seriam as melhores.
- Oh Jacinto, tu vê lá no que te vens meter...Aqui dentro não quero estrilhos!
- Tio Ivo, bote lá o bagaço e não se meta adonde não é chamado, que é melhor para todos! O que tem que ser tem muita força, e no inferno ainda há lugares de vago...
Cá fora, depressa se juntou um magote de gente, mas ninguém se chegou à frente. Porém, ao Avelino, foi como quem o cegou com sal. Engalfinhou-se nele e rebolaram ambos nas lajes da rua. Só então acorreram uns quantos a desapartá-los. Da cara de um e de outro já o sangue escorria quente e pastoso. Parecia impossível, um homem daquela idade e a força que ainda tinha!
- Anda lá grande filho da puta, que a tua sorte é eu hoje não trazer comigo com que te pôr as tripas ao sol!
- Descuide, que este não torna a faltar-lhe ao respeito, nem a si nem a mais ninguém!
Era a voz ainda ofegante do Ramiro que, em menos de um ai, tinha corrido desaustinado a defender o que lhe pertencia. O arcaboiço do Jacinto cambaleou, já sem acção, até encontrar o repouso inerte no chão. Do peito largo e robusto saía agora um fiozinho de sangue a assinalar o lugar onde a bala tinha posto um ponto final naquele desassossego.
A Adélia, com o coração mais apertado que um punho, não se conteve e desatou num berreiro patético:
- Ai, o que vai ser de mim e do meu filhinho?! Deus tenha misericórdia!
- Pára de berrar, rapariga, que sem pai é que ele não fica! Quero que todos fiquem cientes que não vai nascer zorro, que o pai sou eu! O casamento é que tem de ficar para depois. Em podendo, mando notícias. Até sempre!...
E desandou, antes que alguém fosse dar parte à Guarda Republicana.