Quem conta um ponto... Por João Madureira
Diálogos perspicazes com final pouco feliz
Um pouco por desfastio intelectual, passei cerca de três minutos a contar ao R. uma história que me tinham contado acerca da compreensão humana – aliada a um instinto quase animal do labor político –, de Salvador Allende. Situação que chegou a suscitar sentimentos contraditórios nada fáceis de resolver pelos seus correligionários e pelas forças da ordem. Sendo já presidente, um homem desfilou à sua frente numa manifestação levando um cartaz insólito: “Este é um Governo de merda, mas é o meu Governo.” Allende levantou-se, aplaudiu-o e desceu para lhe apertar a mão.
R., após uns longos minutos de mutismo reflexivo, virou-se para mim e pronunciou: “A minha avó sempre me disse para desconfiar dos homens que contam boas histórias.”
O L., claramente irónico, soletrou várias vezes a palavra maravilha e, por fim, suspirou: “Depois de te ouvir falar estou para aqui todo arrepiado. O que por aí vai de hipocrisia e ilusão. Valha-me Nossa Senhora”, rematou ele que é um ateu não praticante.
Ao que o F. aduziu: “Tenho saudades dos tempos em que não dizias nada para teres sempre razão.”
“O silêncio dos humanos não é a ausência de fala, é, antes, o dizermos tudo sem articularmos uma só palavra, por muito singela que seja”, retorqui o L.
“Porra”, disse eu, “deslumbraste-me. Poucas vezes te ouvi falar tão bem. Fiquei mesmo cheio de inveja da tua eloquência.”
O R., armado em bom, ripostou: “Eu tenho muito medo da inveja. Pois a inveja é a mãe de todos os vícios.”
“Tu por vezes assustas-me um pouco com a tua lógica”, disse eu. E continuei: “É a vida. E na vida ninguém está para ficar. Aqui só se está de passagem.”
“Na vida e no Governo”, lembrou muito bem o R. A seguir tentou armar-se em apoiante crítico do novo governo e soletrou a modinho: “Coitado do Pedro Passos Coelho, quando pensava que, com as medidas de austeridade, tinha ganho a manteiga para pôr no pão, faltou-lhe o pão… E o alho que agora está muito na moda.”
“O homem embandeirou em arco com o vitória nas eleições legislativas, mas agora anda caladinho que nem um rato, pois descobriu que a crise internacional era mesmo verdadeira”, lembrou lucidamente o F.
Então, de repente, saiu-me esta brilhante metáfora, que de certeza li em algum lado: “Não se sobe às árvores pelos ramos”. Bem, confesso, esta minha tirada deixou-os boquiabertos.
Depois de mais uns momentos de silêncio expectante e reflexivo, o L. resolveu elogiar-me com a sua fina ironia: “Talvez seja a experiência da escrita quem te confere essa grande dimensão de visionário de província. E o facto de estares comprometido com o sistema que tanto criticas é que te permite uma ironia interessante.”
Eu que sou homem que não me deixo calar com duas tretas, mesmo que sejam verdadeiras, o que não era, manifestamente o caso, elevei o tom do discurso: “Ignatus, o célebre personagem do romance Uma Conspiração de Estúpidos escreveu, numa carta que pretendia servir como pagamento de uma viagem de táxi, o seguinte: «O universo, é claro, baseia-se no princípio do círculo dentro de outro círculo. De momento encontro-me num círculo interior. É evidente que também pode haver círculos mais pequenos no interior deste círculo.» Apesar da excelente visão do mundo, o motorista obrigou-o a pagar a viagem em dinheiro. Esta é a dura realidade da vida dos autênticos escritores e pensadores.
“Tu”, disse eu virando-me para o L. “és o típico homem justo numa sociedade injusta.” Ao que ele retorquiu: “Era a ti quem as irmãs adoravam porque costumavas ganhar todos os santinhos por saber o catecismo.”
Então resolvi ser mesmo maroto. “Pelo menos não me deixo transformar num idiota que só gosta de televisão, de carros novos e de comida congelada. Nem ando no psiquiatra. A psiquiatria é pior do que o comunismo, lava-nos o cérebro. E eu não quero ser um robô. Eu sou um homem simples.”
Reconheço que fui indelicado, porque o L. anda a ansiolíticos por causa de uma depressão. Mas estava mesmo a pedi-las. E, por vezes, o pensamento é bem mais rápido do que as conveniências. Além disso, o que está dito, dito está. Mas, mesmo assim, fiquei com pena do L., pois naquele momento era a imagem de um guerreiro vencido, sem guerra e sem tropas. Como escreveu Mia Couto acerca do barbeiro Arcanjo Mistura, naquele momento eu próprio fiz o papel de cegocêntrico. E por isso me penitencio.
João Madureira