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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

28
Jul11

O Homem sem Memória (60) - Por João Madureira


 

Texto de João Madureira

Blog terçOLHO 

Ficção

 

60 – Ele apareceu. Ela não. Nunca se sentiu tão triste. Foi para o seminário e escreveu-lhe uma carta que intitulou como Primeira Epistola de José à Sua Namorada. Rezava assim: Esperei-te mesmo antes de te esperar. Esperei toda a noite que amanhecesse. Esperei toda a manhã que chegasse a hora do almoço. Depois esperei pela hora da saída dos estudantes do Liceu. O tempo não passava como era habitual. E, decorridos os dez minutos que se demora a chegar ao jardim, desesperei. Esperei mais um pouco. Esperei outro. E outro ainda. E tu não apareceste. Apenas alguns pares de namorados sorridentes, de olhos brilhantes, a chilrear como pássaros ao sol, com as mãos saltitantes e com as bocas sequiosas, é que se passeavam na minha frente numa felicidade que me magoou até à alma. Pareciam querubins. Mas tu não chegavas. Tu, definitivamente, não chegaste. Desesperei mais um pouco e como, irremediavelmente, não apareceste, voltei para o seminário. Não consegui jantar. Os padres vieram ter comigo ao quarto e perguntaram-me se estava doente. Disse-lhes que não. O que era mentira. O que eu sentia era doentio. Só podia ser. Não está bem de saúde quem sua porque pensa numa mulher, ou quem chora porque não ouviu a sua voz, ou quem se desespera porque falhou um encontro. Não se encontra no seu perfeito juízo quem faz juras de amor a Cristo na cruz pensando exclusivamente na namorada. Não se encontra nada bem quem pensa vender a sua alma a Lúcifer em troca de conquistar a mulher cobiçada. Poucas vezes me senti tão mal. Nem depois da operação às amígdalas. Perguntaram-me os pinguins do seminário se tinha, por alguma razão especial, iniciado algum jejum espiritual. Disse-lhes que sim. E não menti. Se na noite anterior tinha adormecido como um santo, nesta dormi como um demónio agitado. Não sonhei contigo. Sonhei com a tua ausência. Eu, que ainda não tinha conseguido incorporar-te na minha consciência, comecei a sofrer a tua ausência. E isso é como estar doente antes de o estar. Eu, que ainda mal comecei a adorar o teu sorriso rápido e claro, a estimar o teu olhar doce e sincero, a amar o teu andar decidido e perplexo, o teu corpo esguio e bem esculpido, desabei em cima da minha credulidade. O amor não é um fogacho. Eu é que sou para aqui um parvo que se apaixona logo ao primeiro olhar. Uma rapariga como tu, para mim, é uma deusa. Mas eu para ti devo ser algo como um foguete numa festa de Verão. Sinto que não te toquei o coração. Eu sou para aqui um parvo a quem deves ter concedido alguma da tua amizade. Mas eu, para que saibas, não consigo ter amigos, quanto mais amigas. É estranho que nunca me tenha sentido tão só na vida. Eu que sou um solitário. Não consigo ler, não consigo comer, não consigo falar. Rezo. Mas não a Deus. Rezo para ti. Rezo porque tenho pena de mim próprio. Rezo como uma beata para que não me deixes. Tu que ainda mal chegaste à minha vida. Rezo para que o tempo passe rápido. Rezo para que apareças. Rezo para que sejas o meu milagre de Fátima. O amor entre dois seres humanos é uma coisa quase demoníaca. É uma febre de posse terrível. Penso nos teus olhos e quero-os só para mim. Quero-os fixos nos meus. Sem se poderem desviar para mais ninguém. Penso nos teus lábios e remordo-me de ciúme só de pensar que possam ter beijado algum outro rapaz.  Eles que nem tocaram nos meus. Penso nas tuas mãos e assemelho-as às da Virgem Maria que se encontra no altar da capela do seminário: alvas, frágeis, doces. Sofro porque não te tenho. Penso no teu corpo e ardo de desejo. E sofro. Sofro porque penso na possibilidade de que outro, que não eu, o possa possuir. Sofro porque não te tenho. Sofro porque te espero. Sofro porque te desejo. Sofro porque não te vejo. Sofro porque mal te conheço. Sofro porque sofrer tanto depois de um encontro com uma rapariga que mal se conhece é tão estúpido que dá pena. Sei que outros da minha condição, por amarem tanto como eu, flagelaram a sua carne com severidade. Eu não consigo. Sou capaz de morrer à fome por um ideal. Mas bater em mim próprio não consigo. Essa talvez seja uma outra forma de prazer. Perverso por certo, mas prazer. No fundo, o prazer é uma outra forma de dor. Por isso é que gememos quando atingimos o orgasmo. E quanto mais prazer temos mais gememos. É uma dor ao contrário. Antes de me sentar para escrever esta carta joguei xadrez com um colega que se tem revelado um quase amigo. E digo quase porque eu não consigo ser verdadeiramente amigo de ninguém. Bebi quase uma garrafa de vinho do porto. Perdi a partida de xadrez mas ganhei coragem para te escrever o que acabei de escrever. Peço desculpa pela sinceridade. Mas o meu compromisso com a verdade é para mim sagrado. Amo-te. Não há outra maneira de dizer aquilo que sinto. Mas sou pessoa para te dizer que a palavra não encerra em si tudo aquilo que experimento. Além de me parecer um pouco estúpida. 

 

61 – Sábado de manhã, quando o dia começava a resplandecer, quando os pássaros prolongavam os seus voos, quando as flores começavam a brincar com a luz do sol e com as cores do arco-íris, José ...

 

(continua)

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