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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

31
Jul11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Vida de Cão


 

 

Conto IV

(1ª Parte)


Vida de cão

 

          As terras pequenas, quando a história dos povos escolhe um dos seus filhos para herói nacional, assumem vaidosas a condição de berço que a divina providência quis abençoar e não mais toleram que a toponímia e a cartografia ignorem o tempo e o lugar onde a feliz conjunção astral se revelou.

 

           Bem ao invés, a aldeia de Valcovo, onde o cavalo do Apóstolo nunca perdeu ferraduras, suporta resignada o estigma de ter parido um regicida. E é tal o ar contrito e acabrunhado, de penitente na noite de Endoenças, exalado no calvário dos dias, que não voltou Deus a permitir que ali acontecesse coisa alguma que agravasse as contas que haverá de prestar no juízo final .


          As raras crianças, inevitáveis frutos dos impulsos carnais dos adultos, mal justificam a escola com que a República agradecida os quis reabilitar. Ao todo, e contando já com as que das aldeias vizinhas ali cumprem a obrigação da escolaridade, pouco passam da dúzia, matriculadas nas quatro classes.


           Quando o dois cavalos surgiu a arfar desengonçado no cimo do povo, os rapazes pararam as correrias e vieram juntar-se às três raparigas, no vão do muro onde antes fora o portão da escola, ensaiando uma saudação acanhada:


          - Bom dia, senhor professor!


          - Quem é que vos disse que eu sou o professor?


Os sorrisos, entre surpresos e envergonhados, esconderam-se uns atrás dos outros, deixando apenas passo à convicta serenidade de uns pézitos descalços, as mãos encafuadas nos bolsos das calças que, por certo, já tinham vestido um irmão maior:


          - O senhor veio no carro e parou à beira da escola, é porque é o professor.


          Esta lógica, de alto lá com ela, saída de uma cabecita russa, com dois lampiões de ranho acesos no nariz enfarruscado, acabava de mandar às urtigas o ar intrigante com que cuidara surpreendê-los.


          - Tens toda a razão, eu sou o vosso professor. E tu, como te chamas? Quantos anos tens?


          - Ando em seis. Sou Fernando.


          - Eu é que tenho a chave da escola! - avançou a Adelaide, reassumindo o protagonismo que lhe era devido pelos seus doze anos,  justificados por várias repetências.


          - Antes de entrarmos, gostava que vocês me mostrassem a aldeia, o sítio das vossas casas, a capela e tudo o mais que vocês entenderem, pode ser?


          O acanhamento depressa deu lugar à iniciativa orgulhosa de cada um conduzir o grupo conforme a rua e a proximidade da sua casa. Nunca, em tantos anos, a Dona Carminda saíra da escola para conhecer o povo ou as casas onde eles faziam vida. A tabuada, os ditados e as cópias, que ela usava como armas de arremesso contra o analfabetismo congénito, com a mesma força e pontaria com que eles jogavam pedradas às cabras tresmalhadas, e a palmatória dos sete olhos com que lhes forçava as portas estreitas do entendimento, faziam de todas e cada uma das manhãs um pesadelo que só alguns poucos superavam com aproveitamento. E quando o sistema esgotava de vez a obsessão de os desemburrar, voltavam livres às fragas e aos ouriços dos castanheiros. Toda a vida assim fora. Agora, esta de começar o primeiro dia de aulas a laurear pelas ruas do povo sem, nem ao menos, ter posto o rabo nos bancos das carteiras ou os olhos na ardósia empoeirada, trazia água no bico...


          A meio da manhã já cada um ocupava o lugar que o professor os deixara escolher, classes e saberes fora de consideração, e a todos foi distribuída uma folha lisa e um lápis para desenharem o que lhes viesse à ideia. Ainda assim sobejavam carteiras, as mais desengonçadas e sujas, com tantos anos de uso como o velho edifício da escola. O Fernando sentou-se sozinho ao fundo, usando o lápis como se, em toda a vida, não tivesse feito outra coisa. O Gilberto sarandava pela sala, numa irrequietude que contrastava com o silêncio e compostura dos demais, e, o muito que conseguiu do lápis foi esmagar-lhe o bico afiado e rasgar com ele a folha em tiras. Já no primeiro diagnóstico da oralidade tinha dado mostras de domínio da linguagem muito abaixo do normal para a idade. Eram mais os guinchos onomatopaicos que as palavras inteligíveis, e, quando os outros se riam de troça, respondia com olhares agressivos, como bicho eriçado à defesa.

          Começava assim o segundo ano de exercício do jovem mestre-escola, com as estratégias pedagógicas aprendidas no curso do Magistério Primário ainda frescas, a exigir o confronto voluntarioso e obstinado com a realidade. Acreditava estar ali por vocação e, depois do primeiro contacto com aquelas crianças e com o lugar onde vegetavam, começou a sentir que não tardaria a apaixonar-se pela missão. Mal acabou de recolher os desenhos, onde as mãos já domadas dos mais velhos tinham tentado representar invariavelmente o sol, as nuvens, uma casa de chaminé fumegante e dois pássaros de asa aberta riscando o azul do céu, separou os quatro trabalhos dos iniciados, incrédulo com o que via. O pouco que restava da folha do Gilberto, outras duas atravessadas por riscos negros do lápis que não obedece ainda à vontade da mão e, na última folha, a traço seguro e equilibradas proporções, um quadro descritivo da aldeia, com as suas ruas e casas, o tanque, a capela, o cemitério e, em destaque e pormenor, a máquina que o Presidente da Câmara tinha mandado para que desse um jeito na estrada antes das eleições. No resto da manhã não conseguiu deixar de passar os olhos, vezes sem conta, ora pelo Fernando com o ar sereno e autosuficiente que a farpela, pouco menos que andrajosa, persistia em contradizer, ora pelo desenho dele, mais atribuível a um pintor naif na madurez da produção do que a uma criança rota e descalça no primeiro dia de escola. Decididamente, não era possível!


          - Fernando, o que fazem os teus pais?


          - O meu pai e os meus irmãos andam com as ovelhas e a minha mãe está em casa.


          - Oh senhor professor, o pai dele é o coveiro, e a mãe deixou-o, que ele é muito bêbado e dava-lhe mau viver...-  apressou-se a rectificar a Adelaide.


          - E as irmãs estão ambas par Espanha, na vida... -  já agora, por que não contar a história toda como ela era, arriscou o Joaquim.

          - Quem é que te ensinou a desenhar, Fernando?


          - Não foi ninguém. A mim deu-me para fazer assim.


          Naquele instante, o professor Silveira tomou a decisão inconfessável de dedicar àquela criança o melhor da sua atenção, sem no entanto lhe ensinar o que quer que fosse. Havia dentro daquele pequeno ser uma semente que precisava apenas de ser acarinhada para produzir frutos de sabor insuspeitado. Guardaria para si o segredo, não fosse o diabo tecê-las, e aparecer-lhe por ali o inspector a chamá-lo à responsabilidade quanto à assumida negação do sagrado ofício pedagógico.


          As manhãs brumosas de Outubro fluíam entre a agitação motivada dos miúdos e a insatisfação constante do professor, as pantomimas zoomórficas do Gilberto e as surpreendentes respostas do Fernando. Passados os Santos e o Dia dos Fiéis, a primeira geada de Novembro veio colocar um problema a que a aritmética não dava solução -  era preciso aquecer a sala, para que todos pudessem suportar as horas de inactividade física com o mínimo de aconchego, e o frio não tomasse conta daqueles corpitos mal agasalhados. O fogão de ferro ao canto da parede, com o seu tubo negro do chupão a vazar o tecto, aparentava nunca ter visto lume. Pelo menos a Adelaide garantia que, nos seis invernos que passara sentada ao lado dele, nunca de lá saíra calor que lhe desengaranhasse as mãos. Mas, para tudo há uma primeira vez, e certamente a novidade haveria de reforçar ainda mais a motivação pela escola.


(continua)

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