Treze Contos do Mundo que Acabou - Cabrito por lebre
Conto VI
Cabrito por lebre
O melro esvoaçou contrariado, a ladainhar uma melopeia de protesto com a corneta amarela do bico, e foi esconder a lustrosa fatiota negra na espessura fortificada de um silvado. Sempre queria ver se o safado do cadelo arriscava uns arranhões naquele focinho coscuvilheiro, só para mostrar serviço a quem lhe garantia o caldo. Mas não, afinal o que ele farejava como um possesso era o rasto fresco do laparoto desprecatado que ousava retouçar àquelas horas da matina, em plena luz do dia, confiante na orelha apurada e no costumeiro desembaraço das canelas. Não lhe tinha bastado dançar o saricoté toda a santa noite, a rapar covinhas no chão macio da vinha e a semear cagalhetas como azeitonas miúdas no musgo seco das fragas, sem nenhum respeito pelo sossego dos outros bichos, e ainda se sujeitava agora a que a escumilha fumegante de uma escopeta lhe furasse o casaco, só pelo desfastio de desembotar os dentes no viço fresco de uma leituga. E não tardou um credo que a cantoria esganiçada do podengo lhe pusesse as molas das pernas em sobressalto pela rodeira acima.
Caim, caim, caim! Pum!
- Traz cá, Faísca!
O eco da descarga bombardeira ressoou pelos cabeços, onde o sol morno afagava já a folha miudinha das urzes, até ensurdecer na úmbria fria em que a corga se despenha numa alvíssima e rumorejante cascata. Alvorotado, um perdigão, roliço de peitos e arrebitados esporões cor de lacre, entendeu que era altura de espenejar os voadouros e pôr-se a bom recato, enquanto cacarejava repetidos chamos ao resto do bando que debicava o buço verde de um centeio mal acabado de nascer, por entre o penteado dos regos da semeada. Pintchó, pintchó, pintchó… E foi o bastante para a debandada se precipitar encosta abaixo, primeiro num matraquear frenético de asas, logo mais, uma dúzia de sabres rasantes a fatiar o ar frio da manhã.
Pum, pum! Uma perdiz separou-se do bando e começou a subir na vertical, como se quizesse perfurar a manta azul do céu. De repente, a vida abandonou-a e deixou que se desamparasse no vazio da queda, até explodir num farfalhudo depenadouro contra a folhagem áspera de uma carqueja.
- Encastelou! Viste onde bateu, Adérito?
- Não, mas estou em crer que a minha cadela já deu com ela. Boca lá Catita, boca!
- Vamos sobre as outras, antes que se ratem a pés para dentro do giestal grande!
Era ali que melhor resistiam à implacável perseguição dos caçarretas, acolitados por uma seita de rafeiros escanzelados, a quem a justeza do fato deixava as costelas mais onduladas que o fole de um harmónio, e permitia devassar qualquer nesga de mato, por mais cerrada ou puada que fosse. Ainda assim, só mesmo os coelheiros de cerdas duras e despenteadas gastavam as horas a chocalhar os guizos naquele labirinto, mas faziam tal restolhada que era muito raro alguma deixar-se surpreender. Mal se ratavam para debaixo das giestas, parecia que a terra as engolia. E de que outro jeito se podia guardar semente bastante que garantisse os bandos novos para o sacrifício ritual do Outono seguinte?
- Aqui não paga a pena perdermos mais tempo. Vamos antes caras ao povo, que ainda ontem a minha mulher diz que dera fé da cama de uma lebre, ao passo das crias à beira da cavada do Freitas.
- A este bando, bom era que não se lhe tirasse mais nenhuma, para no ano que vem, se o Maio não sair muito trovoado, termos aqui um bom talho delas…
- É questão de não voltarmos cá nós, que outros de fora, que eu tenha sentido, não as têm estourado. Sossega, que não é qualquer um que tem arcaboiço para estes matos tão ruins de andar!
Da tal lebre, é que nem sinal. Lá estava, de facto, a cama aconchegada no meio de uns fanancos secos, mas a orelhuda andava ao pão grande. Ou que tivesse pressentido os cães, ou que lhe apetecesse aquecer a samarra na outra chapada mais virada ao meio-dia, certo é que nem o trepar minucioso nem o farejar insistente a fizeram saltar a tiro.
Já os dois davam a manhã por bem empregue, cada qual com sua peça à cinta, quando um lebrão tamanho como um chibo arrancou desaustinado de trás da mureira de estrume, direito à eira do Pispalhas, onde a tia Clorinda, sentada no banco dos recos a aproveitar o regalo morno do sol, fiava um cibo de lã com que fazer uns carpins para o neto mais novo, enquanto as pitas esgravatavam os grãos perdidos da última malhada.
- Oh tia Clorinda, saia-lhe ao caminho, não deixe que se escape!
- Pois bem, eu atrás dela não vou, que as minhas pernas não querem. Olhai lá, vós não lhe atireis comigo aqui, e tende-me cautela com as pitas!
- Não, esteja vossemecê tranquila que daqui ninguém dá fogo. Agarra Faísca, vai-te a ela!
Quando se viu em tais apertos, com a fúria da canzoada cada vez mais em cima dos jarretes e o vulto negro da mulher a brandir a roca como se lhe quisesse vazar os olhos, o bicho deu um quebro súbito à longueza das pernas e enfiou decidido pelo buraco da porta da corte, como se tem visto fazer aos gatos quando se aprestam a murar a rataria. Mais um pouco e os excomungados dos cadelos a ferrarem-se-lhe nos quartos. E agora?
- A senhora abra-lhe a porta aos cães e afaste-se para trás da parede, que a lebre ou sai ou diz porque não sai, e, quando tal, já podemos dar fogo à vontade!
Dito e feito. Corrido o garabelho de pau de freixo que mantinha a porta trancada, entraram os cães de rompante na escuridão da loja, provocando tal alvoroço e desassossego na rês, que foi obra de um instante o cabrito do tio Adelino Pispalhas sair aos pinchos a esbarrar-se na chumbada ainda embolada que o gatilho nervoso do Adérito acabava de despedir…