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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Set11

Intermitências - Ainda há potes ao lume em Trás-os-Montes


 

 

Ainda há potes ao lume em Trás-os-Montes


A geração nascida no pós 25 de Abril lembra-se vagamente dos potes ao lume. Junto às lareiras das cozinhas das minhas avós, lá estavam eles: numerosos, imponentes, sujos de cinza e senhores do seu lugar, a ferver as batatas, as couves, as linguiças e as orelhas de porco.


- “Não sabes o que é bom!”, dizia-me o meu pai, enquanto eu acompanhava a minha insossa batata de uma fatia de fiambre pensando como era possível uma alma, seja de que tempero e por que frio fosse, gostar de uma carne peganhenta, esponjosa e… branca. “Quando era pequeno, também não gostava de couves!”, argumentava o meu pai, exibindo-me o seu garfo, que segurava uma generosa folha verde fumegante, ainda a escorrer água.


- “Agora é tudo assim… Habituam-nos mal!”, metia-se a minha avó. E logo continuava: “No meu tempo…”


Pois no meu, “graças a Deus”, já se comiam Suissinhos, Chocapics, Bollycaos, Tulicreme, pastilhas Gorilla, gelados Perna de Pau e Calipos, batatas fritas Matutano, pudins Boca Doce… E a lista bem podia continuar para confrontar e amaldiçoar os frigoríficos das minhas avós, quando em busca de um reconfortante prazer, a única coisa comestível que encontrava era uma manteiga Planta, um doce de abóbora e, de longe a longe, um pedaço de queijo flamengo. “E eu é que não sei o que bom…”, pensava para com os meus botões, discretamente sentada no escano, não me fossem obrigar a ingurgitar a “carne gorda” e as couves com a técnica do “não sais da mesa enquanto não acabares o que tens no prato”, o que acontecia frequentemente com sopa e tudo o que envolvesse legumes e a fruta sem brilho do quintal.


Volvida mais de uma década, não me imagino a passar um Inverno sem couves e grelos, uma Primavera sem cerejas, um Verão sem alface e um Outono sem maçãs, uvas, castanhas e os “carecas” do quintal do meu avô. O que mudou? Tudo e nada ao mesmo tempo. As coisas só têm a importância que lhe atribuímos. No que ao estômago diz respeito, “as notícias do país e do mundo” mostram que o que “está a dar” é a “agricultura biológica” e tudo ganha mais sabor. Certamente uma grande confusão na cabeça das minhas avós, que toda a vida só praticaram o que hoje chamam “agricultura biológica” que não é nem mais, nem menos, do que… agricultura. Faltava-lhe apenas devolver-lhe o natural valor que outrora tinha e que as gerações anteriores à nossa davam, num tempo em que não havia tomate espanhol, leite romeno, banana chilena importada de avião ou “fruta de beber”.

 

Fotografia de Sandra Pereira


Já falando de gerações, mesmo que todos saibam que não há melhores ou piores, porque são diferentes, a conversa do “no meu tempo” volta sempre. “Porque antes ninguém morria de bactérias com nomes esquisitos e envelhecia-se com saúde”, dirão uns. “Porque antes não se comiam prazeres tão variados e saborosos como crepes de chocolate com uma ou duas ou três(!) bola(s) de gelado ou generosos hambúrgueres, e poucos saberiam definir a sensação de fartura ou a de jantar num restaurante”, dirão outros.


A problemática geracional, que tantas vezes gera incompreensões, amarguras, mágoas, rejeições, separações e até ódios, não é uma questão de perspectiva. É apenas uma questão de valor. E de amor. Cada geração ama o seu tempo porque já o viveu e acredita que a seguinte ainda não o viveu, mas tem de o viver. Só que “cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi”, resume o nosso génio nacional Fernando Pessoa. No final todas as gerações cometem um mesmo pecado: esquecem-se de valorizar o presente.


Hoje devoro couves (mesmo sem azeite), tal como o meu pai, que também ele não gostava delas quando era miúdo. Saboreio uma bela posta à transmontana de faca afiada como nunca algum dia sonhei ser capaz. Bebo vinho transmontano com deleite (quem diria?). Olho para a veiga flaviense com ternura, admitindo que um dia até poderei aqui envelhecer. Ouço as histórias agridoces e “malaguetas” da aldeia, dos bailaricos, da tropa, da guerra em África, da emigração “mala de cartão” para França, EUA, Suíça, e as dos “retornados” com genuíno interesse. Paro para acenar a conhecidos quando tropeço nos acasos da vida – “Ainda te lembras de mim? Da última vez que te vi, eras assim, pequenina. Agora estás uma mulher! E os teus pais estão bons?”.


E no entretanto, a minha geração procura dar rumo(s) à vida e um futuro ao estado de coisas. Afinal as gerações anteriores à nossa dizem mais de nós do que aquilo que queremos acreditar.

 

Sandra Pereira

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