Flavienses e Gaúchos
Há dias pediram-me fotos da Feira dos Santos. Como não tinha as fotos ali à mão de semear, disse à pessoa que mas pedia que era fácil aceder a elas, pois bastava fazer uma pesquisa na INTERNET (por imagens) e de certeza que apareceriam algumas. Como ali ao lado tínhamos acesso à NET, acedemos e exemplifiquei. Claro que apareceram muitas imagens da Feira dos Santos, entre as quais algumas minhas a ilustrar posts deste blogue mas também de outros blogues e páginas. Dei uma vista de olhos breve a essas publicações, no entanto houve uma que prendeu a minha atenção, à qual não resisti a uma leitura mais atenta. Achei-a curiosa, logo pelo título, mas depois ainda mais curiosa por ter sido escrita por um antropólogo brasileiro que passou em estágio de mestrado pelo Pólo da UTAD em Chaves e que levou uma ideia do nosso ser flaviense, transmontano e português cuja identidade (de idêntico) colou à sua terra natal no Sul do Brasil, também terra de raia.
E tal como o autor me “roubou” algumas imagens para ilustrar o artigo eu agora pago-lhe com a mesma moeda e “roubo-lhe” as palavras para o post de hoje. Fica o artigo na íntegra, apenas lhe altero as imagens, feitas com imagens de arquivo deste blogue. Vale a pena ler.
Portugal de muitos sabores, ou o que comem gaúchos e transmontanos?
Written by admin on janeiro 16th, 2011
Convido a conferir o artigo de Maurício Dias Schneider, estudante do Curso de Bacharelado em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), realizando estágio de mobilidade acadêmica junto à Universidade de Trás-os-Montes e Alto D’Ouro (UTAD), campus de Chaves.
Enviado pela prof. Dra. Renata Menasche/UFPel.
Portugal de muitos sabores, ou o que comem gaúchos e transmontanos?
Para além do bacalhau com batatas e do Manuel da padaria, que muitas vezes povoam o imaginário de nós, brasileiros, Portugal é uma festa de sabores que compõe, juntamente com ritmos, sotaques, tradições e identidades muito diversas, a mágica desta adorável terrinha. Um país pequeno em extensão, mas que abriga uma notável diversidade cultural, com pessoas e grupos que criam distintos modos de viver, fazer, pensar e responder à natureza que os circunda.
No extremo norte do país, dividindo a fronteira com a Espanha, situa-se a região de Trás-os-Montes, montes esses que separam o litoral português do interior do país e da Península Ibérica. Morando por alguns meses nessas bandas, foi-me inevitável traçar comparações com os pampas gaúchos do sul do Brasil, de onde sou oriundo.
Em primeiro lugar, e mais obviamente, destacaram-se as situações fronteiriças com países hispânicos, ou de influência cultural espanhola. Argentina e Uruguai, no caso do Rio Grande do Sul, e a própria Espanha, no caso de Trás-os-Montes.
Em segundo lugar, a imagem de “rudes” e “grosseiros” que deles fazem aqueles ditos “mais civilizados”, de Lisboa ou de São Paulo. Nas duas regiões, é comum o apelo às expressões que remetem à exacerbação da masculinidade, por exemplo. As afirmações, muitas vezes ouvidas, de que os “transmontanos são os melhores” ou que são “homens de verdade” – estão aí geralmente incluídos os vizinhos galegos, que, apesar da barreira política, identificam-se culturalmente. Cabe observar que, historicamente e a despeito da formação dos dois estados nacionais, a zona “galaico-transmontana” se apresenta como uma unidade, desde a formação da província romana da Galécia, com capital em Santiago de Compostela. No que concerne a esse aspecto, as regiões de Portugal e Brasil aqui destacadas foram igualmente cortadas por barreiras políticas que desconsideraram por completo as identificações culturais com os hermanos, relegados ao lado “de lá” das fronteiras – no caso do Rio Grande do Sul, a menção é ao Uruguai e à Argentina, que habitam o mesmo pampa.
A cidade de Chaves, além da rica gastronomia, é um ponto privilegiado de observação da relação de contato e identificação cultural entre a Galiza e Trás-os-Montes. Como zona de fronteira ou raia (barreira porosa, com pontos de passagem, segundo a definição dos nativos), no passado vivia do contrabando e atualmente, juntamente com Verín, cidade vizinha, é uma das primeiras euro-cidades da Comunidade Econômica Européia.
No que diz respeito propriamente à comida, assim como os gaúchos, os transmontanos têm por base de sua alimentação muito mais as carnes vermelhas do que o peixe, distinguindo-se, assim, de outras zonas portuguesas, sobretudo o litoral. Isso não significa que não apreciem os frutos do mar, tais como camarão, polvo ou sardinha, presentes nas festas de São Martinho, quando é celebrada a colheita da castanha.
Também o bacalhau não pode faltar, feito de múltiplas formas, como as deliciosas receitas com natas, à Brás, ou à Gomes Sá; no Natal é indispensável, porém aí cozido em postas e acompanhado de couves e batatas, também cozidas.
Apesar de não se restringirem a ela, a tradição do consumo de carne em Trás-os-Montes possui uma grande força. Em Miranda do Douro encontra-se uma raça única de gado, o mirandês, e Montalegre organiza periodicamente as chegas de bois. De outubro a janeiro, em toda a região, são produzidas as alheiras ou enchidos (embutidos), feitos com carne de porco – ou, alternativamente, pão, aves ou coelho (opção de judeus para, à época das perseguições da Inquisição, evitar sua identificação a partir da interdição religiosa do consumo de carne de porco) – e postos para secar à fumaça das lareiras, no inverno. (brigas)
Em Chaves se produz o tradicional Pastel de Chaves, com recheio de carne e o Presunto de Chaves. Além das carnes, ali há também a tradição na produção de pães. Comem-se ótimos pães de Chouriço no João Padeiro, assim como os fulares transmontanos, feitos de uma massa com ovos e recheados de linguiça e chouriço.
O consumo e a produção de carnes vermelhas em Portugal, no entanto, não está restrito à região de Trás-os-Montes. Lafões, por exemplo, possui Denominação de Origem Protegida (DOP) de sua vitela, enquanto que o Alentejo é grande produtor de gado, além de berço do cozido à portuguesa (prato composto por variedade de carnes e legumes), apreciado em todo o país.
Anualmente, Chaves também é palco de uma feira de gado e concurso de pecuária, realizados durante a festa dos santos. Nessa altura, também ocorrem mostras folclóricas, tais como concertinas, arruadas de gaiteiros e ranchos folclóricos e uma enorme feira de comércio de rua – uma das maiores do país – onde se vendem roupas e artesanato, entre outros artigos, e onde se reúnem milhares de pessoas, entre ciganos, equatorianos, africanos e, obviamente, galegos. O hábito das feiras é comum em todo o país: todas as cidades, semanalmente, expõem suas feiras de rua.
Quanto à produção de vinhos e azeites, é na região de Trás-os-Montes e Alto Douro onde se produzem os melhores azeites de Portugal, além dos renomados vinhos do Porto e do Douro. Todavia, nessa região também se aprecia um bom vinho alentejano, bem como o vinho verde (feito de uva não maturada). Mas não só nas quintas mais famosas e próximas ao Douro se produz vinho. Por toda a região, as famílias do campo realizam as vindimas (colheita da uva), geralmente em forma de mutirão entre os vizinhos, após o que alguns vendem suas uvas para os espanhóis (que possuem tecnologias mais desenvolvidas, porém pior clima e, portanto, uvas de qualidade inferior para o fabrico de vinhos), enquanto que outros produzem mesmo a bebida final – entre esses é ainda comum esmagar as uvas com os pés e usar o maquinário de antigamente.
Mesmo com todas as curiosas semelhanças entre gaúchos e transmontanos, como o gosto pela carne, a produção de vinhos, a posição nos respectivos países, a situação transfronteiriça de contato e identificação cultural, é impossível fugir às situações de etnocentrismos. Há que se registrar o espanto e curiosidade com que encaravam o chimarrão. Perguntando se era um chá, se servia para fumar, como um cachimbo ou tomando um gole e com uma inegável expressão de amargura, passando adiante a cuia. Também costumavam associar o mate não a uma bebida brasileira, mas sim – nem tão espantosamente – a uma bebida argentina.
Por fim, como não poderia deixar de ser, a sobremesa. A tradição doceira de Pelotas (RS) deve-se, em parte, também aos transmontanos. Muitos dos doces que vieram a se constituir em uma tradição conventual em Portugal e, muito depois, chegar a Pelotas como doces finos, surgiram nesta região. Destaque para o pastel de santa clara, popularizado em Coimbra, mas que tem por verdadeiro berço a cidade de Vila Real.
Portugal é, sem dúvida, uma descoberta gastronômica que mexe com todos os sentidos. Tem-se na comida uma verdadeira conotação de alimento da alma: além da sobrevivência do corpo, cria formas de reciprocidade e estabelece relações sociais. Por tudo, vale a pena conhecer Portugal, suas comidas e sua gente, experimentar o que cada região tem de melhor e saborear essa experiência.
Para quem estiver interessado, fica aqui a localização original deste artigo:
http://noradar.com/antropologia/?p=1396