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Acordai!
“Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz”
Neste novo ano que começa, o meu pensamento gira à volta destes versos do poeta José Gomes Ferreira, que ao som da música do genial compositor e homem que foi Fernando Lopes-Graça, é como um chamamento. Dá vontade de levantar, procurar outro rumo, percorrer um caminho diferente, encontrar outros sentidos. Acordar apenas. O mundo pode ser aqui mesmo.
Quando palavreados, receios e tempos velozes entopem e acomodam a mente, é bom acordar. Acordar apenas. Lá fora, há ideias, há movimento, há voluntários, há reaccionários, há solidários. Cofres vazios – e talvez o fim do mundo – não justificam um país esvaziado dos seus valores e cultura. Regressaram tempos de demagogias perigosas e de vendedores de ilusões, mas haverá quem acorde para recusar discursos paternalistas, moralismos hipócritas, sentidos patrióticos ridículos e nacionalismos baratos. Vive-se um clima de medo, veiculado diariamente pelo “Poder”, seja ele qual for, com a ajuda oportunista (e desesperada) dos meios de comunicação social, mas haverá quem acorde para os humanismos a alimentar com sorrisos nos lábios. Neste mundo globalizado, só é parvo quem quer.
“Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações”
Após a revolução de Abril, muitos emigrantes portugueses da geração de 60 acreditaram que o país iria finalmente acordar de uma profunda apneia salazarista e arriscaram regressar com as famílias à terra natal, convictos que agora sim, Portugal seria um lugar de futuro. Lá fora, sacrificaram pequenos e grandes prazeres da vida para juntar uns trocos, experienciaram novas formas de trabalhar e viver em sociedade, e chegaram com vontade de construir uma vida feliz num país que caminhava para a prosperidade. Resistiram até hoje, mas que ninguém lhes pergunte agora como vêem o seu país ou arrisca-se a ser fulminado por uma dolorosa mágoa. São histórias contadas pela desilusão de quem se viu incompreendido e desvalorizado pela sua própria gente. Por vezes, regressa-lhes a vontade de “dar o salto”, mas os tempos mudaram.
“Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!”
Os tempos mudaram. Vencida a salazarista, o país mergulhou na apneia mercantilista. Hoje calam-se as vozes dos que ficam a assumir as suas culpas – e às vezes as dos outros – e as dos idealistas e pragmáticos que querem salvar o barco do naufrágio, para voltar-se a infligir o estigma das “vagas” de emigrantes, que deixarão um país deserto e sem cérebro. E desde quando emigrar foi problema ou vergonha? É essa a marca mais visível do espírito empreendedor e aventureiro português desde o século XV, e é essa qualidade que nos admiram e invejam no mundo. Temos cerca de metade da nossa população espalhada pelo mundo e há sempre rasto da nossa passagem. Somos globais, somos “inteiros”, diria Pessoa.
Fotografia de Sandra Pereira
Quando uma idosa emprega os últimos cêntimos da parca reforma para comprar medicamentos e não garante ao estômago o almoço dos domingos, quando uma mulher trabalhadora aproveita um simples “bom dia” na rua para começar a contar que o desgraçado do salário já não lhe chega para estudar o filho, quando um recém-licenciado a transbordar de “inovação” é travado por burocracias, interesses instalados e mentes tacanhas sem visão nem ousadia, quando um jovem em busca de valorização profissional envia meses a fio centenas de currículos sem resposta para não se ver obrigado a resignar-se à precariedade… é preciso acordar. Sem olhar para o lado, para não cair na tentação de voltar a adormecer. E o mundo pode ser em qualquer lugar. Ou aqui mesmo.
Podemos ser globais e “inteiros” aqui mesmo. Recuperar o associativismo perdido, pensar no colectivo (que dá muito lucro ao individual), cultivar o bem-estar social e o mérito, reciclar velhos hábitos e vícios… aqui mesmo. Ou simplesmente ser solidário, diria o Zé Mário. Acordar apenas. Lá fora, há ideias, há movimento, há voluntários, há reaccionários, há solidários… há riqueza.
Fé e esperança nunca faltaram na vida dos Portugueses. É isso que merecem ouvir políticos e comunicação social que abusam tanto da Santa Paciência como das palavras “crise” e “austeridade”. Fomos educados a olhar para o Céu, mas agora exige-se que olhemos para a Terra. Aqui mesmo ou em qualquer lugar. Portugal foi e será sempre o porto de partida, de chegada e de abrigo. Em 2011, o antigo herói da Resistência francesa Stéphane Hessel acordou muito mundo com o seu grito “Indignai-vos!”. Tanto que gerou um movimento a nível mundial. E em 2012? Aqui mesmo ou em qualquer lugar, “Associai-vos!”.
Sandra Pereira




