O Homem sem Memória (104) - Por João Madureira
O Homem Sem Memória
Texto de João Madureira
Blog terçOLHO
Ficção
104 – Pressionado pela mulher, e indiferenciado pelo seu filho primogénito, que teimava em não tomar partido por qualquer das partes em conflito, o guarda Ferreira abalou para a capital do Norte na carreira das cinco com o entusiasmo de um condenado às galés.
Esteve durante quinze dias a ver onde paravam as modas. Dentro do posto reinava uma paz inquieta e nas ruas o povo manifestava-se todos os dias e a todas as horas pelas mais variadas razões. Tudo servia de pretexto para fazer uma manifestação, anunciar uma greve, sanear os fascistas, apedrejar as sedes de partidos rivais e apupar quem naquele dia não tinha saído à rua em defesa das mais amplas liberdades.
E nesta brincadeira entre revolucionários revisionistas, social-fascistas, trotsquistas, leninistas, estalinistas, maoístas e indiferenciados e destes com os contrarrevolucionários socialistas (que encobriam no seu seio, qual serpente venenosa, os social-democratas, os democratas-cristãos e alguns, poucos, liberais), a cada dia que passava a cidade ia ficando mais e mais explosiva. Então à noite só se podia sair em grupo e devidamente armado. Tumultos e confrontos havia-os em cada canto e esquina, entre os mais diversos protagonistas e pelas mais variadas razões. E até sem razão nenhuma.
A intervenção da GNR era solicitada nos mais variados locais por gente à rasca, por vezes mesmo à rasquinha, que era vítima de furtos ou via o seu direito ao descanso ser ameaçado por bandos de rufias que faziam mais vasqueiro do que uma vara de porcos famintos. Mas as novas regras ditavam que a ação da força policial, que agora estava sob rigorosa vigilância revolucionária, unicamente podia ser feita por voluntários e apenas quando estavam em causa ofensas graves à coesão social e à independência nacional, o que não era manifestamente o caso.
A esquerda considerava a GNR o último baluarte do Estado Fascista. E o povo não necessitava de que aqueles homens fardados, que sempre defenderam a ditadura e oprimiram o povo, viessem meter o bedelho onde não eram chamados. Apenas as forças armadas, especialmente as tropas do MFA, eram bem-vindas, pois era certo e sabido que em vez de atuarem se punham a confraternizar com os agitadores, pois a revolução, era certo e sabido, seguia dentro de momentos.
Postas as coisas nestes termos, o guarda Ferreira, que era o impedido do Capitão Martins, só pôs os pés de fora do quartel no momento de se vir embora definitivamente. O seu superior, que lhe devia muito jantarinho a desoras, muita inconfidência protegida e muito pecado venial encoberto, disse-lhe que era homem para propor uma promoção do guarda Ferreira a primeiro-cabo se ele se atrevesse a fazer algumas rondas pelas sedes dos vários, e distintos, partidos comunistas, partidos fascistas e partidos democratas, na tentativa de impedir que fossem invadidas por crápulas que não se cansavam de brincar com coisas sérias: a política, a segurança das pessoas e dos bens e o respeitinho que a todos era devido.
A princípio ponderou a oferta, pois sabia que era agora ou nunca que podia satisfazer a ânsia de prestígio da Dona Rosa. Como primeiro-cabo podia mesmo vir a ser chefe de posto em alguma terreola próxima de Névoa. E depois logo se veria como correria a ascensão ao ambicionado cargo de sargento, que era a categoria mais alta a que podia aspirar dentro da corporação. Ofereceu-se como voluntário, escolheu o roteiro das patrulhas e definiu prioridades. Tudo muito certinho e direitinho.
Só que na noite em que estava para sair em serviço, assistiu, estupefacto, à chegada de uma patrulha, salva por outras duas ou três das mais prestigiadas e das mais calejadas no ofício de dar cacetada, que viu o jipe em que seguia ser incendiado por jovens encapuzados, que assistiu incrédula ao roubo das suas armas de fogo e que se viu obrigada a aguentar uma carga de porrada, muito ao jeito popular, o que deixou os garbosos e destemidos agentes da autoridade à beira da morte.
Nestas circunstâncias, o guarda Ferreira pensou que uma coisa era querer ser promovido para agradar à mulher e, quem sabe, ao Capitão Martins. Outra, bem diferente, era armar-se em herói e ganhar, com a brincadeira, um baú de pau, mesmo que gratuito a heróis efémeros, uma medalha de coragem e bons serviços prestados à pátria e à democracia, fosse lá isso o que fosse, e uma pensão de miséria vitalícia para a sua mulher e para os seus filhos.
Mal entrou no gabinete do seu superior, o guarda Ferreira deu-lhe conta do que tinha visto há poucos momentos e pediu-lhe encarecidamente que o tirasse da patrulha que estava para sair dentro de minutos. O Capitão Martins, com um sorriso nos lábios, perguntou-lhe se não queria progredir na carreira, pois ou era agora que o tinha ali como amigo que as coisas se compunham, ou então bem podia tirar o cavalinho da chuva que nunca mais teria uma oportunidade como aquela. Situações revolucionárias vivem-se uma vez na vida. Ou nem isso.
O guarda Ferreira desabafou: “Foda-se, com sua licença meu capitão, mas ainda não estou pronto para morrer. Suspeito que o Jorge, aquele grandalhão de Freixo, vai desta para melhor. Ele que era homem para pegar num porco dos taludos e sozinho pô-lo no banco, está para ali a miar como um gato, sangrando das fuças como um coelho a quem lhe deram a cutilada final. E eu não estou para heroísmos destes. Eu quero andar por cá durante ainda mais algum tempo para ver crescer os meus filhos. Eu não tenho vocação para herói.”
O capitão Martins, ainda com o sorriso irónico nos lábios, olhou para o seu impedido e disse: “Tu juraste defender a ordem. E, deixa que to lembre, o nosso lema é: Pela lei e pela grei.” E o guarda Ferreira: “Isso foi noutros tempos. Agora o povo está demente. Não trabalha, berra a toda a hora, faz greve por tudo e por nada. E as pessoas dos partidos comportam-se como garotos. Colam os seus cartazes, rasgam os cartazes dos adversários, pintam paredes com os seus símbolos e com as suas palavras de ordem e apagam os símbolos e as palavras dos outros. Cada um diz que é mais revolucionário do que o outro ou que é mais democrata do que o outro. Mas, bem vistas as coisas, são todos iguais. Cada um quer que o seu partido chegue ao poder para mandar no povo e arranjar uns tachos para si e para os que melhor o serviram e servem. São todos fanáticos. Apenas se querem matar uns aos outros. E, à falta de outro inimigo mais à mão, agora juntam-se para bombar nos guardas.”
“Então desistes?”, perguntou o capitão. Ao que o guarda respondeu: “Desisto, mas desisto mesmo.” “Pronto, está desistido. Pretendes mais alguma coisa de mim?” “Sim, meu capitão, pretendo.” “Isso é que é falar. E o que pretendes tu?” “Ir-me embora. Aqui já não faço nada. Hoje perdi as esperanças em ser promovido. Por isso quero ir para a minha terrinha, que é bem mais calma do que este ninho de cucos. Lá os comunistas são meia dúzia de gatos-pingados que não fazem mal a uma mosca. Posso não ser promovido, mas também não corro o risco de ser morto à porrada ou à facada ao virar da esquina por um bando de energúmenos.” “Ao que sei por lá também são meio malucos.” “Diz bem meu capitão, são meio malucos. Mas aqui são malucos por inteiro.” “Então vejo que queres pôr-me a comer na messe dos oficiais.” “Ó meu capitão, sei que também já fez o pedido para ir chefiar o posto da sua terra. E para lhe cozinhar os pitéus peça à sua criada, pois fá-los tão bons ou melhores do que os meus. A rapariga é muito prendada.” “Ai Ferreira, Ferreira, desconfio que andaste lá por casa a sarandar nos dias em que eu e a minha esposa andávamos por fora.” E riram-se ambos e dois a bom rir. No final da conversa cumprimentaram-se como dois velhos amigos e cada um foi à sua vida.
105 - Ao fim de quinze dias o Guarda Ferreira estava ...
(continua)