Discursos Sobre a Cidade - Por Luís Fernandes
“E L E, E L A”
As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo.
O peito encolhia-se-lhe. E o coração ficava-se-lhe mais pequenino do que o de um passarinho assustado e cheio de medo.
Sentiu fraqueza nas pernas. Encostou-se ao muro, perto da esquina onde começa a ladeira do Monte da Forca.
O comboio já passava S. Fra(g)ústo, mas o seu apito estridente chegava-se-lhe aos ouvidos como eco do último grito daquele adeus desesperado e angustioso com que julgara ainda agarrar-se ao varandim da última carruagem, no instante em que esta se escondia na curva do monte.
Por ali, havia, às vezes, umas zaragatas, falava-se de umas navalhadas ou de sacholadas.
Agora toda a gente anda arrepiada com que se conta de Angola, ‘inda mais depois de se ter visto, e contado, aqueles retratos com homens, mulheres e crianças, brancos e pretos, cortados aos bocados a golpes de catana; com cabeças e testículos pendurados em paus espetados no chão; mulheres com os seios decepados e barrigas abertas; casas e máquinas incendiadas.
Na Rádio ouvia-se a toda a hora o «Angola é nossa!».
Quem diria!
Era mais fácil ir para o Brasil, América e Canadá do que para África!
Faz de conta que só se podia ir de Chaves para Lisboa com «carta de chamada».
Mas agora que havia rebentado a Guerra em Angola toca a ir para lá «já e em força».
E sem querer saber de mais nada «o Salazar» arrebanha todos os mancebos, põe-nos a aprender a fazer continência, a bater o tacão, a fazer “ombro, arma!” com um espingarda e um capacete de aço sobrados da Grande Guerra, a emparelhar milimetricamente as fitas de aperto da mochila, a fazer peito pra fora e barriga pra dentro.
Lembrando os vagões “Jota”, o “Pátria” e o “Vera Cruz” carregam aqueles molhos de almas, encomendadas ao anjo da guarda e à Srª de Fátima, comandadas por tenentes e capitães do diabo, e entregues ao domicílio dos «turras».
ELA sabia dos perigos que ELE corria. E desconfiava dos que não sabia. E até dos que mal imaginava!
Depois das “sortes”, mandaram-no para Tavira, lá, na outra ponta do país.
Só voltou a vê-lo e a abraçá-lo na véspera de Natal.
Nem no Ano Novo se voltaram a ver. Tinham atirado com ELE para Mafra.
Quão longe já andavam um do outro!
Foi a Semana Santa que abençoou a matança de saudades.
Mas a guia de marcha para Tomar sentenciou continuarem sacrificados.
Aliviavam-se com as cartas que dia sim e dia não, e, às vezes, (tantas!), dia sim e dia sim, o carteiro lhe entregava a ELA, «de mão própria»; e a ELE lhe deixava na morada onde tinha o quarto para a muda de roupa “à civil”, quando saía do Quartel.
Passado quase meio ano teve três dias de licença.
O «excursionista candongueiro» estava sempre avisado a tempo, talvez por um sargento lateiro da Manutenção ou da Secretaria, de ir oferecer as viagens bem programadas de ida e volta, com paragens convenientes que aliciassem os militares interessados em «ir a casa».
A viagem de comboio - Tomar-Lamarosa; Lamarosa-S.Bento; S. Bento- Régua; Régua-Chaves - p’ró que dava?!
A camineta saiu da frente do Quartel na sexta-feira à hora do almoço, depois de todos terem entregue o pedido de dispensa do mesmo. Atravessou as Beiras, deixando aqui e ali os militares interessados. Chegou ao Campo da Fonte na madrugada de sábado, por volta das seis da manhã, com pouco mais de uma dúzia dos que sobraram.
Como tinham de estar na Formatura do toque de alvorada na 2ªfª, a hora de regresso era no domingo às três da tarde, sem falta, frente ao chafariz da Madalena.
Deu tempo para apanhar umas sobras dos “Santos” e festejar o S. Martinho.
Faltou tempo para afogar tantas saudades que ELE e ELA sentiam um do outro.
Mas ainda foram a tempo de matar algumas, tantinhas, e fazer nascer muitas mais.
Segunda-feira, ao toque de alvorada ELE já estava aprumado na Formatura.
Uns exercícios aldrabados de tiro, na Carreira de Tiro; uns disparatados exercícios operacionais na “Serra”, umas corridas até aos arrabaldes de Stª Cita aproximaram o cheirinho a Natal .
Mas chegou a ordem de embarque.
A licença de mobilização deu-lhe a ELE uns dias mais demorados para «ir à terra».
ELE e ELA sentiam ter nascido um par o outro.
No final da «comissão» - assim se chamava à missão nunca bem nem mal explicada à soldadesca que era embarcada para África - ELE arranjaria trabalho numa empresa «segura», talvez como “aspirante de finanças”, quem sabe; e ELA cuidaria da casa com o gosto e a graça que tão bem sabia, repetia-lhe ELE, a rematar mais uma meda de beijinhos e beijocas e xi-corações apertados e apertadinhos.
Ficavam como dois tolinhos a rirem-se de contentes com os sonhos que teciam.
Dizem que as ilusões são o pão-nosso de cada dia dos infelizes.
Ainda faltavam cinco dias para o fim da licença quando o carteiro, fora de horas, bate à porta dele. Trazia um telegrama.
Este pedacinho de pão-papel soube a azedo.
A data de embarque fora antecipada e tinha que apanhar o comboio na manhã do dia seguinte.
Correu para a Aldeia dela.
Esperou-a junto à Fonte onde era costume ELA ir colher a água para a ceia.
Os dias já eram pequenos. O Dezembro já tinha entrado.
Mal o viu, ELA teve um baque no coração.
O cântaro caiu. A rodilha ficou pelo chão.
Não quis saber de mais nada. E correu como louca para ELE.
Abraçaram-se com desespero.
Faltou-lhes a fala.
Choravam.
Os que levavam o gado a beber e as que levavam os cântaros a água colher pararam estupefactos. Nem sabiam dizer porquê.
Que adivinhavam? - perguntavam para dentro de si próprios os que levavam o gado a beber e as que levavam os cântaros a água colher.
Na Fonte Nova juntou-se gente para apanhar o comboio e para desta se despedir, cumprindo um hábito tradicional de acompanhar os vizinhos e amigos à estação ou ao apeadeiro, mesmo que fossem só até Vila Real.
Naquele dia, até o maquinista pareceu adivinhar a onda de tristeza e de angústia que afogava o coração de tanta gente.
Saberia ele, o maquinista, que levava naquele dia militares para Angola e que iria apanhar mais uns poucos até à Régua?! É que desde o sinal da partida, lá da Estação, que pôs o comboio a apitar de certa maneira!...
Na Fonte Nova, a D. Lucindinha até demorou um bocadinho mais a conversa com o Revisor.
Parecia querer retardar as despedidas. Em especial a daquele rapaz e daquela rapariga que, chorando como duas crianças, lhe faziam tolher o coração.
Mas tinha de levantar a bandeirola para que o comboio cumprisse os horários «a tempo e horas».
ELA sentia-se sem forças para chegar a casa a tempo de ajudar a fazer o almoço.
A Lurdes Pequena ia a passar. Viu-a naquele estado e voltou atrás para ir à talha, ali pertinho, buscar-lhe um copo d’água.
Conseguiu chegar a casa. Não ajudou no almoço. Nem uma rodela de batata, nem uma colher de caldo meteu à boca.
Foi para o quarto.
Tirou da mesinha de cabeceira as cartas que lhe haviam chegado de Tavira, de Mafra e de Tomar.
Apertou-as no peito. Bem juntinho ao coração.
Chorava.
Recordava.
E sonhava.
Como o Indicativo Postal Militar era fornecido antes do Embarque, ELA já o sabia.
Na Junta já tinha comprado alguns Aerogramas, a dois tostões cada um.
Estava-se nos meados de Dezembro. O embarque marcado para a madrugada do dia 17, no Cais de Alcântara, no “Vera Cruz”.
Pela demora do costume, lá iria ELE passar a Noite de Consoada no alto mar.
E assim aconteceu.
Pegou na caneta de tinta permanente e começou a escrever o primeiro aerograma.
Quis mostrar-se corajosa, convencida que assim lhe dava a ELE mais coragem para aguentar a dor da ausência e as cruzes da Guerra.
Assim, começou por lembrar-lhe que não era sua «MADRINHA DE GUERRA», embora ELE tanto tivesse insistido para que o aceitasse ser.
Nem dele nem de mais nenhum militar! Que ficasse bem ciente disso!
Quando no dia 27, acampado no GRAFANIL, ouviu falar na «distribuição de Correio» nem soube quanto pulos lhe deu o coração.
Então, quando chamaram pelo seu nome!......
Ai! Se aquele amigo chegado não o empurrasse ainda hoje estava atordoado!
Hoje?!.......................
Na secretaria já havia entregue uma chusma de aerogramas que escrevera no barco.
Como pelo sim e pelo não se tinha prevenido com envelopes e papel de avião, hoje mesmo tinha posto no Correio uma inspirada e saudosa carta feita ontem à noite. Tinha a esperança de que ELA ficasse mais feliz por receber aerogramas e cartas.
Cumpridas as formalidades militares, ELE e a Companhia lá foram para «o mato».
Dia de Reis, já noite dentro, chegou a coluna com o reabastecimento e ….o Correio.
Na Parada amontoou-se a ansiedade com a sofreguidão. Até as sentinelas ficaram com os olhos trocados - um para fora, outro para dentro do Quartel.
Recebeu um aerograma e correu para debaixo de um candeeiro para o ler.
Nem teve tempo de o abrir !
Voltou a ouvir berrar pelo seu nome. Atirou-se como um desalmado por entre a chusma dos que esperavam que lhes calhasse a chamada.
Desta vez era uma carta em «papel de avião».
Já não procurou o candeeiro. Escondeu-se no quarto que lhe calhou com o Nunes Palma.
Leu o aerograma porque chegou primeiro.
Ai! Que bem que lhe soube!
Os mil beijinhos e xi-corações estava mesmo a senti-los.
Mas quando leu «..e todos aqueles miminhos que te fazem deixar derretidinho»!.....
-Mas por que raio inventaram a Guerra?!
Com tantos santos e santas que há no mundo!
A Guerra é uma coisa que nem ao diabo lembra! - até falou alto para o tecto.
Abriu a carta.
Com que cuidado!
Afagou-a.
Cobriu-a de beijos. De um lado e doutro.
Olhou uma e outra vez para a letra da direcção.
Era uma carta mesmo para ele.
Tirou a folha com muita delicadeza.
Desdobrou-a.
Mirou-a d’alto a baixo.
Deu conta que estava escrita dos dois lados.
ELA era um amor.
ELE estava mesmo apaixonado.
Que consolo lhe espalhava pelo peito cada palavra que lia.
Às vezes até voltava atrás na leitura.
ELA era um amor.
Mas agora ali dizia que………
Ajeitou-se na cama. Alinhou melhor a folha com os olhos.
………«ando de esperanças».
Turvou-se-lhe a vista. O coração queria saltar-lhe do peito. Os braços caíram estendidos na cama.
Mal segurava a carta.
Ficou sem fala e sem pensamento.
Deu um salto.
Sentou-se na beira do colchão.
Sentiu-se feliz e cheio de medo. Tudo ao mesmo tempo.
O Palma entrou naquele instante. Trazia um monte de aerogramas nas mãos e ondas de alegria no rosto.
Era casado. E pouco tempo lhe faltava para ser pai.
- Hei! Que te deu?!- atirou-lhe
Partilhou com o Palma a «nobidade».
- Anima-te, rapaz! Eu só te ganho por pouco!
Isto fê-lo sorrir e levantar o ânimo.
O tempo de comissão lá ia passando.
Missões «no mato», em «colunas de reabastecimento», em «apoio à Companhia vizinha», protecção a civis.
A Comissão lá se ia consumindo.
Pelo Carnaval, o Palma já era pai.
Convidou-o a escolher o nome para a filhinha.
ELE recomendou o de MARGARIDA.
O Nunes Palma concordou.
Um mês e tal depois, o pai da Margarida leu-lhe o aerograma que contava o Baptizado da menina. Lá estava escarrapachado o nome MARGARIDA.
Decidiu que quando o filho dele nascesse iria recomendar-lhe a ELA para lhe pôr o nome de NUNO, se fosse rapaz, ou de MARGARIDA, se fosse menina. Este companheiro de quarto, embora fosse da Manutenção, era um bom companheiro de armas.
Na semana de Pascoela calhou-lhe a «Coluna de Reabastecimento e Correio».
Às vezes, na picada apareciam umas cruzes feitas no pó, outras feitas com galhos de árvores; apareciam uns garrafões com flores, uns troncos caídos, mas nunca tinha havido sarilhos de maior.
O regresso foi feito como o planeado.
Nas «GMC’s», em movimento, topou alguns a passarem a «Plateia» de mão em mão.
Não gostou da brincadeira.
Mandou dois berros.
Não teve tempo para mais.
O tiroteio foi surpreendente e infernal.
Uma rajada ceifou-o como a palha seca de centeio maduro.
Aquele dia em que o amigo chegado o empurrou no Grafanil para ir deitar mão ao primeiro aeorograma!...
Hoje!.............
ELA ainda veste de luto!
Luís Fernandes