Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

29
Jun12

Ocasionais - A Lanterna Mágica


 

A Lanterna Mágica


Aqui vão duas historietas sobre cinema com personagens de Boticas. A primeira é verdadeira, passou-se comigo. A segunda é duvidosa. É uma historieta que o Zé Cândido (funcionário da farmácia de Boticas) conta, nos cafés, sobre o Rique, o protagonista. O Zé diz que a história é verdadeira, não se sabe se para chatear o Rique ou para que a historieta tenha mais piada. O Rique diz que é mentira, talvez por ter vergonha ou por ser essa a verdade. O narrador (eu próprio mas no uso da terceira pessoa) limita-se a contar a história como a ouviu.

 

 

A primeira vez que fui a um cinema devia ter uns 19 anos. A minha estreia aconteceu depois de me mudar de Boticas para o Porto. Antes disso só via filmes na tv porque a sala de cinema mais próxima da vila estava a uns distantes 60 km, em Vila Real, onde nunca pus os pés. Lembro-me que às vezes, especialmente aos Domingos à tarde, me juntava com o resto da canalha no café do Junqueira para vermos filmes na tv.

 

Escolhíamos esse sítio porque foi o primeiro a ter tv a cores (desde 1982), que era uma coisa que nós não tínhamos em casa. Víamos com prazer os filmes do Tarzan, do Jerry Lewis, da Pantera, e do John Wayne (mas nem sabíamos que o John Ford era um gajo sério e respeitado, por exemplo), entre outros. No fim dos filmes dizíamos se tínhamos gostado, se foi fixe, e pouco mais, não sabíamos quase nada de cinema. Alguns dos meus amigos  diziam que os actores ganhavam balúrdios para terem que levar com tiros e morrer nos filmes, outros diziam que não, que era tudo truques. Uma coisa que se sabia em Boticas era que todos os filmes que tivessem um leão a rugir, logo no início, eram bons. Isto era mais ou menos o que sabíamos de cinema.


Quando me mudei para o Porto, conheci um grupo de pessoal da minha idade que eram uns sabichões, sabiam tudo! E sabiam imenso de cinema. Eram capazes de falar de cinema às horas, que era uma coisa que me impressionava muito porque eu não sabia que era possível conversar sobre cinema. Sabiam o nome dos realizadores, dos actores, da vida deles, das montagens, dos prémios, dos festivais de cinema, de tudo. Uma vez, perguntei-lhes quem era o actor de que estavam a falar e eles desataram à gargalhada porque, pelos vistos, o actor era uma grande vedeta mundial. Um dia decidi-me a ir experimentar as salas de cinema e fui ao Trindade. Pus-me na fila da bilheteira, meio envergonhado (não percebia nada de cinema e tinha receio de levar tanga dalgum tripeiro malandro), e reparei que as pessoas conversavam um bocadinho, durante a compra do bilhete, com o vendedor. Reparei que na bilheteira havia uma planta do cinema com a descrição das várias zonas (como a plateia) e percebi que as pessoas podiam escolher o tipo de bilhete que queriam e seria disso que conversavam com o vendedor. Lembrei-me que a minha mãe (tinha trabalhado algum tempo em Lisboa, onde tinha ido ao cinema) me tinha dito que o melhor sítio para se ver um filme é nas cadeiras mais afastadas do écran. Fiado nesta lembrança, pedi um bilhete para as galerias. Fui pelo cinema fora à procura das galerias, que encontei depois de me ter perdido pelos corredores e escadarias. Entrei pela porta adentro (já não havia luzes) e comecei a procurar o meu lugar. Passados uns 10 segundos, uma senhora veio ter comigo, de lanterna na mão, pediu-me o bilhete, e fez o favor de me levar até ao lugar. Disse-lhe um obrigado envergonhado e fiquei a pensar: "Foda-se, estes gajos do Porto são mesmo espertos, toparam logo pela minha cara que eu sou um parolinho de Boticas, que não atino com nada disto, e até se dão ao trabalho de acender uma lanterna e ir levar-me ao lugar! Valha-me deus, só venho para aqui incomodar pessoas finas e sabedoras!".

 

 

Apesar de eu ter descoberto o cinema apenas aos 19, em Boticas havia alguns cinéfilos sofisticados. A razão da existência desses cinéfilos era a de em Chaves ter existido uma sala de cinema durante os anos setenta, que encerrou quando eu era canalha e que eu não tinha conhecido. Mas alguns rapazes de Boticas, mais velhos do que eu, tinham frequentado o cinema flaviense com regularidade. Eles contam que, nessa altura, tinham que alugar um táxi (quase ninguém tinha carro e não havia autocarros à noite) para ir ao cinema a Chaves. O taxista aproveitava para ir ver o filme, no fim bebiam uns finos nalgum café da cidade, e assim passavam uns serões porreiros. Uma vez, convidaram o Rique, que é pastor de profissão e meio aleijadinho de uma perna, para ir ao cinema, porque faltava mais um para dividir o táxi. O Rique, que nunca tinha ido ao cinema, disse que sim, e ficaram com uma hora combinada para se encontrarem. Em chegada a hora combinada, o Rique não aparecia. Esperaram um bocado mas como ele não vinha e também não queriam perder o filme, mandaram-se para Chaves. Ao chegar à saida de Boticas, encontraram o Rique mais as vacas a atravessar a estrada, mandaram parar o táxi, e disse-lhe um "Ó palerma, qu'andas a fazer, atão num bens? Anda lá caralho!". O Rique decidiu-se a ir com eles, mandou umas bastonadas nas vacas e berrou-lhes "Ala p'ra casa, suas putas!". As vacas lá seguiram o caminho habitual e o Rique meteu-se no táxi. Quando chegaram a Chaves foram imediatamente para o cinema porque já estavam atrasados. O Rique, manquinote da perna, ficou-se para trás e foi o último a entrar. Entrou no cinema, já escuro, e foi mancando pelo corredor fora até que reparou que vinha uma luz a segui-lo. Virou-se, de repente, e mandou duas varadas, com o cajado, ao homem da lanterna, que lhe iria indicar o lugar. O homem ficou ali estendido e o Rique virou-se para os outros, que lhe perguntavam "Atão, qu'houve?", e disse-lhes "Num é qu'aquele filho da puta me queria foder com a bicicleta?!".

 

Luís de Boticas

2 comentários

Comentar post

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • FJR

      Esta foto maravilhosa é uma lição de história. Par...

    • Ana Afonso

      Obrigado por este trabalho que fez da minha aldeia...

    • FJR

      Rua Verde a rua da familia Xanato!!!!

    • Anónimo

      Obrigado pela gentileza. Forte abraço.João Madurei...

    • Cid Simões

      Boa crónica.

    FB