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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

23
Nov12

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


 

Os espíritos do forno do Có

 

Em Trás-os-Montes, mesa de pobre ou mesa de rico tem de ter, obrigatoriamente, pão de centeio e isto desde que o homem é homem. E já agora, batata também. Do altiplano dos Andes, o tubérculo chegou para cá do Marão, somente em finais do século XVI. No seu lugar esteve a castanha, esse fruto divino com que o castanheiro nos prenda no arreganho do ouriço. A própria bolota, não a que ceva o porco preto alentejano que é de sobro, mas a que cria o carvalho negral das nossas touças, depois de seca e moída, arremedava a farinha centeia, nos períodos de maior fome. Então, primeiro a castanha, depois a batata e sempre o pão de centeio, foram a base da alimentação das nossas gentes ao longo dos séculos.

 

O grão – e nem é preciso dizer que é do centeio – espargido por essas courelas mirradas, pouco antes dos Santos, germinava, medrando-lhe a palha amaciada pelos nevões. Maduro, pelo alvor do verão era segado, arrumado em pousadas, acarretado, emedado e depois solto da espiga, à força do malho, nas eiras de pedra - alisadas e calafetadas com bosta para que nada se perdesse - por homens fortes, escravos do trabalho de sol a sol. Limpo das arganas pelas brisas das tardes de julho, o centeio era varrido e metido em sacos de serapilheira que depois eram vazados nas caixas do grão. À mistura com o centeio, encafuava-se alvezes a fruta verde para que amadurecesse e as chouriças para que não mirrassem. Ao longo do ano e conforme a precisão, o cereal era recolhido pelo moleiro e moído nas azenhas do Tâmega, ou nas dos ribeiros seus afluentes. O moleiro fazia a ronda pela clientela das aldeias, carregava os coleiros na albarda das bestas de carga, cingia-os com cordas esticadas pelos arrochos e dias mais tarde devolvia a farinha, subtraída, bem entendido, da maquia para seu governo. Esta, depois de peneirada, apartada portanto do farelo que cevava os recos, era misturada com água quente salgada e com o fermento, colhido dum pequeno alguidar de barro de Nantes que tinham deixado cheio, por obrigação, da massa já levedada da fornada anterior. A pasta, depois de bem revolta e batida na masseira, muitas vezes enriquecida até com o suor da testa da amassadeira, que dava ao pão paladar idêntico ao de Padornelos, cuja farinha recebia os aromas do suor do jerico que a carregava em pelo, ia a levedar embrulhada em panais brancos, o mais das vezes de linho. Como soi fazer-se ainda quando se tende, ao dividir a massa em bocados, que serão os pães - note-se que resisti à tentação de lhes chamar boroas – era lavrada uma cruz em cada um e botada a seguinte reza:

 

São Vicente te acrescente

São Mamede te levede

São João te faça pão

pela graça de Deus e da Virgem Maria

um Pai-nosso e uma Avé-Maria.

 

O forno, previamente aquecido pelas labaredas das fronças da giesta branca, estaria pronto a cozer quando o tijolo burro ficasse esbranquiçado. Desviava-se o brasume para as bordas, ranhava-se o forno com um lareiro de ferro, puxava-se algum do borralho para a porta e enfornava-se o pãozinho, com três cruzes feitas com a pá na porta do forno e mais outro dezer sagrado:

 

Cresça o pão no forno

e os bens p´lo mundo todo

paz e saúde ao seu dono

pela graça de Deus e da Virgem Maria

um Pai-nosso e uma Avé-Maria.

 

Duas horas passadas e a forneira tirava o primeiro pão. Batia-lhe com a mão no fundo, como quem toca o adufe e soando a pão cozido desenfornava. O cheiro da fartura enchia o forno e o pão, arrefecido, seguia de giga para a galheira.


Na maioria das aldeias transmontanas, sobretudo nas barrosãs, havia um forno único para serventia de toda a povoação, era o forno do povo. Lugar mítico, tão importante - às vezes mais - do que a própria capela, servia de espaço de convívio ao nível do barbeiro ou da taberna. Aí conversava-se, namoriscava-se, conspirava-se, punham-se uns na lama e outros nos cornos da lua, enfim emprestava-se verdadeiro sentido à vida comunitária. O forno servia até de albergue para almocreves, vadios e miseráveis pedintes que esmolavam de lugar em lugar. Contudo, nem todas as aldeias transmontanas tinham forno do povo. Em Outeiro Seco, por exemplo, não se conhecia esta tradição, o que não quer dizer que não se cozesse o pão, pois também ali é dele que o homem vive. Não sei se por mor de se tratar de uma aldeia da ribeira, mais mimosa do que as de riba, se por outra qualquer razão, o forno do povo, era aqui substituído por muitos fornos de propriedade privada. Claro que nem todas as casas o avezavam. Quem não o tivesse, para cozer, tinha de contratar o serviço aos proprietários, os forneiros, em contrapartida de uma determinada paga. Estes aqueciam o forno, com a lenha fornecida pelo dono da fornada, amassavam a farinha, tendiam e enfornavam o pão.


Nesta povoação de Outeiro Seco havia, como disse, diversos fornos. No bairro do Eiró, os do Joaquim Félix e da Delfina Carreira, no do Penedo, o da Antónia Sanches, um forno muito requisitado, que esteve até na razão da atribuição da nomeada a seu filho José, ainda hoje conhecido como o Zé do Forno. Curiosamente, no do Papeiro, um bairro tão azadinho, não havia qualquer forno. Os seus moradores tinham de recorrer aos dos outros bairros. O mais usado por estes moradores, quiçá por razões de proximidade, era o da Delfina Carreira. Contudo, o bairro do Pontão, talvez por ser o mais populoso, era o que detinha o maior número de fornos. Os mais populares eram o do Canelhas, também conhecido por forno da Tenreira, por a forneira ser a Maria Tenreira, esposa do Canelhas, originária de Vilarelho da Raia, e o do Có, assim conhecido por causa de uma desgraça que ali ocorreu e que passo a contar.

 

Este forno foi desde os igrejos avós propriedade da família Merceana. Pertenceu, em tempos, à Teresa Merceana, que se finou, inexplicavelmente, ainda jovem. Solteira e diz-se que ainda virgueira, faleceu sem descendência, pelo que o dito cujo passou, por herança, para a sua irmã Rita Merceana, casada com Adriano Lara. Durante muitos anos este cadinho do pão foi explorado, em regime de concessão, primeiro pela família Agrela, e mais tarde por Maria Mafalda. Por se situar no centro da povoação, junto ao largo do tanque, espaço nobre da aldeia, onde paravam os forasteiros, o forno fazia as vezes do forno do povo, pois para além de cozer, também servia de poleiro aos pedintes e aos sem-abrigo que mendigavam de terra em terra e que por ali pousavam com alguma regularidade. Nas noites de carambina, esta gente sem eira nem beira, procurava o conforto do calor do forno, nunca negado pela forneira e que tantas e tantas vezes, inclusivamente, lhe aconchegava o bucho com uma côdea ou um cibo de bôla de carne, por alminha de quem lá tinha.

 

Um desses mendigos que regularmente aparecia por lá, diziam que vindo dos cornos do Barroso, ainda que, de certezinha, tivesse nome de batismo, era conhecido na comunidade pela nomeada de Có. O epíteto designava alguém pouco expedito, lerdo da memória, taralhoco no jeito e na fala, que não fechava bem a gaveta, enfim, maluco, na fala do povo que é a que mais nos interessa. Talvez até fosse esta a razão que o impedia de dobrar a espinhela sobre a rabiça do arado. De facto, não servia para assucar uma terra, aricar uma leira de pão, ou até sachar umas batatas, ou um milho que fosse, pois em vez de mondar os sinchos, tolhia as perneiras. Nem mesmo era homem para botar o gado ao monte ou ir cá botá-lo, pois até os irracionais lhe percebiam a falha e desinvestiam giestais adentro, nem precisando de estar com a mosca. Muito menos servia para segar pão. Metessem-lhe uma ceitoura na mão, para não falar dum gadanho afiado, e a cada investida da destra, mesmo com dedeiras, ficaria sem seu dedo da sinistra. Para que vejam, um dia tentou segar, à ajuda, um cesto de erva numa lameira. Se uma vaca parida, que ali pastava sossegada, não se pusesse fina, teria sido ceifada pelas canelas à investida descontrolada da gadanha. Uma desgraça este Có! Servia apenas para mendigar e para os lafraus se divertirem atazanando-lhe a alma pelos lugares.

 

Um dia farrusco, pelo Entrudo, respirava-se, mesmo na veiga, um ar ártico a adivinhar nevão taludo. Se ali era assim, imagine-se o que seria nos altos!.. O Có, para fugir a este inferno barrosão, desceu à ribeira e pousou, uma vez mais, em Outeiro Seco. Chegou pelas ladainhas, já a Maria Mafalda havia enfornado as últimas quinze bôlas das três fornadas que cozera nesse dia, claro para poupar nos guiços - economias de escala à moda do povo! - ora, como dizia, depois da última fornada e enquanto aguardava que o forno arrefecesse, o Có, rilhava um carolo de pão que por misericórdia lhe haviam oferecido. Quando ficou só e vendo a sua boa, encafuou-se, como sempre fazia, dentro do forno para melhor se abrigar do briol. O pobre, era useiro e vezeiro nesta façanha, mas como diz o povo, tantas vezes foi o cântaro à fonte que desta vez deixou lá a asa! O Có, dormia a sono solto e na paz dos anjinhos. Aconchegado pela irradiação do refratário, ressonava regalado. Pela madrugada, meia dúzia de gabirus, após um serão bem bebido de chincalhão, decidiram pregar-lhe um susto. Não é que lhes dá o dianho para tapar a entrada do forno com a porta de chapa! E como se não bastasse, ainda calafetaram as frinchas com a bosta de um caldeiro que tinha sobrado da última fornada do dia. Claro, saiu-lhes a porca mal capada! O que pretendiam que fosse uma brincadeira, pese embora de mau gosto, transformou-se numa tragédia: o Có acordou morto, estrezicou por asfixia! Quem o descobriu foi a Mafalda, pela manhã, quando abriu o forno. Como o infeliz não tinha família, nem quem o chorasse, ninguém reclamou justiça. Assim, o caso, embora configurasse homicídio, acabou impune. Nunca se soube mesmo, quem verdadeiramente tinha sido responsável por aquela desgraça. Por via disso, desde aquela ocasião, o forno passou a ser conhecido por forno do Có.

 

Não sei se me finte, mas diz-se em Outeiro Seco, à boca pequena, bem entendido, que o espírito do infeliz ficou aprisionado naquele forno e por vingança, doravante, embezerra todo o pão que lá se coza!

 

Este forno esteve ainda ligado a outro acontecimento fantástico, relacionado com um mendigo das bandas do Vidago de seu nome Procópio Fina. Este infeliz, além de desafortunado, ainda era apoquentado – dizia-se – pelo espírito de um homem, que teria deixado uma promessa por cumprir e que foi morto pelo couce do cavalo dum militar francês, na segunda invasão em 1809 e que Soult fez entrar por Chaves.

 

Permita-se aqui um parêntesis sobre este mistério dos espíritos:

 

Apesar de haver uma grande contradição no seio da igreja católica sobre esta temática dos espíritos e das almas do outro mundo, algumas delas penadas, o certo é que a Bíblia contém variadas passagens considerando a sua existência. Uma delas é a missão dos doze, ou seja a missão atribuída por Jesus aos doze apóstolos e que diz o seguinte:

 

Jesus enviou estes doze apóstolos, depois de lhes ter dado as seguintes instruções: Não sigais pelo caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Ide, primeiramente, às ovelhas perdidas da casa de Israel. Pelo caminho, proclamai que o Reino do Céu está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento. (Missão dos Doze (Mc 6,7-11; Lc 9,1-6; 10,1-11)

 

Pois bem, nas suas várias passagens pela aldeia, Procópio também se albergava nesse forno do Có. E sempre que lá pernoitava era assaltado pelo tal espírito, que diziam revelar-se de forma bizarra: primeiro Procópio desmaiava e seguidamente entrava em transe como se estivesse de fuzil em punho, esfaimado, a defender a fronteira de Vila Verde da invasão napoleónica. Era um espetáculo gracioso, bem sei que triste, mas o povéu não perdia pitada e mal soubesse da chegada do Fina, juntava-se no forno para o circo!

 

Será a atração, fatal, que o povo tem pelo que não sabe explicar?

 

Tal facto trazia Outeiro Seco em polvorosa. Foi graças aos dotes da tia Ana Moucha, perita nestes entendimentos, que uma das noites, com as rezas e as mezinhas da praxe, puxou pelos espíritos e conseguiu, para espanto de todos, que a voz da alma penada, usando a gola do Procópio, declarasse, em tom horrendo, andar a penar neste mundo por causa do incumprimento de uma promessa ao bendito São Caetano. Simultaneamente pedia comida e ameaçava.

 

– Dai-me de comer ou matarei este homem – e aquela voz de besta fera, saída das parafundas do inferno, repetia o pedido vezes sem conta.

 

Alguns vizinhos, tralhados de medo, mas piedosos e tementes a Deus, talvez para ganharem indulgências da senhora da Azinheira, benziam-se e rezando o Ato de Contrição, acudiam com pão, lascas de presunto, chouriços, linguiças, vinho fino, folar, se era tempo dele, enfim com o que tinham de melhor para apaziguar aquela alma do cabrunco! E o pobre lá comia regalado o que lhe davam. A voz do chifrudo ia abrandando à medida que o fole do pedinte se ia enchendo, até que parava e o possuído dava de si. Isto repetia-se quase todas as noites da sua estadia em Outeiro Seco. Contudo, a cena começou a inquietar alguns mais céticos que não compreendiam porque é que aquele espírito, excomungado, punha o esmoleiro a comer à tripa forra, mas somente peguilhos!

 

– Olha que p’rá lavadura do caldeiro não vira ele os cornos! – diziam alguns mais hereges.

 

Este espírito malévolo que custava mais à aldeia do que ao próprio mendicante, precisava de ser exorcizado. Daí que um grupo de jovens tesos, composto pelo António Salgado, o António Castro e o Augusto dos Santos, decidisse levá-lo ao São Caetano, para que de uma vez por todas, a alma inquieta largasse aquele corpo e se consumasse o seu descanso eterno.

 

Assim fizeram.

 

Num dia de canícula em finais de julho, antes mesmo do galo cantar, e ainda que não fosse o dia da festa daquele santinho, advogado das coisas más e dos males desconhecidos, a qual se faz no segundo domingo de agosto, os três farsolas montaram o mendigo no Lidador, jerico da tia Ana Barroca, mãe do António Salgado, e lá foram pelo antigo estradão da Torre, até ao bendito santuário milagreiro.

 

Logo que iniciaram a jornada, depararam-se com um constrangimento sério. O mendigo, pouco habituado a montar, não se segurava na albarda. Para ultrapassar essa situação, desarrearam o jumento que ficou em pelo e sentaram o Procópio no seu dorso, atado com uma soga, como se de um molho de carqueja se tratasse. O jerico estava magro como uma cancela e a espinha sobressaía-lhe tal qual os dentes de um traçador!

 

A viagem, pela senda de Ervededo, durou para lá de duas horas. Chegados, deram duas voltas à capelinha e mais três ao santuário rezando as orações exorcistas que a tia Moucha havia encomendado. Cumprido o desejo, o espírito ausentou-se da carcaça do pedinte, agradecendo a libertação com estrondosos e arrepiantes urros. Deixando no ar um estoiro de morteiro e um cheiro acre a enxofre estonado, garantiu-lhes que a partir daquele dia ficaria em descanso eterno. Como de facto!

 

Cumprida a promessa e depois de uma última espreitadela pelo janeluco da capela para se despedirem do santo e lhe agradecerem, matabicharam ganhando forças para o regresso. Chegando à aldeia, os populares ficaram curiosos por o pobre pedinte vir atado ao burro daquele jeito, mas logo quiseram saber como correu a promessa. Contados todos os pormenores, a satisfação foi geral, pese embora a cerúdia que tiveram de colher pelas paredes da aldeia, para curar o rêgo do Procópio que vinha em carne viva de tanto roçar na dentadura do serrote!

 

Se foi por graça do São Caetano, das rezas, ou da provação do infeliz pedinte, não sei. Sei é que ficou livre, doravante, de tais achaques e não mais careceram de o presentear com os mimos de Outeiro Seco. Nunca mais se viu por lá, não fosse, de novo, obrigado a esfolar o cerejo no lombo de um outro jumento escanzelado.

 

Fosca-se!..


Para terminar, permita-se-me uma divagação mal amanhada:


Estou que o espírito que se meteu no corpo do Procópio não seria verdadeiramente o do escoicinhado pelo cavalo do soldado francês, mas o do Có. Quem sabe se para se vingar de forma ainda mais bizarra?

 

Que outras surpresas reservará Có para os de Outeiro Seco!.. ponham-se a pau!


 

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      Bom dia senhor cronista. Saúde!

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