700 - Pérolas e Diamantes: O papagaio e as gralhas
Era entusiasmante, depois dos estudos, sair junto com os amigos do bairro para fazer voar o papagaio de papel. Era comovedor ver o papagaio subir a grande altura. O papagaio era feito de velhas folhas de jornal que continham, muitas delas, notícias preocupantes, mas, uma vez o aparelho no ar, deixávamos de pensar nisso e entretínhamo-nos a puxá-lo, aos sacões, com um fio. Queríamos acreditar que, como nos sugeria a linda catequista, o objeto voador nos arrancava do espírito as preocupações terrestres e nos levava consigo – ó credulidade juvenil! – para as regiões celestiais. Quando chegava a hora de enrolar o cordel, e quando o papagaio começava a descer pouco a pouco, abandonando aquele espaço de luz esplendorosa, para aterrar, oscilando, no chão, inerte como uma criatura morta, todos nos sentíamos a emergir de um sonho. Depois algum de nós apanhava o papagaio, olhando em redor com um ar alucinado, como se a ave de cana, papel e cola tivesse sido abatida por algum caçador furtivo. Tão entusiasmados andávamos que prometemos uns aos outros construirmos um papagaio de papel maior do que o primeiro.
Mas promessas leva-as o vento.
Aquele papagaio fazia-me sempre lembrar do vitral da igreja e do seu brilho suave, onde pontificava a pomba do Espírito Santo que irradiava luz sobre a cristandade. A crer nas notícias que enchiam as páginas dos jornais de que era feito o papagaio, parece que a luz da ave divina, em vez de iluminar os seres humanos, os cegava. A guerra é a guerra, no céu e na terra… cruzado, cruzado, segundo diz o Fausto Bordalo Dias.
E o soldadinho na guerra colonial a matar e a morrer, como um passarinho a quem expulsaram do ninho antes de saber voar, em defesa de uma terra que não era a sua. E a bonita catequista à espera e a rezar para que o seu mancebo, feito militar à pressa, viesse da guerra são e salvo.
O soldadinho não voltava do outro lado do mar, avisava José Afonso. Mas o papagaio voava sob o céu do nosso bairro.
Os próximos éramos nós.
A ir para a guerra.
E as gralhas desciam da torre da Sé para deambularem por ali e nos meterem medo. Os mandantes de então estavam quase tão enferrujados como os ferros que encimavam o muro do velho cemitério. Aos domingos, os homens jogavam o chinquilho para entreterem a pobreza e o pavor. Concediam aos que passavam um olhar sem brilho. Pareciam cavalos cegos a pastarem no meio dos caminhos.
Tudo era lacónico, sobretudo as palavras. Os olhares eram receosos e os gestos tímidos. Cada um encolhia-se como podia. Uns pareciam cansados. Outros desiludidos. A tristeza libertava nas pessoas uma espécie de marcas viscosas como as que deixam os caracóis. A esperança numa vida melhor era semelhante à chama de uma vela a tremeluzir ao vento. O velho ditador, de voz metálica e roufenha, era ao mesmo tempo bispo, padre e sacristão. Vigiava até o olhar de quem ia tomar a hóstia. Os rostos dos indivíduos pareciam janelas fechadas.
As personagens mediúnicas contorciam-se para exaltar os seus sentimentos, para abrandar a sua fúria. A sua monomania litúrgica enchia o país do cheiro a cera, incenso e a naftalina. O povo vivia mergulhado em ignorância e inocência. Esse era o estrume da ditadura.
O velho ditador residia no meio das gralhas que vigiavam tudo. As gralhas tinham o tenebroso hábito de aparecerem na casa das pessoas desbocadas, durante a noite, para as prenderem. O ditador tratava o seu povo com condescendência e rudeza. Com distância. E ele, o povo, retribuía-lhe com penitência, pejo, orgulho, amor, lealdade. E humilhação.
Este nosso lar parecia uma velha casa abandonada, onde no quintal nascia erva ruim e as folhas caídas cobriam os passeios com o seu aspeto de tapete húmido. O vento de inverno uivava em redor. A chuva fria batia na vidraça das janelas. O luar criava fantasmas nas paredes dos quartos, velando toda a noite a solidão.
Enquanto as gralhas vigiavam o nosso sono, o velho ditador fazia amor com as suas amantes, que tanto podia ser uma loira e pecaminosa francesa como uma beata, a morena portuguesa que lhe tratava das pitas e dos láparos.
Depois oravam em conjunto. E lavavam os preservativos para poderem ser utilizados uma segunda vez. E não mais.
Agora invoco José Mário Branco, e enquanto o papagaio de papel sobe no ar, e enquanto eu e os meus amigos de outrora nos emocionamos com a antiga emoção do seu voar, com tantas guerras travadas, já não sou capaz de fazer as pazes. São milhões as flores que destruíram as ruínas, inclusive os cravos. E as rosas. E os lírios. Cá dentro só inquietação, inquietação. E giestas. E urzes. E tojos. E eu a olhar para as poldras. E eu a ficar pelo caminho. Porquê, não sei.
João Madureira