Treze Contos do Mundo que Acabou - Boa noite, alminhas!
Conto XIII
Boa noite, alminhas!
-Tia Rosália, por amor de Deus, bote-me aqui um olhinho à canalha, que eu em podendo lá venho dar-lhes o mata-bicho.
-Bem m’eu finto que tu voltes a tempo de eu os manter sossegados à minha beira. O rapaz, ainda tu não tens chegado ao Cruzeiro das Almas já ele há-de andar a sarandar aí pelo povo, a farejar cibo com que destrancar os dentes, onde sinta que o possa topar menos acautelado. E a garotanha pequena, em se lhe acabando o sono e não achando a teta, desata num berreiro que nem que a estivessem a matar, não há o diabo que a faça calar, fica para aí toda a manhã a azucrinar-me o bicho do ouvido. Olha, porque os não levas contigo? Quando foi que os estavas a fazer, não precisaste que eu te botasse uma mão, ora não?!
Na desprecatada frescura da Matilde, naquele seu desenxovalho risonho e roliço de fruta madura a atiçar apetites, mesmo onde se afiançava que de há muito os não havia, não foi só um nem dois que se alambazaram, com o mesmo sem-cerimónia de quem arrefenta a sede de Agosto nas três bicas da Fonte Fria. E, como até à data nenhum se acusou, os proveitos dela são mais duas bocas para manter, com o pouco que lhe fica das jeiras que vai dando para quem a chama, ou da paga avara de um prazer fugaz, nunca regateado. O mais das vezes, tira a comida da boca para calar as deles, que são mais berrelas que cabritos no desmame. Lá gerigotos saíram ambos, como quase sempre são os filhos da curgidade, mas quanto a tirar dali parecenças em que não caiba dúvida do pai que os fez, isso já é outro falar. Ainda assim, não falta quem seja de opinião que o Marcolino, com aquele arzinho de bom-serás, tem culpas no cartório. A mulher, a Angelina do Outeiro, é que, mesmo muito aperreada pelas evidências, jura e bate que do homem dela, pela certa, que não são:
-O morrão há muito que se lhe apagou, e já nem me lembra da última vez que ele tenha cumprido a obrigação.
-Isso és tu que o dizes, mas eu toda a vida escutei dizer, Deus nos livre de fogo em palheiro velho. Que o rapaz dá ares a ele, pelos jeitos no andar, não o podes negar. E então quando lhe dá a risa, que até os cantos da boca se lhe arreguicham, como ao Marcolino… Bem, é por dizer que saíu loirito das melenas e o teu homem tem o cabelo escuro e mais enriçado.
-Está bom de ver que não pode ser dele! A quem tira mais parecenças, Deus me perdoe, é com o falecido Júlio Ferrador. Enquanto foi vivo capou muita besta, mas ele foi sempre brilheiro. Não podia ver uma burra de saias a mostrar-lhe bom agrado que não se ensaiava nada de lhe saltar para cima.
-Coitado do Júlio, Deus o tenha em descanso, hão-de ser mais as vozes que as nozes. Mas morra o homem e fique-lhe a fama!
Quem o adivinha? Como diz a tia Rosália velha, que já tem mais anos de mundo que o negrilho grande do passal, o certo é a criatura ter mais que um pai, porque a Matilde, na altura quando o fez, não dava a ida pela vinda, andava mais levantada que loba nova ao riceiro.
-Não foi nada que eu não tivesse cismado com ela. Tanta vez levas o cântaro à fonte, rapariga, que lá te há-de ficar a asa… e depois é que é o ai, se eu o soubera antes. Mas agora, que o rancho já vai em dois, não paga a pena pregar mais. Para miséria já bastava, mas tudo se cria, com a graça divina. Pelos jeitos, há-de trazer cada ano seu, até que os homens lhe ganhem nojo, ou o irmão venha a aleijar algum.
-Pois o Edmundo já por mais de uma vez o tem dito, que se calha de pegar algum em cima dela, seja ele quem for, nem que seja o mais pintado, que o desfaz. Mas se fosse homem para isso, já de há muito que o tinha feito, não foi por falta de ocasião. Ainda assim, queira Deus, queira, que um destes dias não venha a suceder alguma desgraça.
Quem fazia orelhas moucas a tais contos e ditos era o Marcolino. Que falassem! Com o mal de inveja podia ele bem. E enquanto a sua Angelina fizesse das tripas coração para o encobrir daqueles constantes afiadouros de língua, de portas a dentro, bem pouco lhe custava pôr-lhe a ciumeira em respeito, ora com agarimos delambidos, ora com a ameaça bem encenada de uns cachaços, que naquela casa ainda era ele quem vestia calças. Pena que dentro das calças nem sempre estivesse tudo como pertencia e que, o mais das vezes, a sede fogosa da Matilde tivesse que saciar-se noutra fonte, quando por ali, o que sobrava em fama faltava em proveito. Tivesse menos vinte anos e outro galo cantaria. Mas agora, o mais que esperava do gozo desta vida era espetar de quando em vez umas facadas no matrimónio, à escapula, entremeadas com umas borracheiras do bom tinto de Valtelhas, essas sim, umas detrás das outras, e à vista de quem quizesse ver, ainda que o fígado já não lhas cozesse como antigamente. Por sorte, há regalos que não têm de se acomodar à vontade do corpo, e a ocasião é quanto bonda para fazer o ladrão. Valha-nos ao menos isso! E foi numa dessas noites de mágoas bem afogadas, quando as botas já tenteavam a estrada, para lhe forçar as pernas bambas a carregar o corpinho encharcado em vinho de volta para casa, que, como era hábito, ao passar pelo Cruzeiro das Almas, deu as boas horas, respeitoso:
-Boa noite, alminhas!
-Boa noite, grande borrachão!, respondeu-lhe de lá o Edmundo, acachapado dentro da samarra por detrás do purgatório pintado, com um tal tremedoiro na voz e nas mãos, que a custo segurava o estadulho com que jurara abrir-lhe a moleirinha ao verde e moer-lhe o cangote com porrada.
Mas, qual o quê?! Ao Marcolino é que não lhe caíu bem que aquelas almas, de vestes brancas lambidas pelas chamas e mãos erguidas em esperançosa súplica, lhe tivessem tornado as boas noites com tão pouca cortesia. Só não perdeu a compostura porque já a não trazia, mas virou-se caras ao altar, lançou a boina ao chão, e ergueu os braços, furioso com a afronta:
-Caralho, alminhas, que vos fiz eu p’ra me tratáreis tão mal?
Assim que lhe viu os olhos esbugalhados e as manápulas tesas como garras de lobo que vai atacar, o Edmundo largou a samarra e o estadulho e desandou ligeiro pela rodeira do rio abaixo, de coração mais apertado, nem que tivesse visto lobisomem. Na ocasião, ao Marcolino pareceu-se-lhe que o arcanjo São Miguel deixara para trás as asas e a lança, e botara a fugir, apavorado. Seria, não seria?! Também não era caso para tanto!... Ainda assim, chegou-se mais ao nicho mal alumiado, e esperou que os olhos se quisessem fixar na parte cimeira onde o arcanjo costumava pairar, imóvel e suspenso como um tartaranho. E só voltou a pôr pernas ao caminho quando se convenceu de que ele lá continuava, pintado, de asas farfalhudas e lança em riste, a espetar as sete cabeças de dragão com que o mafarrico teima em arrastar aquelas pobres almas quase purificadas para as profundas dos infernos.
Herculano Pombo