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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

06
Nov11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Boa noite, alminhas!


 

Conto XIII

Boa noite, alminhas!

 

          -Tia Rosália, por amor de Deus, bote-me aqui um olhinho à canalha, que eu em podendo lá venho dar-lhes o mata-bicho.


          -Bem m’eu finto que tu voltes a tempo de eu os manter sossegados à minha beira. O rapaz, ainda tu não tens chegado ao Cruzeiro das Almas já ele há-de andar a sarandar aí pelo povo, a farejar cibo com que destrancar os dentes, onde sinta que o possa topar menos acautelado. E a garotanha pequena, em se lhe acabando o sono e não achando a teta, desata num berreiro que nem que a estivessem a matar, não há o diabo que a faça calar, fica para aí toda a manhã a azucrinar-me o bicho do ouvido. Olha, porque os não levas contigo? Quando foi que os estavas a fazer, não precisaste que eu te botasse uma mão, ora não?!


          Na desprecatada frescura da Matilde, naquele seu desenxovalho risonho e roliço de fruta madura a atiçar apetites, mesmo onde se afiançava que de há muito os não havia, não foi só um nem dois que se alambazaram, com o mesmo sem-cerimónia de quem arrefenta a sede de Agosto nas três bicas da Fonte Fria. E, como até à data nenhum se acusou, os proveitos dela são mais duas bocas para manter, com o pouco que lhe fica das jeiras que vai dando para quem a chama, ou da paga avara de um prazer fugaz, nunca regateado. O mais das vezes, tira a comida da boca para calar as deles, que são mais berrelas que cabritos no desmame. Lá gerigotos saíram ambos, como quase sempre são os filhos da curgidade, mas quanto a tirar dali parecenças em que não caiba dúvida do pai que os fez, isso já é outro falar. Ainda assim, não falta quem seja de opinião que o Marcolino, com aquele arzinho de bom-serás, tem culpas no cartório. A mulher, a Angelina do Outeiro, é que, mesmo muito aperreada pelas evidências, jura e bate que do homem dela, pela certa, que não são:


          -O morrão há muito que se lhe apagou, e já nem me lembra da última vez que ele tenha cumprido a obrigação.


          -Isso és tu que o dizes, mas eu toda a vida escutei dizer, Deus nos livre de fogo em palheiro velho. Que o rapaz dá ares a ele, pelos jeitos no andar, não o podes negar. E então quando lhe dá a risa, que até os cantos da boca se lhe arreguicham, como ao Marcolino… Bem, é por dizer que saíu loirito das melenas e o teu homem tem o cabelo escuro e mais enriçado.

 


          -Está bom de ver que não pode ser dele! A quem tira mais parecenças, Deus me perdoe, é com o falecido Júlio Ferrador. Enquanto foi vivo capou muita besta, mas ele foi sempre brilheiro. Não podia ver uma burra de saias a mostrar-lhe bom agrado que não se ensaiava nada de lhe saltar para cima.

 

 

          -Coitado do Júlio, Deus o tenha em descanso, hão-de ser mais as vozes que as nozes. Mas morra o homem e fique-lhe a fama! 


          Quem o adivinha? Como diz a tia Rosália velha, que já tem mais anos de mundo que o negrilho grande do passal, o certo é a criatura ter mais que um pai, porque a Matilde, na altura quando o fez, não dava a ida pela vinda, andava mais levantada que loba nova ao riceiro.


          -Não foi nada que eu não tivesse cismado com ela. Tanta vez levas o cântaro à fonte, rapariga, que lá te há-de ficar a asa… e depois é que é o ai, se eu o soubera antes. Mas agora, que o rancho já vai em dois, não paga a pena pregar mais. Para miséria já bastava, mas tudo se cria, com a graça divina. Pelos jeitos, há-de trazer cada ano seu, até que os homens lhe ganhem nojo, ou o irmão venha a aleijar algum.


          -Pois o Edmundo já por mais de uma vez o tem dito, que se calha de pegar algum em cima dela, seja ele quem for, nem que seja o mais pintado, que o desfaz. Mas se fosse homem para isso, já de há muito que o tinha feito, não foi por falta de ocasião. Ainda assim, queira Deus, queira, que um destes dias não venha a suceder alguma desgraça.


          Quem fazia orelhas moucas a tais contos e ditos era o Marcolino. Que falassem! Com o mal de inveja podia ele bem. E enquanto a sua Angelina fizesse das tripas coração para o encobrir daqueles constantes afiadouros de língua, de portas a dentro, bem pouco lhe custava pôr-lhe a ciumeira em respeito, ora com agarimos delambidos, ora com a ameaça bem encenada de uns cachaços, que naquela casa ainda era ele quem vestia calças. Pena que dentro das calças nem sempre estivesse tudo como pertencia e que, o mais das vezes, a sede fogosa da Matilde tivesse que saciar-se noutra fonte, quando por ali, o que sobrava em fama faltava em proveito. Tivesse menos vinte anos e outro galo cantaria. Mas agora, o mais que esperava do gozo desta vida era espetar de quando em vez umas facadas no matrimónio, à escapula, entremeadas com umas borracheiras do bom tinto de Valtelhas, essas sim, umas detrás das outras, e à vista de quem quizesse ver, ainda que o fígado já não lhas cozesse como antigamente. Por sorte, há regalos que não têm de se acomodar à vontade do corpo, e a ocasião é quanto bonda para fazer o ladrão. Valha-nos ao menos isso! E foi numa dessas noites de mágoas bem afogadas, quando as botas já tenteavam a estrada, para lhe forçar as pernas bambas a carregar o corpinho encharcado em vinho de volta para casa, que, como era hábito, ao passar pelo Cruzeiro das Almas, deu as boas horas, respeitoso:

 



          -Boa noite, alminhas!


          -Boa noite, grande borrachão!, respondeu-lhe de lá o Edmundo, acachapado dentro da samarra por detrás do purgatório pintado, com um tal tremedoiro na voz e nas mãos, que a custo segurava o estadulho com que jurara abrir-lhe a moleirinha ao verde e moer-lhe o cangote com porrada.


Mas, qual o quê?! Ao Marcolino é que não lhe caíu bem que aquelas almas, de vestes brancas lambidas pelas chamas e mãos erguidas em esperançosa súplica, lhe tivessem tornado as boas noites com tão pouca cortesia. Só não perdeu a compostura porque já a não trazia, mas virou-se caras ao altar, lançou a boina ao chão, e ergueu os braços, furioso com a afronta:


          -Caralho, alminhas, que vos fiz eu p’ra me tratáreis tão mal?


Assim que lhe viu os olhos esbugalhados e as manápulas tesas como garras de lobo que vai atacar, o Edmundo largou a samarra e o estadulho e desandou ligeiro pela rodeira do rio abaixo, de coração mais apertado, nem que tivesse visto lobisomem. Na ocasião, ao Marcolino pareceu-se-lhe que o arcanjo São Miguel deixara para trás as asas e a lança, e botara a fugir, apavorado. Seria, não seria?! Também não era caso para tanto!... Ainda assim, chegou-se mais ao nicho mal alumiado, e esperou que os olhos se quisessem fixar na parte cimeira onde o arcanjo costumava pairar, imóvel e suspenso como um tartaranho. E só voltou a pôr pernas ao caminho quando se convenceu de que ele lá continuava, pintado, de asas farfalhudas e lança em riste, a espetar as sete cabeças de dragão com que o mafarrico teima em arrastar aquelas pobres almas quase purificadas para as profundas dos infernos.

 

Herculano Pombo

23
Out11

Treze Contos do Mundo que Acabou - As voltas que o mundo dá


 

 

 

 

Conto XII

As voltas que o mundo dá

 

          - Vinde ver um carro sem bois, que está lá baixo à beira do Santo!


As chispas daquele alvoroço rastilharam pelas ruas e canelhas mais depressa que as línguas do fogo lambem a agulheta ressequida pelo chão dos pinhais em Agosto. Daí a nada, quem não era manco corria caras ao fundo do povo com quanto fôlego as pernas podiam desgastar, antes que a estranha coisa sumisse ou a levassem de volta as artes do mafarrico. Embora, em boa verdade, não deixasse de causar estranheza que o chisme estivesse aparcado à sombra da capelinha do Santo, sendo que fosse cilada do tinhoso, que estas coisas, como se sabe, não costumam emparelhar…


          - Andai lá, desamparai-me a loja e deixai espaço para a manobra, que o recado está dado e a mim não me falta que fazer ainda hoje!

 


Era o vozeirão do Domingos Lomba a ditar sentenças, empertigado de prosápia, boina descaída sobre os olhos, camisa espeitorada, os braços arremangados de roda do volante e o pescoço torcido para trás, a medir a distância às pedras da parede, enquanto o escape arrotava a fumaceira negra da gasolina em que se empanturravam os cilindros do Prefect. Nunca antes ali tinha aportado semelhante coisa, e muito embora já todos tivessem escutado dizer que havia carros que não precisavam que os puxassem as bestas, contavam-se pelos dedos de uma só mão os que tinham posto os olhos num automóvel. Fosse como fosse, não cabia dúvida, era coisa bonita de se ver, apesar da muita poeira a deslustrar os cromados e um que outro buraco ratado no tecido puído dos estofos. Aquele era o primeiro frete que o Lomba fazia, desde que, aqui a atrasado, tinha ido ao Porto pelo carro - transportar a Berrande os cinco músicos galegos de Castrelos que a Comissão dos Solteiros chamara para animar o povo na festa do Santo, mais as gaitas de foles e o restante instrumental, como pertencia. Bem atacadinho, coube tudo, bem embora o bombo reboludo, de aduelas tamanhas como as de uma pipa, tivesse que ir amarrado na dianteira contra a grelha, de modo que o Domingos por diversas vezes, enquanto durou a viagem, se viu obrigado a verter uns canecos de água do regueiro no fervilhar esbaforido do radiador. Sobre a pele retesada do bombo, maçada de milhentas pancadas, avultavam escarrapachados em perfeita caligrafia uns dizeres a tinta azul, de roda de uma vieira peregrina - Gaiteiros do Camiño. A chusma de canalha que ali se juntou é que não quis saber de gaitas nem de gaiteiros e correu desaustinada, rodeira abaixo, atropelada pelo caincar desesperado dos rafeiros, a enfarinhar-se no polvorinho mágico que os rodados levantavam. Agora, que finalmente o espanto embasbacado cedia lugar à risada das mulheres e os mais entendidos na matéria até botavam faladura de assombrar os pategos, já os mordomos podiam dar ordem para os gaiteiros começarem a arruada. Pagara a pena, sim senhor, aquele desassossego no fim da manhã, e o mais certo era o senhor abade, que havia de estar a chegar para rezar a missa, falar do assunto na prática, mal acabasse de decifrar as leituras sagradas.

 

          A capela não tinha dentro espaço onde todos coubessem, mas a alguns menos devotos pouco se lhes dava ficarem em pé, arrimados às colunas do coberto exterior, que sempre estavam mais à larga e podiam continuar a alanzoar à boca pequena sobre o sucedido, e ao fim, cumpriam a santa obrigação como os demais.


          -Irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo, que padeceu por nós e foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia e subiu ao céu, onde está sentado à mão direita de Deus Pai, com a multidão dos santos, dos anjos e arcanjos de redor da Trindade Santíssima, viestes hoje aqui para honrar o divino arcanjo São Miguel, vosso padroeiro, guardião das almas e carrasco do ardiloso Belzebú, a quem Deus permite desde o princípio dos tempos a tentação dos homens, pobres mortais peregrinos neste vale de lágrimas, filhos do pecado que maculou a harmonia do paraíso terreal, a fim de que neles se possa operar o mistério da redenção, pelo qual enviou até nós o seu próprio Filho, para que a todos nos resgatasse das garras peçonhentas do pecado e nos fizesse partilhar da sua divina glória, até à consumação dos tempos …

 


O Ramiro, sentado cá fora num degrau do cruzeiro, estava em pulgas para ouvir o padre esconjurar um vade retro sobre o carro mais o diabo que o trouxera, e não parava de chiscar o Artur que arreguichava as orelhas para não perder pitada do sermão.


          - Esta conversa já nós a escutámos um cento de vezes… Será que ninguém lhe contou do carro do Lomba?!


          - Espera mais um cibo, escuta até ao fim. Não me finto que as bedeiras das mulheres não lhe tenham já levado a novidade. Até rebentavam, se lho não dissessem!


O certo é que o abade deu por terminada a prática, nos modos e responsos habituais, e nem no assunto tocou. Cá fora, entre a admiração e a desencanto dos que se sentiam defraudados, começava a debandada sorrateira muito antes do ite missa est.  Uns, porque tinham de ir espertar o forno para assar o anho, outros, porque ainda iam botar um olhinho às crias, rápido o largo de roda da capela ficou deserto que nem um final de feira, e só os que estavam dentro, mais por vergonha, que por devoção, mastigaram com impaciência o resto das jaculatórias num latinório mal engrolado, até desandar cada qual à sua vida, a dar conta do almoço melhorado.


          O padre Alfredo estranhou o desassossego das velhas, que não paravam de bichanar, mas não se deu por achado e breve despiu a paramenta e meteu pés ao caminho, direito a casa do Abel Tendeiro, a saber do rancho. Antes da missa já a Carminda lhe tinha lembrado que contavam com ele, se sua reverência fosse servido, como era de hábito nos demais anos.


          - Deus Nosso Senhor abençoe esta casa e todos quantos nela se recolhem. Cá me tendes, conforme o prometido, e olhai que trago fome!


          - Pois vem em boa hora, que acabo de tirar o cordeiro e as batatas loiras do forno. Faça favor de se sentar, que vou abaixo à adega por vinho, e já lhe faço companhia. Oh Carminda, chega-me daí a caneca de quartilho, que quero que o senhor abade prove do pipinho que incertei para a festa; ele depois me dirá alguma coisa…


Desafogou o pescoço papudo do sufoco da sotaina e amesendou-se sem mais cerimónia, e quando o Abel voltou com o vinho, já ele tinha lançado mão a uma tora de presunto velho, de onde a faca tirava lascas de um sabor capaz de quebrar a abstinência quaresmal a um santo.


          - Oh Abel, bota lá então um copo, que já estou a ficar embaçado de tanto comer sem beber nada. É do tal?


          - Beba mais outro, e diga-me lá se não é uma pinguinha para dar vida a um morto!? As uvas são de uma vinha que já o meu pai trazia sobre a Teixugueira, onde bate o sol de manhã à noite e não é tão atreita às geadas como as que são viradas ao povo. O presunto tem dois anos e é para se comer, que está no ponto, senão, quando tal, seca demais e já nem os dentes o rilham como deve ser.


          - Sim senhor, está tudo como pertence e Deus manda, mas ainda tenho que guardar fome para o cordeiro e para as batatas, que do jeito como a Carminda o prepara, não quero que haja segundo em toda a freguesia!


          - E o senhor abade que me diz do caso que sucedeu esta manhã? Por certo já escutou dizer que o Lomba apareceu aí montado num carro, creio que lhe chamava um automóvel profeta, atestadinho com os músicos e mais os instrumentos, e lá vinha na esgalha, rodeira acima, sem besta que o puxasse… Que lhe parece?


          - Automóveis, já há muito que os há na cidade, onde as estradas são mais a direito e o povo parece que tem mais pressa no que faz, agora lá isso do profeta só os que na Bíblia Sagrada anunciavam a vinda do Messias… Não será que o nomeou pela marca, que fosse um Prefect?


          - Decerto seria, mas ficou tudo assarapantado com a criatura e não faltava quem tivesse receio que fosse coisa do demónio… Estavam todos à espera que o senhor falasse na missa a respeito do assunto, mas como não disse nada, a maior parte ainda não está crente. Não seria pior, ao acabarmos de comer, o senhor ir por aí pelo povo e dizer umas palavrinhas que sossegassem mais a gente.


          - Se é essa a questão, lá farei como dizes. Para tudo tem de haver uma primeira vez. Vais ver que de ora em diante depressa se habituam, que o mundo, meu caro Abel, já dizia o sábio Galileu, é uma bola que rebola, sempre em constante movimento no relógio do firmamento, e a cada dia que passa traz sua novidade.

 


Conforme discorria sobre um mundo em mudança permanente, o padre Alfredo não achou melhor exemplo que a travessa do cordeiro posta no meio da mesa, por sinal com o naco mais apetitoso virado para o Abel, e botou-lhe ambas as mãos para a rodar, assim à moda de um globo terráqueo numa classe de astronomia, e deixar o melhor pedaço da carne mais a seu jeito.


          - Será como diz o senhor abade, que lá o lê lá o entende, e quem sou eu para dizer o contrário?! Mas, cá por mim estou em crer que o mundo, sendo assim redondo, tanto anda como desanda! – e deitando também as mãos à travessa girou-a de novo ao revés, de forma que o quarto do cordeiro voltasse para a beira dele…         

 

Herculano Pombo

 


16
Out11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Tudo é o que tem de ser


 

Conto XI

2ª e última Parte

Tudo é o que tem de ser

 

(...)

 

          O moinho das Freitas já de há muito que não moía, desde que o avô do Armindo, o tio Rêpas velho, fechara os olhos. Ele, de rapaz, nunca lhe quis seguir as passadas, sempre se negou a aprender a arte. Justar a maquia, alombar com as sacas para dentro da tremonha, estar sempre com o tento na afinação do aliviadouro e de orelha fita na música raspada do tarabelo, noites de invernia sem pregar olho, não fosse o rigueiro deitar por fora, não, nunca foi ofício capaz de lhe prender a vontade. Afinal das contas, mal ele sabia para o que estava, foi no moinho esquecido que encontrou refúgio, longe do mundo que o buscava como se estivesse no Brasil, mas perto o suficiente para que as passadas amarguradas que a mãe dava à escapula do povo, naquela via sacra dolorosa, a diário lhe garantissem a mantença. Agora, que as silvas tinham tomado conta das paredes e o musgo já cobria as telhas, que dantes alvejavam ao longe com a poalha da farinha, a ninguém passaria pela ideia procurar ali rasto de gente, para mais ao fim de tanto tempo. Mas se as mós de há muito não rodavam, a cabeça dele é que não parava de dar voltas, e por mais que o rigueiro lhe figurasse o tempo a escorrer, ora pressuroso como a água fresca a escapar entre as fragas, logo mais, tão pasmado como a que remoinha represada pelo raizedo dos amieiros, não via a hora de poder sair dali.

 


          - Bem sei que te há-de custar ficar para aqui entocado como um bicho, meu filho, mas mais me custa a mim subir e descer o carreirão, vezes sem conta, sempre com o credo na boca para que me não vejam, e andar às sopas do senhor padre Morais, Deus lhe pague, para que te não falte a comidinha. Ele também entende que deves esperar mais um tempinho, até que sinta que as coisas estejam mais esquecidas.

 

          - Pois, a senhora bem fala, mas eu é que não sei se aguentarei mais tempo sem ver gente, sem desenferrujar a língua. Um destes dias, que me torne a fazer falta, já nem de certas palavras me hei-de recordar… Sabe que mais? Hão-de estar aí os Santos, e só me lembra que me havia de fazer bem dar um pulo até à feira, sarandar pelas barracas a ver em que param as modas, beber uns copos e comer umas castanhas assadas…até me nasce água na boca, quando penso nisso.

 

 

          - Se é só por isso, as castanhas trago-tas eu, com uma garrafinha de jeropiga, que ainda a há-de haver lá em casa, do tempo do teu falecido pai. Agora, pela alminha dele, saíres daqui, por ora é que não, podes deitar a vida a perder.

 

          - Tudo é o que tiver que ser! Depois se verá, consoante as ganas que eu sentir de arejar um cibo. Ao certo, quanto falta para o dia primeiro de Novembro?

 

          Chusmas de magalas, escapos ao aprumo da formatura e aos mandiletes do sargento, caíam em algazarra sobre os matraquilhos do Romualdo, ávidos de vitórias e de desforras, a envergar com brio clubista as camisolas pintadas nos bonecos hirtos de ferro fundido, numa guerra assanhada de fintas, golos e palavrões. A moeda de uma coroa, engolida pela ranhura de chapa que esconde o maquinismo do alçapão, puxada a maçaneta de ferro com decisão, e as sete bolas rolavam ruidosas pela rampa de madeira abaixo, prontas para serem arremessadas, uma a uma, sobre a linha média que divide ambos os campos da contenda. Ali ao lado, do Rei das Farturas desprendia-se o cheiro quente do azeite da fritura e a boca adivinhava o sabor doce e estaladiço da massa fofa polvilhada de açúcar e canela. Logo abaixo, diante de uma plateia de basbaques e pechincheiros de ocasião, o Penafiel despachava mantas, leva três e só paga duas, ao tempo que atafulhava de notas sebentas o alforge de cabedal que trazia a tiracolo. As zebras de riscas e as girafas de olhos meigos e pestanudos, montadas em pêlo por cavaleiros de palmo e meio, indecisos entre o gozo da aventura e o receio da vertigem de um sobe e desce sempre à roda, esperavam pacientes a ordem para o início de nova corrida, nova viagem, que havia de sair sonora de dentro das goelas eléctricas da corneta do altifalante. De fronte da tenda do Cardoso alfaiate, o Armindo arregalava os olhos para uma samarra, gola de pele lustrosa que, pela certa, já tinha feito vários invernos ao raposão que a despiu. O preço, sendo bem regateado como competia, havia de ficar em conta. Enfiou-lhe os braços nas mangas, aconchegou a gola ao pescoço, abotoou e desabotoou os quatro botões de massa -  assentava-lhe como uma luva. Feita de encomenda, não teria saído melhor.

 

 

- Então, ficamos pelo que lhe mandei, ou vou saber de outra?

 

          - Entende que é cara? Você, se é caçador, diga lá se já algum dia pôs a vista numa raposa com um casaco assim!? Era bicho para ter passado ao estreito mais pitas que um cónego de Braga. Leve-a vestida, que vai bem servido, e olhe que pouco ganho nela, só com o que paguei pela pele ao Esfola-Gatos das Boticas, que foi quem ma vendeu.

 

          Estava decidido. Não seriam as duas notas que lhe haviam de cobrir o corpo quando o carambelo de Janeiro começasse a pendurar candeeiros brancos nos ramos dos amieiros. Pena tinha ele de não poder pavonear-se pelas ruas do povo arreado com aquele luxo de samarra, que não ia faltar quem lha invejasse. Levou a mão ao bolso das calças, a puxar pelo dinheiro, mas sentiu que alguém lhe travava o braço, com a bruteza de quem segura um reco sobre o banco da matança. Em menos de três tempos tinha ambas as mãos algemadas atrás das costas.

 

 

          - Quem é vivo sempre aparece! Pelos vistos, não achou pão cozido lá pelo Brasil… Siga lá adiante de nós, que temos muito que conversar quando chegarmos ao Posto. Andando!

 

 

 

 

09
Out11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Tudo é o que tem de ser


 

 

CONTO XI


(1ª Parte)


Tudo é o que tem de ser

 

          Todos os dias, todos quantos Deus deitava ao mundo, andaria já em dois anos, para mais, que não para menos, a mãe lhe levava um taleiguinho com o caldo e o cibo do pão, batatas frescas com umas arganas de bacalhau, umas couves com chícharos bem azeitadas, ovos quando as pitas os não bicavam, uma alheira no tempo das matanças, ora de uma coisa ora de outra, consoante o jantarinho que amanhava também para ela.


          Sempre fora de boa boca, o seu Armindo, toda a vida os dentes dele rilharam bem as côdeas duras, onde até a lâmina da faca rechinava, e o ventre lhe aceitou a comida rebida, melhor que bucho de abade o manjar de Domingo Gordo. Ainda para mais agora, que não estava em condições de regatear, o que à rede viesse era peixe. E graças! Ela, mais não lhe podia fazer, bem lhe bastava já ter cabeça para andar naquele desassossego de vida, mais esquiva que a de um contrabandista, a trocar as voltas aos caminhos e a sair do povo mais sorrateira que a gineta brava, ora a regatear a alvorada aos galos, ora acoitada pelo breu da noite, para que no povo não dessem conta do destino que levava e a suspeita não viesse a denunciar-lhe os passos. Que os vizinhos bem o sabiam, mas era como se o não soubessem, que nunca a boca deles se abria que não fosse para jurar, pela luz destes dois que a terra há-de comer, que o Armindo se tinha raspado para o Brasil e, até à data de hoje, nunca mais mandara notícias. 

 


          Em horas assim, o certo é andar o mafarrico por esse mundo de Cristo, a armar esparrelas para a perdição das almas. Deus nos livre de uma má hora, foi sempre a oração que a mãe, a tia Donzília Rêpas, lhe recomendou que dissesse cada noite, antes que adormecesse, mas já se nem lembra da última vez que a rezou. Agora, enquanto a água quieta da presa escapa à sorrelfa pela adufa e se desfaz contra as penas de ferro do rodízio, em barulho chapinhado de espuma saltarica, de dia e de noite, num nunca mais acabar de horas a fio, sobra-lhe tempo à despaciência de encontrar razões para o que fez.


          Sim, o que tem de ser tem muita força, e naquela ocasião, ou eram os guardas ou ele. O que mais lhe custou a compreender foi como é que se deixou pegar de surpresa. Andava cego com o vício, ou cuidou que, como era domingo, estariam todos para a missa, e nem pela conta deu da chegada da patrulha. O mais certo era andarem já por ali à coca, depois que algum caçador de fora o tenha denunciado, com a inveja por ele se adiantar umas semanas à época da caça.


          Conforme lhe berraram que fizesse alto, e os da frente lhe apontaram os canos das armas, o remédio foi despejar-lhes os dois cartuchos no arcaboiço. Sim, que se um homem se põe com cerimónias numa altura destas, o mais certo é botarem-lhe a mão e levarem-no, sabe-se lá para onde e por quanto tempo, ficarem-lhe com o que tem e porem-no a ver o sol aos quadradinhos até apodrecer de esquecimento. O mais graduado, quando viu os colegas no chão, a escoar-se num sangradoiro, tomou-se de pavor, e as pernas não lhe foram mancas, a raspar-se pela touça abaixo, até que se achou dentro do jipe.


           Daí a umas horas, a casa da tia Donzília parecia um vespeiro de fardas, a revirarem tudo com modos brutos e palavras de poucos amigos, e, ali de roda, não houve casa de gente nem côrte de animal que escapasse à sanha desembestada da autoridade ferida. Do Armindo, é que nem sinal. Tivera ainda tempo e lembrança para se desfazer da espingarda, em lugar onde nem o maligno se lembraria de esconder as almas que rouba. À conta disso, quem não teve mais remédio senão entrar de cúmplice foi o padre Morais. Estava a correr o ferrolho da porta da sacristia quando deu com os olhos nele, mais branco que um lençol de linho fino e um tremedoiro tal nas mãos, nem que tivesse caído ao fundão do rigueiro em manhã de carambelo.


          - Se vens para a missa, não paga a pena correres que já não chegas a tempo! Tu que tens, rapaz, viste lobo ou saíu-te o diabo ao caminho?


          - Entre para dentro da igreja, senhor abade, que tem que me ouvir de confissão.


          - Pois que não seja por isso! Agora a espingarda, deixa-a pousada aí sobre a arca dos paramentos, que na igreja não sinto que te faça falta.

 

 


          Antes que a infinita misericórdia divina derramasse a sacramental barrela purificadora sobre aquela alma enferretada por tão feio pecado, e a mão traçasse em cruz o gesto redentor do Ego te absolvo, já o padre Morais tinha congeminado uma saída para a camisa de sete varas em que ambos se achavam metidos. Ainda assim, em penitência, carregou-lhe forte na conta dos padre-nossos, não fosse ele cuidar que bastava encostar a boca na rede do confessionário e alijar a carga sobre a alma sem fundo do velho confessor.


          - O que não tem remédio, remediado está! Fazes tudo conforme te digo e deixas o resto por minha conta. É melhor que a tua mãe o saiba por mim, e quanto antes melhor, para que não se descaia se a apertarem, que é o que temos de mais certo. Não tarda, vão andar aí sobre ela, que nem algozes. Vai, agora vai em paz, e que Deus te perdoe!


          Caíu-lhe a alma aos pés, assim que viu entrar-lhe a figura negra do padre pela cozinha adentro, com cara de caso, e antes que a boca dele se abrisse, lançou-lhe um suspiro angustioso:


          - Sucedeu alguma coisa ruim com o meu Armindo?!


Era como se o padre tivesse arrancado as cinco espadas da imagem sofrida da Senhora das Dores e lhas tivesse varado no peito a ela, ao direito do coração. Não botou uma lágrima que fosse, como se em toda a vida não tivesse esperado por outra coisa. Ouviu tudo até ao fim sem arredar os olhos dos dele, numa resignação de passarinho encocado pela cobra que o vai engolir, e depois das recomendações, por causa dos interrogatórios e das devassas que aí vinham, fez que sim com a cabeça e murmurou, conformada:


          - Pois seja como diz, se é da vontade de Deus…

 

(continua)

02
Out11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Sete Vidas Tem um Gato


 

Conto X

2ª e última parte

Sete vidas tem um gato

 

(...)

 

Afinal, se mais uma vez o Geirós bateu à porta do inferno, ainda não foi desta que o diabo lha abriu. Já das vezes anteriores assim tinha sucedido. Sim, que numa ocasião foi um tiro nas costas com escumilha de fuzilar os coelhos, que lhas deixou mais arrepiadas que uma pedra de perpianho bujardada a pico fino, e da primeira foi uma sacholada que lhe abriu ao verde um lenho na testa, que faria arrear um vitelo.


          - Tem pata com o demónio, é o que é!, sermonava o padre Januário da Castanheira.


Pois teria, mas quando foi que precisou dele, naquela questão que lhe moveram no tribunal de Vinhais por causa da morte do Pinto da Moimenta, andou com dinheiro à frente em vez de tentar o esconjuro. E bem lhe foi, que quem amargou uns anos à sombra foi o Geirós, ao passo que ele continuou a criar barriga com as primícias dos paroquianos e a ameaçá-los com as penas eternas se lhe faltassem com o respeito ou com as côngruas.


          Não passou grande tempo que voltasse ao povo, amarelo como a cera, escanzelado como um rafeiro, mas pronto para o que houvesse. Depressa ajeitou que fazer, quando o abade novo mandou compor as paredes derruídas do passal, e o tio Augusto, que apesar de tudo tinha certa estima por ele, deixou-lhe três vacas ao ganho.

 


          - Olha lá, e tu já te atreves com o trabalho? Não tens receio que se te abra alguma costura a alombares assim com as pedras?


          - Não senhor. Aquilo são pedras andadeiras, boas de guiar, e o dinheirito, pouco que seja, vem a calhar.

          - É contigo. Mas não abuses da sorte!


Daí a vê-lo outra vez de espingarda aperrada, direito às vinhas da encosta de Soutochão, onde se ouviam cantar os perdigões entontecidos pela chegada dos dias longos, ou sentado numa fraga à espera que o furão lhe botasse fora um laparoto, foi uma questão de dias. Se nem ao menos respeitava o tempo da criação?! Que ainda ficavam muitas para semente, e que o médico o mandara comer canja, mas ninguém lhe quisera dispensar uma pita com que a mandar fazer e, assim sendo, não tinha mais remédio…


          - Essa conversa não é para mim, Geirós, ou os coelhos também são para canja?


          - Saíram-me a tiro, que queria que fizesse? Vossemecê deixava-os ir?

 


          Sempre fora lesto nas respostas, a tal ponto de, com pouco mais de dezoito anos, ter iludido um graduado da Guarda Civil que, se o tem recambiado para Ourense, de onde tinha desertado, o mais certo era ter sido fuzilado. Como não tinha família nem terras a que se prender, resolveu alistar-se no tercio franquista, quando da guerra civil. Depressa se encheu, e resolveu voltar para casa, com a mesma ligeireza com que tinha ido. Já sobre a raia, a patrulha viu-o fardado e botou-lhe a mão. Quem era e ao que andava? Voluntário do tercio, na frente de Teruel, em gozo de vacaciones… E foi quanto bastou para o deixarem pôr-se a bom recato do lado de cá dos marcos da fronteira, até que a guerra acabou. O pior foi quando quis recomeçar a andar ao trelo, que se o agarram, não era só a mercadoria que ficava. Mas sendo a necessidade o que era, e não tendo na arcadura do peito lugar para o medo, sempre que o serviço aparecesse e deixasse alguns patacos, as pernas dele estavam livres para a viagem. De um e outro lado se habituaram os guardas à silhueta desengonçada, que nem os fardos mais pesados derreavam. Só algum que estivesse de novo, e quisesse mostrar serviço, se arriscava a dar-lhe voz de prisão e o mais das vezes recebia chumbo antes que pudesse deitar a mão à mercancia. Também não era de lhes untar as unhas. Cada um ao seu. Se tivesse que gastar do bolso, que fosse em pólvora com que dar troco às balas traiçoeiras deles, e sempre lhe sobraria alguma para, ao outro dia, compor o cinto com umas quantas peças de pena e pêlo. Desta forma, breve criou uma fama que lhe abria mais passagens que uns papéis carimbados. E, ora pulando a raia, ora ajeitando pedras a pico, lá foi gorvernando a vida, umas vezes melhor, outras mais mal, consoante a sorte.


          - Sabeis quem morreu? O Geirós!


          - Até custa a crer! Ainda no domingo, depois da missa, estava a procurar ao Castro se não tinha necessidade que lhe trouxesse alguma mercadoria de Espanha, que ia lá nessa noite… Quem foi que acabou com ele?


          - E tu sabes de alguém que fosse homem para tal? Pelos vistos o maior inimigo dele, e que lhe acabou com a raça, era de quem ele mais gostava, que era o vinho!

 

 

25
Set11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Sete Vidas Tem um Gato


 

Conto X

 

 

Sete vidas tem um gato

 

 

(1ª parte)

 

Assim que os bois pararam no largo da taberna e o eixo untado do carro calou a cantoria lamentosa do chiadoiro, o sargento Santos saltou fora do jipe e lançou um olhar enojado ao novelo de tripas espapaçadas de sangue em que agonizava o Geirós pedreiro.


          - Que tal te puseram, alma do diabo! Desta vez, quem quer que tenha sido, não lhe doeram as mãos…Peguem-lhe com cautela e deitem-no no banco de trás, a ver se ainda chegamos a tempo de o Dr. Rodrigo lhe aproveitar os bocados!


Os guardas-fiscais cumpriram a ordem conforme puderam e lá abalaram com o desgraçado, meio despedido, direitos ao hospital de Chaves, dando-se a pressa que as voltas da estrada permitiam, mais por dever do que por humanidade, já que o Geirós era dos que não se ensaiavam nada para ferrar um zagalote em qualquer um deles, pela calada das noites ensombradas no leva e traz do contrabando na raia das Travancas.



          Quando o tio Augusto o resgatou das unhas assanhadas dos quatro filhos do Almor e o deitou sobre o carro de bois, pouca fé tinha de lhe poder valer a tempo. Ainda assim, mandou recado pelo neto ao Posto da Guarda, que tivessem transporte à mão para quando ele chegasse com um corpo que tinha topado com umas facadas nas tripas. Agora, era questão de não tardar mais que a conta para o tirar do fundo da regota onde lhe estavam a retalhar o corpo à naifada, e que os bois trepassem rodeira acima até ao povo antes que a alma se lhe escapasse do odre esburacado. E se os algozes lho largaram, foi por ser quem era, pelo respeito que lhe tinham. Se é outro qualquer, ainda se arriscava a provar daquela raiva cega que queria lavar com sangue a afronta que o pedreiro tinha feito à família. Mas para ele nunca levantariam a mão, que até era padrinho do mais velho e muito chegado aos lá de casa. Por toda aquela corda de povos o nome do pedreiro incutia pavor. Grandes e pequenos sabiam bem que ele tanto despia a camisa do corpo para a dar a um mais necessitado como tirava o fôlego a quem o contrariasse, sem que o remorso lhe ratasse a consciência. Era para onde estava virado, só que desta vez tinha topado quem chegasse para ele. Bem certo que eram quatro, e novos, mas se fossem outros tinham-se ficado, que o Geirós era teso e mais cedo ou mais tarde, podendo, haveria de tomar desforra. Se o tio Augusto não calha a passar por ali àquela hora com o neto, para carregar um carro de ferranha para as crias, daquele salafrário só havia de ficar a fama, que o corpo tomaria bom sumiço. Mesmo que alguém o chegasse a saber, nunca a Justiça levaria dalí provas que incriminassem um filho da terra. E o alívio que não seria para todos?!

 


          O que fora, o que não fora, estaria por certo o padrinho bem lembrado de o Geirós ter puxado de navalha para o pai deles, o compadre Almor que era uma paz de alma, só porque se negara a emprestar-lhe o dinheiro para ir por uma mercadoria a Verín, e daí em diante foi só esperarem pela ocasião, porque a sentença dele estava lavrada, havia de provar do próprio veneno.


          - O meu compadre se lho não emprestou foi porque não lhe calhava a jeito, que o Geirós pode ser o que for, mas é de boas contas. O que tem é um feitio excomungado… Vós agora voltai para casa e calai-vos bem calados, que eu por mim sei bem o que hei-de dizer, e da boca do meu rapaz não sai nada que não deva.


          Afinal, se mais uma vez o Geirós bateu à porta do inferno, ainda não foi desta que o diabo lha abriu. Já das vezes anteriores assim tinha sucedido. Sim, que numa ocasião foi um tiro nas costas com escumilha de fuzilar os coelhos, que lhas deixou mais arrepiadas que uma pedra de perpianho bujardada a pico fino, e da primeira foi uma sacholada que lhe abriu ao verde um lenho na testa, que faria arrear um vitelo.


          - Tem pata com o demónio, é o que é!, sermonava o padre Januário da Castanheira.

 

 

Pois teria, mas quando foi que precisou dele, naquela questão...


 

(continua)

18
Set11

Treze contos do Mundo que Acabou - Pai de Todos e de Nenhum


 

Conto IX

(2ª e última parte)

Pai de Todos e de Nenhum

 

 

Era sexta à noite, véspera de S. Caetano e, se havia de consumir as horas do serão a entornar copos de tinto, até que o Costa da taberna, farto de aturar quem já estava como havia de ir, o pusesse na rua aos encontrões, como sempre fazia quando queria fechar, meteu pés ao caminho e misturou-se num grupo de romeiros que, a julgar pelo silêncio e compostura, deviam ir a pagar promessa.


          Estava escuro como breu, mas não havia que enganar nas passadas, tal era a chusma de gente, aos magotes, que seguia o mesmo destino. De quando em vez, uma estrela cadente fazia um risco traquina na manta negra do céu. Logo mais, a lua havia de assomar na coroa do Brunheiro e então sim, já os rostos se dariam a conhecer, antes que se trocassem as boas noites. E foi o que sucedeu com a tia Almerinda, mal pôs os olhos naquela figura encolhida, a pisar de mansinho, como se quisesse passar clandestino:


          - És tu, João? Oh ventas de chocolateiro velho, não te fazia por aqui! Bem me eu finto que tu tenhas promessa para pagar! O que tu vens é ao cheiro do polvo do Manolo e dos copos do Anelhe, ou estarei enganada?


          - A senhora sabe bem que eu tenho a minha devoção pelo São Caetaninho, que já me tem valido em certas aflições, mas uma coisa não tira a outra…


          - Pois seja, mas tu vens mais pela borga que pelo sermão. Se te lembrar de dar voltas à capela não pegues no santo ao colo, que ele não está habituado ao balanço e pode estranhar!


          O João sorriu acabrunhado e voltou à mudez costumeira e ao caminhar peregrino, agora mais aligeirado pela descida, já com a visão ao fundo dos clarões tremeluzentes das fogueiras e os vultos ensonados de roda delas. O mais do caminho estava andado, quase sempre ao cimo, ora nas voltas empoeiradas da estrada que saranda pelos pinhais de aroma resinado, ora a matraquear as brochas das botas sobre o lajedo velho da estrada romana, que atalha de quando em vez entre giestais bastos como pelo de cão, onde se acoitam os bichos da noite alvorotados por aquele raro desassossego.

 


          Por estas serras, uma ermida onde quer alveja, entre fragas e torgas, o mais das vezes na coroa de um monte, a dar fé de um milagre e da gratidão por ele, até onde a vista alcança. E, no entanto, aquele pequeno orago, não sendo refúgio esconso de eremitas nem humildoso casebre de franciscanos, estranhamente acontece na dobra irrelevante de uma encosta, onde o nascente tarda e o poente se apressa. Mas tudo quanto lhe falta em largueza de vistas sobra-lhe na frescura das águas mezinheiras, de tal forma que, sendo a festa no pino do Agosto, os romeiros se abeiram pressurosos das três bicas abundosas, mais para lavar as manchas da alma ou para fazer secar os cravos verrugosos das mãos do que para refrescar as gargantas, que para isso não faltam por ali tasqueiros de tenda armada, a vender xaropadas doces ou vinho de três estalos.


          - Veja lá onde põe os pés, que o de baixo é meu!


          - Faça favor de desculpar, nem reparei que estava gente. Ando a ver se arranjo sítio onde me amorrinhar um cibo, enquanto não clareia o dia…


          - Manta é que só há esta, agora espojadouro é o que se queira. Onde cabem dois, cabem três. Traz ao menos com que aquecer a goela?

 

 


Era o Ilídio Choinas, de Vilarinho, recostado na albarda da burra a destilar arrotos etílicos como um alambique de retorta, enquanto o sono não tomava conta do corpo entorpecido. O João acomodou-se conforme pôde e não tardou que o outro engatasse conversa:


          - Vossemecê veio de longe?


          - Da cidade.


          - E vem assim, de corpo bem feito? Olhe que as noites já arrefecem… Lá se diz ele, no Barroso, primeiro de Agosto primeiro de Inverno.


          - A gente a andar não tem frio.


          - E se calha foi-lhe botando uns canecos, que aquecem melhor que as mantas e carregam menos?!

O assunto parecia ser do interesse de ambos e muito embora o João fosse de poucas falas, é certo e sabido que o comer e o falar estão no começar. Daí a nada, quem os visse cuidaria que toda a vida se tinham conhecido, tal era a sem cerimónia com que trocavam a pichorra do vinho e tasquinhavam a côdea de pão centeio com uma lasca de três dedos de carne gorda que o Ilídio trazia para a merenda.


          - Escute lá, vossemecê se é de Vilarinho conhece o morgado?


          - Não conheço eu outra coisa! Assim ele me conhecesse a mim, que sou a cara chapada dele! Aquele judeu cuida que o hão-de enterrar com a fortuna, mas não falta por aqui de roda quem venha sobre ela, mal o filho da puta feche os olhos e o demo lhe venha arrematar a alma. Só os que afiaçam que são filhos dele, comigo, no povo, conto quatro… Emprenhava as criadas, punha-as fora quando começavam a avultar do ventre e botava as culpas nos galegos, que no tempo da guerra asilavam por ali. Elas, coitadas, com receio ou por vergonha calavam-se, eles desandavam antes que a coisa desse para o torto, e o morgado, como era rico, sempre ia cerrando alguma boca mais aberta. Enquanto pôde, nunca aquele excomungado sossegou o vício nem criou vergonha!


          - Olhe, se quer saber, a minha mãe, que Deus tem, de rapariga, serviu na Casa Grande, e eu, ao que parece, também serei filho de um galego que, por esse tempo, mataram na raia do Cambedo.

 

Herculano Pombo

11
Set11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Pai de Todos e de Nenhum


 

Conto -IX

(1ª Parte)


Pai de todos e de nenhum

 

          Mal entrada ainda a manhã, o João Lamúrias avançava pela estrada da Ponte Nova, ao ritmo lento do seu pedalar sofrido, para mais um dia, igual ao de ontem e ao de trás de ontem, a encarvoar-se no sufoco infernal do forno da cerâmica. O corpo derreado em esforço, mal arroupado numa ganga indecisa entre o negro das manchas e o azul desbotado, os caracóis do cabelo, de um loiro ferrugento, que só o repassar dos dedos enfarruscados penteava, e a cara curtida a fogo e fumo, onde os olhos sumidos se incrustavam tal dois seixos pequeninos no fundão negro do rio, era como se a angústia, ela própria, em pessoa, animasse a bicicleta. Quando o apito das oito se esganiçava na ordem para pegar ao serviço, já ele tinha rendido o colega do turno da noite e atestava de carvão a primeira vagoneta.


          O nome e o ar acabrunhado foi tudo quanto lhe ficou da falecida mãe, a Engrácia Lamúrias, bem embora nunca ninguém a ele lhe tenha escutado um ai que seja, da boca para fora. A velha, essa sim, mal caçava alguém que lhe desse ouvidos, desfiava rosários de amarguras, uns atrás dos outros, e já para o fim, deu em bichanar sozinha, horas a fio, até que se lhe acabou de vez a corda. O pai, ou quem quer que o tenha engendrado, nunca se deu ao conhecimento. Falava-se de um refugiado galego, que teria sido imolado na raia do Cambedo por um carabineiro franquista, a quem os rojos também não deram tempo de receber o louvor. Semanas depois, quando um colega de ronda deu com o corpo amarrado a um pinheiro, já as formigas lhe tinham comido os olhos. Mas de tal pai ou de outro qualquer que fora, quem ao certo tudo saberia, de fonte segura, já cá não estava para contar. Enquanto foi viva, a tia Engrácia sempre se descartou, consoante pôde, das insinuações maledicentes das vizinhas mais metediças:


           - Tu se o sabes e eu que o sei, cala-te tu que eu me calarei!, assim lhes respondia invariavelmente, com altiva indiferença, para depois murmurar à boca pequena:


           - Bedeiras de merda, se cuidam que tiram nabos da púcara, estão bem enganadas!

 


          O João nunca deu troco a esta sorte de conversa. Desde que se conhecia, sempre partilhara o tecto e o caldo apenas com a mãe, que mais se lhe dava agora que fosse de pai galego ou barrosão?! Sim, que não foi uma vez nem duas que o seringaram com a ideia de reclamar a paternidade ao morgado de Vilarinho, em casa de quem a mãe tinha estado a servir quando se encontrou prenhada. Mas disso estavam bem livres, se cuidavam que ele era homem para ir remexer assim no passado, sem mais motivo que a fraca ilusão de um proveito serôdio. Ultimamente, então, não faltava quem insistisse com ele, que o morgado estava já com os pés para a cova, sem filho nem filha, e se haviam de ser os labrostes dos afilhados a rapinar da Casa Grande tudo quanto o velho tinha aforrado, que se apresentasse ele, sempre era do mesmo sangue… Seria, e quem lho afiançava? Ainda se a mãe lhe tivesse sequer ao menos alguma vez feito menção de alguma coisa, algum desabafo que fosse... Mas não, até parecia história, como uma mulher que nunca se cansava de dar à língua, a propósito de tudo e de nada, tinha sido capaz de aferrolhar daquela maneira um segredo, a pontos de o amortalhar com ela. Que tal não seria o carrego na consciência para que nunca, nem na penumbra do confessionário, os lábios dela tivessem sussurrado sequer um nome?!


          Era sexta à noite, véspera de S. Caetano e, se havia de ...

 

(Continua)

04
Set11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Ida e Volta


 

Conto - VIII

Ida e volta

 

          Certas manhãs de Março, as veigas do Vale Abrigoso acordam enevoadas, ou talvez apenas despertem estremecidas, por escutarem logo cedo o praguejar mal humorado dos corvos que rebuscam carronhas nas montureiras de esterco, alinhadas como poios, pelas lavradas. Os freixos e os amieiros, ainda em pelote à espera do verde novo das folhinhas, recortam silhuetas de esqueleto por entre a fiapagem densa das brumas. E lá no céu, pendurado por detrás das cortinas diáfanas do nevoeiro, decerto para que aquelas aves negras o não roubem, está um queijo amanteigado, destes que se fazem com cardo de coalho e leite do rebanho, amortalhado nas ligaduras brancas das névoas mal entretecidas. Perante tamanha palidez, fica uma pessoa sem entender se é o sol que já nasceu ou se foi Deus que se esqueceu de recolher a lua da noite passada. Ainda assim, sente-se-lhe o hálito morno de Primavera e apetece preguiçar. É um começo morrinhoso para dias que, não raro, acabam incertos, numa ventania repentina ou no fustigar raivoso das bátegas, grossas e escuras como zagalotes ou geladas e brancas como ovos de um ninho enjeitado. Lá diz o ditado, Março marçagão…

 

 

 

          - Isso é uma cerdeirinha nova, rapaz, e as cerdeiras poda-as só a canalha, quando trepa por elas no tempo das cerejas. Dá antes umas tesouradas valentes nos mamões que nasceram de roda desta pereira, que quanto menos eles mamarem mais engrossam depois as peras. E se costumam ser boas, estas peras joaquinas!

 

É sempre tempo de aprender, e o velho Acácio, a quem o Inverno trazia tão tolhido de reumáticos, quis aproveitar aqueles dias do Entrudo para ensinar a arte de podador ao filho, que estava de engenheiro lá para o Porto. As árvores fruteiras poucas mais eram que uma dúzia, mas ele é que já não tinha pernas para andar empelouricado nelas, e ao filho, talvez um dia mais tarde, sempre haveria de aproveitar um saber velho que, conforme vão os tempos, costuma morrer com quem o tem.

 

          À mocidade de agora já não importam as terras e os carinhos que elas pedem, consoante a época do ano e as normas perpétuas do Almanaque. O mais delas, por aqui de roda de São Cibrão e por esta corda de povos, está de poulo, e não é raro verem-se as giestas medrarem à disputa com as silvas, onde antes foram olivais que davam um azeite fino, digno de arder em luz na lamparina do Santíssimo ou de adubar umas couves com chícharos da ceia do senhor abade. E se o melhor estrume é o que vai agarrado às botas do dono, bem podem estas terras esperar, numa impaciência recalcada de sempre noivas, o regresso adiado dos que partiram em busca de melhor vida por Franças e Araganças. Porque eles, os antigos homens delas, quase sempre só no Agosto é que voltam por uns dias, para farrear e ostentar sucessos suados e amargados, ou se o fazem de vez, é já no Outono da vida, para garantir que a santa terrinha que os viu nascer lhes possa comer depois os ossos.

 

 

 

          - Então, meu pai, que outros trabalhos se fazem nesta altura?

 

          - Nas árvores faz-se também a enxertia. O melhor tempo para pegarem os enxertos é este, conforme vai agora. Sempre escutei dizer que no Entrudo pega tudo…

 

          - E nas terras, não se mexe?

 

          - É bom tempo para botar os estrumes nas que já estão mexidas e dar uma boa lavra nas outras, para lhes enterrar as ervas, e semear depois as batatas do cedo.

 

          Nunca lhe passou pela ideia que o filho se viesse a interessar por estas coisas. Mas é bem certo que o tempo tudo amadurece, até as ilusões da vida. Quando, há uns anos atrás, o foi meter no comboio para o Porto, com as malas atafulhadas de roupa e a cabeça cheia de sonhos e de recomendações chorosas da mãe, lembra-se bem de o Chefe da Estação lhe ter dito:

 

          - Deixe lá, senhor Acácio, que o futuro da mocidade já não está aqui na terra. Se por cá ficasse não saía da cepa torta, e ao menos enquanto estudar vê-se livre das correias da tropa e escusa de ir arriscar a vida em África. Olhe, esses que daqui vejo partir de mochila às costas é que até fazem doer o coração. Sabe Deus os que por lá ficam, e quantas vezes voltam mutilados… Este vai para o bem bom, assim ele tenha juízo e faça pela vida!

 

          - Bem sei, mas a minha Glória não há quem na console e até eu chego a perder o sono, só de pensar que nas terras grandes nem sempre as companhias que se arranjam são as melhores, e a gente faz muitos sacrifícios para que não lhe falte nada por lá. É da vontade dele, só espero que não nos envergonhe.

 

 

 

          - Vão ver que não se arrependem, e daqui a meia dúzia de anos têm em casa um engenheiro, que sempre é outra coisa bem melhor do que ele ficar pela aldeia, agarrado à sachola, à espera que os escaravelhos não comam as batatas, ou que a vitela não morra empertigada. Isto por aqui está visto!

 

          - Não digo que não, mas a gente fazia gosto que ele voltasse para a terra, senão um destes dias só ficam os velhos…

 

          - O bom filho à casa torna! E, graças a Deus, já vamos tendo um que outro doutor que não se deu por lá com a barafunda da cidade e resolveu fazer vida cá na santa terrinha. Olhe, por falar em voltar, quer-se rir com o que me sucedeu um destes dias, quando estava a passar os bilhetes para o comboio das nove e meia? Apareceu por aí o Valoura, aquele rapaz meio atoleimado que costuma andar com as ovelhas da Quinta dos Codeçais, todo penteado e de camisa lavada, e desatou a berrar para dentro da bilheteira: - Quero um bilhete de ida e volta! – De ida e volta para onde, oh Valoura?, perguntei eu sem me desmanchar. – Para aqui, seu caralho, para onde é que havia de ser?! Foi uma risada que nem queira saber! Afinal ia só até Vila Real a uma junta médica, por causa da reforma, e já cá está outra vez. Como vê, tudo na vida tem uma volta…

 

Herculano Pombro

28
Ago11

Treze Contos do Mundo que Acabou - Com as barbas enxutas


 

Conto VII


Com as barbas enxutas

 

          - Não, senhor doutor, hoje não adianta perder o tempo. Consoante sopra este ventinho lá da Sanabria e entra pela gente dentro, até os ossos se estremecem… Quando assim é, enfiam-se nos tocos do raizedo, não há o diabo que as faça sair.


          - Parece que pariu a galega! Trago as mãos como o carambelo. Já troquei a medalha umas quantas vezes e nem sinal delas. Será da lua, Manuel, que te parece?


          - Ao meu pai, que Deus tenha, toda a vida lhe escutei dizer que a melhor altura para caçar umas trutas é o quintar da lua nova, e se for o caso de começar a merujar uma chuvinha, então é que elas se põem doidas… e a gente tem que ir com o que diziam os antigos.


          - Pois não digo o contrário, mas eu lembro-me de as ter apanhado com qualquer lua e até a nevar já caíram. Hoje é que não será dia… Olha lá, e a tua mulher tem passado melhor?


          - Com a graça de Deus, desde que o senhor doutor olha por ela já nem parece a mesma. O mal às vezes anda a comer por dentro sem a gente dar conta, e quando se vai para lhe atalhar já não tem remédio. Naquela noite, em que mandei recado para o senhor doutor vir a fugir, cuidei que ela se me ficava. O senhor foi quem na salvou!


          - Já não tinha que ser. Mas agora fica por vossa conta, que a saúde e a doença, muitas vezes, vão no que a gente come, e estou convencido de que ela abusava um bocado da carne de porco e do fumeiro, da pinga do vinho, dos pimentos do vinagre, tudo coisas que o fígado dela aceita mal. Já sabeis, muito cuidado com o que se mete à boca!


          - Isso bom é de dizer, senhor doutor, mas se a gente passa o ano inteiro a criar o requinho, para que há-de ele ser senão para se comer?! E tirando de quando em vez uns peixinhos do rio, ou uma pita, por festa, que outra coisa havemos de pôr na mesa com as batatas e o cibo do pão?


          - Bem, lá farás como melhor entenderes. Fome não passais. Ao que eu me quero referir é aos abusos, e tu bem compreendes o que eu quero dizer…



          Já o avô e o pai eram moleiros e ele herdou-lhes a arte e as pedras do moinho, mais a água do rio que as punha a girar de roda. A barca, amarrada no amieiro grosso que bebe no remanso da presa, essa foi obra sua, quando a Guerra Civil de Espanha obrigou os povos de ambos os lados da raia a partilhar misérias e a tecer cumplicidades escondidas. Daí a nomeada de Manolo da Barca, como passou a ser conhecido. Mas se lhe ficou o nome, foi-se-lhe o ofício de barqueiro, quando as poldras que, meia légua rio acima, davam passo incerto de Eiriz para a Lobeira foram elevadas à categoria de ponte, só de um arco, mas ainda assim garante mais seguro da necessária travessia, mesmo que os Invernos trouxessem muita água. Depois disso, só um que outro pescador, no tempo das trutas, ou os raros fregueses do moinho, com os burros carregados de sacas e de moscas, passavam a partilhar com ele breves momentos daquela solidão conformada.

 

         

O doutor Teófilo era médico na vila e tinha tal ilusão pela caça e pela pesca que, no seu calendário, o ano tinha apenas duas estações. Há mais de quarenta anos, desde que voltara de Coimbra com o canudo, que nas manhãs sagradas das quintas e dos domingos, as mãos esqueciam o estetoscópio e o receituário para se agarrarem com mística paixão à cana ou à caçadeira, consoante corria a época. Uma vida inteira a carcomer os dias, e quantas vezes também as noites, com as dores e as misérias dos outros, a representar sempre a última esperança para os que cuidavam enganar a morte, e afinal era só ali, naquelas fragas do fim do mundo, que encontrava sentido para a vida que levava, enquanto ferrava uma truta ou estourava uma perdiz. E de todas as vezes, como se fosse a primeira, a ansiedade lhe ratava o sono breve da noite, antes que os galos alvorassem a madrugada e a mulher lhe rezasse o costumado responso:

 

          - Não sei que desassossego tens nesse corpo, que nem dormes nem deixas dormir! Sabes bem que não devias andar sozinho por aqueles ermos, que na tua idade basta às vezes assentar mal um pé… Se um dia te acontece alguma coisa, quero saber quem te vale.

 

          - O corpo só há-de sossegar quando morrer, o espírito é que não pode passar sem beber daquela paz. E não fiques em cuidados, que se houvesse alguma novidade, o Manuel havia de dar relação de mim.

 

 

          As águas mil que o Borda d’Água sempre prometia, nesse Abril, correram o céu de lés a lés nos odres inchados das nuvens, foram e vieram no inconstante leva e traz dos ventos, mas se alguma chuva caíu não foi bastante para amaciar o rigor dos dias e menos ainda para anuviar a gélida transparência das águas rápidas do rio. Quando assim era, só mesmo o tremeluzir metálico de uma amostra de pintas garridas podia atiçar o apetite aletargado de alguma truta. Anos havia em que as súbitas enxurradas tomavam as águas com o terriço escuro das encostas e nada melhor que o oscilar dengoso do rabo de uma minhoca a roçar as pedras do fundo. Era isco garantido para compor a cesta. Se o rio clareava, à míngua de água, e o sol da Primavera cumpria a obrigação, empatava-se um anzol de tamanho apenas bastante para empalar duas remisgas, desalojadas de dentro dos seus casulos cravejados de areias finas, ou das croças redondinhas, de pauzinhos eriçados. Longe vinham ainda as tardes abafadas do fim de Maio, quando a zanguizarra dos grilos, que se punham a afinar a caixinha de música à porta dos buraquinhos, fazia dos lameiros um arraial. Os tolinhos deixavam-se apanhar a meio do concerto, cegos pela lascívia de atrair as fêmeas, para depois dançarem sobre a água, pendurados do anzol pelo colarinho negro do fraque. Tal bailarico endoidava as trutas, que, se preciso fosse, saltavam fora a abocanhá-los antes mesmo de tocarem na água. E, por fim, chegava o tempo dos saltões de ventre verde reboludo e patas dobradas em mola, que tantas vezes, por culpa daquela irrequietude saltarica, acabavam a empanturrar as trutas velhas, entrincheiradas a meia água, na penumbra escura, por debaixo da rama fresca dos amieiros. Meses bons, os da fartura! Mas, por agora, e enquanto o tempo se mantivesse assim áspero, o jeito era bater todos os cantos do rio, os remoinhos detrás das pedras e o final remansoso das correntes, armar-se de paciência obstinada, lançar mil vezes, corricar outras tantas, trocar de amostra, ou de medalha como lhe chamava o Manolo, até que alguma se resolvesse…

 

          Já perto da noite, enquanto acrescentava um caneco de água quente à vianda do reco, que recozia no pote grande suspenso da gramalheira, batatas miúdas, restos de couve troncha e dois punhados de centeio, a Conceição começou a agoirar a demora do doutor Teófilo.

 

          - Olha lá, Manuel, está-me a fazer espécie que o senhor doutor ainda não tenha passado para cima. Queira Deus, queira, que não lhe tenha sucedido nada…

 

          - Vão sendo horas, vão. Mas há alturas em que elas caiem melhor rente à tardinha e, se calha, ele nem se dá conta que depressa escurece como breu. Espera-se mais um cibo, e quando tal, o melhor é eu ir saber dele.

 

         

 

O ruído sibilante do petromax fazia companhia ao Manuel que, apesar de conhecer as voltas do rio como a palma das mãos, caminhava cauteloso, conforme o clarão da chama lhe ia desvendando as árvores e as fragas que desenhavam a margem. À medida que avançava, ia dando berros e apurando o ouvido, na esperança de escutar resposta que lhe devolvesse o ânimo. Mas do doutor Teófilo nem sinal. Quando, ao fim, deu com os olhos no vulto, caíu-lhe a alma aos pés! Estava sentado sobre uma urze, tolhido de frio, ensopado até aos ossos, e tremia que nem varas. Chamou-o pelo nome, mas não dava acordo. O tremedoiro dos dentes castanholava que metia aflição. Rápido o pôs às carrachulas e, apesar do carrego que quase lhe fazia deitar os bofes pela boca, dali a casa foi num pulo.

 

          - Conceição, bota umas carqueijas no lume e vai saber de umas peças de roupa minha, que vejas que lhe sirvam! Vá, mexe-te!

 

          Deitou-o no escano e foi-lhe tirando a roupa molhada enquanto a mulher não voltava. Cobriu-o com a manta e chegou-lhe um copo de bagaço à boca.

 

          - Beba, senhor doutor, que não há nada melhor para aquecer o corpo.

 

          Aos poucos, o calor do lume crepitante confortou-o e começou a querer balbuciar palavras sem nexo. A Conceição voltava com uma camisa de flanela, umas calças e uns carpins de lã e já o doutor Teófilo pedia uma malguinha de caldo quente.

 

          - Ora, assim já é outro falar. Para susto já nos chegou!

 

          - Vocês desculpem lá este transtorno. Conforme embarrei com o cacifro na barriga de uma fraga, desequilibrei-me e caí ao fundão. Encheram-se-me as galochas com água e já me custou sair do rio. A cana e o carreto devem estar engastalhados na rama de algum amieiro. Quando te der jeito, Manuel, dá lá um salto a ver se os encontras, que tenho estimação neles.

 

          - Esteja sossegado, que amanhã, em sendo dia, já aparece tudo.

 

          - Oh senhor doutor, nem assim se lhe esmorece o vício? Razão tem a sua senhora, que isso é desassossego para lhe durar a vida toda!

 

          - Também tu, Conceição? Deixa-me lá rapariga, que daqui em diante é que ela me vai moer o bicho do ouvido, ainda para mais se o vier a saber por ti, que bem se vê que estás mortinha para lhe levar a novidade.

 

          - Não deixa de lhe ser bem feito. Agora que já lhe dá para a risada, ouça lá esta: o senhor doutor nunca ouviu dizer que não se apanham trutas com as barbas enxutas?

 

 

Herculano Pombo

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