8 - Chaves, era uma vez um comboio…
Texas o comboio kimvoio
Vi-o a primeira vez ainda na penumbra dos amanheceres, a passar no fundo do estradão, a minha mãe de futuro em riste, levava a Zé por volta das sete e tal da manhã à estação das Pedras, para ir para o colégio de Vila Pouca estudar, grande feito à época, bem admirado bem invejado o andar, andar a estudar e andar de comboio.
Lembro-me da ternura da Sra. Albertina que morava no figueiredo e dizia que a mãezinha, a d. Aninhas tinha ido buscar a Zeizinha ó Kimvoio… E era assim… Como se o comboio, além das pernas rodas nos carris, tivesse também braços e desse às mães vindos de um abraço ou colo qualquer, os filhos sempre em segurança, num devagar se vai ao longe…
Sempre me fascinaram as rodas nos carris, num movimento para mim espiral que quase me fazia trocar os olhos por conseguirem ir todas ao mesmo tempo, a meu ver eram elas a voz e o instrumento da orquestra que geravam o som tac a tac a tac o tal pouca terra pouca terra pouca terra, gerando nas carruagens um movimento de samba folclórico ou de risadinhas constantes por cócegas.
CP0029 – Locomotiva: Não identificada, Data: 1977, Local: Vidago, Portugal, Slide 35 mm
Depois das rodas, a máquina, ora altiva cheia de soberba por ir à frente e puxar as carruagens como quem traz de arrasto os filhos distraídos, ora histérica em guinchos ensurdecedores a exigir atenção de algum incauto que saia desgarrado e ocupe a sua linha. Fumadora compulsiva, na altura, creio, mata ratos ou definitivos, carvão direto aos pulmões deixando no percurso lufadas de fumo, ambulantes nuvenzinhas de sonho esvaído num implacável céu.
À conta da sua falta de pontualidade a Nélia a Kika e o Nelo ainda levaram uma boa reprimenda, a Nélia umas boas chineladas no rabo, por assustarem as pessoas nas madrugadas dentro de um lençol com uma pilha, além de colocarem cartazes escritos das caixas de papelão, nas portas das pessoas fazendo jus às suas alcunhas.
Ouvia falar dele com frequência sazonal aquando de passeios de grupos , algumas criticas à sua lassidão.
CP0005 – Locomotiva: CP E209, Data: Não datado, Local: Régua, Portugal, Slide 35 mm
Um dia aí para uns 35 anos , vim da régua com ele, trouxe-me direitinha com calma que mais valia chegar tarde neste mundo, que mais cedo ao outro, cheguei a casa meio fusca com algumas faúlhas que se escaparam para nos enfarruscarem à socapa, sabendo que só dávamos conta quando chegássemos a casa, pois não dispúnhamos de espelhinho ali à mão.O balanço foi positivo, gostei, mas naquele tempo eu não sabia ainda o seu valor acrescentado , eu só tinha pressa, ele não estava ara aí virado para as pressas.
Lembro-me sempre com um arrepio na espinha de um senhor desesperado que decidiu atirar-se à linha quando ele passou, além das sistemáticas ameaças de senhoras que no auge da deceção pensavam alto em matar-se com a ajuda dele do kimvoio , do texas.
Às vezes era o bode expiatório para justificar a presença de indigentes na cidade , dado ser em Chaves o fim da linha, os viajantes peregrinos tinham de sair e ficar à espera ,surgindo por uns tempos como estranhos na cidade.
CP0037 – Locomotiva: CP E209, Data: 1973, Local: Não identificado, Portugal, Slide 35 mm
O Mestre Nadir a propósito do meu apelido Seixas contou-me que no seu tempo de estudante de faculdade quando regressava do Porto, o revisor de nome Seixas mandava sair as pessoas nas subidas do comboio texas e pedia ajuda aos homens para empurrar, entrando todos os passageiros novamente nas descidas. Foi sempre algo incompreendido, talvez por deixar tempo aos passageiros para irem às frutas e às vinhas do caminho buscar uvas para comer, enquanto brincavam às corridinhas com o texas que se deixava facilmente apanhar, ainda foi protagonista de excursões a Vidago levando miúdos e graúdos a ver a paisagem numa alegria intemporal…
Depois com o tempo envelheceu, reformou-se e jaz nas memórias, além da carruagem atrás da antiga Estação e da máquina recuperada por algum saudosista perto da linha de Curalha.
E a nós deixou-nos o memorando de o lembrar aos nossos filhos e netos se os tivermos…
Isabel Seixas
In “Memórias de uma Linha – Linha do Corgo – Chaves”, Agosto de 2014
Edição Lumbudus – Associação de Fotografia e Gravura
Fotografias – Propriedade e direitos de autor de Humberto Ferreira (http://outeiroseco-aqi.blogs.sapo.pt)
Gentilmente cedidas para publicação neste post.