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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

06
Abr20

Quem conta um ponto...


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487 - Pérolas e Diamantes: Nós até temos potencial

 

Nós até temos potencial para sermos pessoas decentes. Aprendemos desde jovens que nunca podemos discordar dos superiores e nunca devemos concordar com os subordinados. Apesar de querermos ser estimados por ambos.

 

Nós adoramos clichés e simplificações revestidos de uma boa dose de verdade. Democracia é mesmo assim: devemos gostar das pessoas em abstrato e não em concreto

 

A nossa revolta, ou indignação, manifesta-se com ligeiras quebras de disciplina. Nós tentamos sempre manter as coisas dentro dos limites.

 

Quando decidimos ir para a frente pensamos que podemos voltar para trás. Gostamos de aguentar. Aguentamos até na hesitação. Mas não aguentamos os paradoxos.

 

Os portugueses têm tendência para apreciarem tiranos com voz doce.

 

Uma coisa nos distingue de muitos povos do mundo: a vulgaridade. E a docilidade. Somos muito compreensivos.

 

Algumas vezes a nossa presença de espírito faz-nos ter razão, mesmo quando a não temos. E isso acaba por confundir-nos.

 

Nós, por cá, gostamos muito de pertencer a panelinhas ou grupos para que na confusão geral se safem os protegidos. Os melhores de nós adoram organizar e dinamizar o “Clube dos Chatos”.

 

Nós somos muito de arrumar as coisas, desarrumá-las e voltar a arrumá-las de novo.

 

Gostamos muito de rezar, menos por esperança e mais para mostrar respeito.

 

A verdade é que continuamos a ver o Sol acima da linha do horizonte. E somos capazes de aguentar uma tempestade e ainda nos rirmos disso.

 

A verdade é que também temos sido heróis na resistência à hostilidade dos outros. Apesar de insistirmos na arte da ilusão, continuamos a caminhar de cabeça erguida. Continuamos a manter uma certa fé na humanidade.

 

E vivemos confortáveis no meio de centenas de insignificâncias que dão algum sentido à vida. Nós somos daqueles que prensam os trevos de quatro folhas nos meios dos livros pensando que eles dão sorte.

 

Caros compatriotas, ao contrário daquilo que nos dizem, a pobreza é degradante. A realidade e sempre permeável. O entendimento através da perspetiva das classes sociais é sempre enganadora.

 

Estar habitualmente entre pessoas que partilham os mesmos pontos de vista é não só redutor, como basicamente estúpido. Ninguém consegue aprender ouvindo o seu próprio eco.

 

Mas por que razão desejamos parecer-nos com as pessoas que desprezamos?

 

A verdadeira sabedoria resulta sempre de um certo sofrimento.

 

Quer queiramos ou não, o país continua a ser provinciano. E não existe nada mais ridículo do que a leviandade dos benzedores que se querem armar em curandeiros dos aprendizes de feiticeiro.

 

Todos nós sabemos que a esponja totalitária costuma funcionar em momentos dramáticos. Sempre foi assim. E sempre assim será. Mas todos sabemos o resultado da sua praxis: ilibar os culpados e condenar os outros.

 

Os medíocres pensam que a ordem está sempre na ponta do bastão e que a inteligência e a cultura são potencialmente perigosas, ou diabólicas.

 

A maioria dos nossos dirigentes e estadistas não passam de epifenómenos, mal saem das luzes da ribalta já ninguém se lembra deles.

 

Nós passamos do fatalismo à exaltação, e vice-versa, com uma facilidade digna de estudo.

 

A verdade é que a esquerda radical ao investir cegamente contra a União Europeia faz o jogo do neofascismo. E ele, como todos sabemos, é um vírus perigoso. O problema é que essa esquerda é, também ela, geneticamente virulenta. Apesar das mutações ensaiadas, tanto o neofascismo como o esquerdismo leninista, não deixaram de ser letais quando chegaram ao poder. 

 

A ofensiva antieuropeia continua a ser uma espécie de ato gratuito e desastroso planeada por políticos revanchistas, populistas ou fracassados.

 

A União Europeia não pode ser um espaço de oposição inconciliável entre sindicatos e empresas, entre povos e nações ou entre tecnocratas e intelectuais. Tem que ser uma realidade política que nos englobe a todos. A todos sem exceção. Só dessa forma deixaremos de ser provincianos.

 

Mas uma coisa temos de exigir, que essa União Europeia, quando nos escreve, seja clara e se deixe, definitivamente, de nos enviar cartas com trechos onde não sabemos se nos elogia ou nos ofende. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, o que não deixa de ser patético.

 

João Madureira

 

 

 

23
Mar20

Quem conta um ponto...


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486 - Pérolas e Diamantes: O efeito aperitivo

 

Sim, nós somos gente muito determinada e decidida. Desejamos sempre duas coisas ao mesmo tempo: ter uma profissão liberal e ser funcionário público; viver no campo e manter a casa na cidade; levar uma vida simples, mas sem renunciar a um certo e urbano conforto.

 

O sonho continua a ser o de viver no campo, apesar de vivermos na cidade, numa casinha com uma grande lareira, junto ao regato da floresta, longe do bulício e das pessoas indiscretas. Nem todos somos ricos, mas podemos viver com dignidade.

 

A verdade é que agora tudo é simpático, inofensivo, divertido, agradável e perfeitamente trivial. A pós-modernidade é mesmo assim: falar de carros, viagens, concertos, festivais gastronómicos, política, futebol e das alegrias dos fins de semana.

 

Agora já não se fazem partos, mas cesarianas.

 

Agora admiramos o caramanchão do jardim e sentamo-nos numa poltrona de orelhas a ouvir música clássica, mantendo acesa a chama dos subterfúgios. E quando vamos de férias para junto do mar gostamos de fotografar o voo acrobático das gaivotas. E também apreciamos filosofar com tiradas tipo: “Já todos sabemos que essa bonita coisa do progresso um dia vai correr mal. Mas, seja lá como for, a geringonça vai continuar a funcionar. Os nuestros hermanos bem que nos copiaram.”

 

Enquanto andamos sobre as dunas, ouvimos o leve marulhar das ondas.  Depois olhamos para setembro e dizemos que a sua luz costuma ser ambígua. Então o mar fica liso e começa a lamber a areia da praia.

 

De facto, até nos podemos dar ao luxo de ouvir a música de Wagner e achar que ela é grandiloquente e mesmo intimidatória, estremecendo nos assentos por culpa do som das trompas e das trombetas.

 

Claro que o bulício e as multidões citadinas acabam por nos aturdir, mas sempre é melhor do que andar na montanha-russa. Por vezes também é avisado visitar espíritas para nos fazerem a carta astral. Sempre é melhor do que pedirmos a uma cigana para nos ler a sina. Os tempos são outros.

 

Paris e a sua vida libertina ainda faz parte do nosso imaginário. E Sartre. E o existencialismo. E Che Guevara. Até usamos a sua t-shirt quando vamos de férias para Varadero. E rumba que rumba e torna a rumbar. Que caliente. E um mojito na Bodega del Medio ainda nos traz à memória Ernest Hemiguway e o Velho e o Mar.

 

Apesar de tudo, continuamos simples e sentimentais. A imagem de um pardalito molhado e frágil ainda nos comove até às lágrimas. Por vezes sentimo-nos assim perante a grandeza do mundo.

 

E a História, nos seus pormenores grotescos, não deixa de nos surpreender para também nós surpreendermos os outros com as suas pitadas de ironia. Então não é que na Roma antiga a procura de criados anões era tanta que alguns pais fechavam os seus filhos para os impedirem de crescer e dessa forma conseguirem que os nobres os contratassem para servirem em sua casa. Curioso, não é? Dizem que até possuíam uma língua própria para que a concorrência não pudesse compreender as suas conversas. É possível que esta mesma língua fosse utilizada, nessa mesma época, no Egipto, entre os anões que ocupavam altos cargos nas cortes dos faraós e também entre os humildes pigmeus que viviam nas margens do Nilo, cujo aspeto e hábitos foram descritos por Aristóteles e Plínio. Dizem que essa língua chegou mais tarde ao Centro da Europa onde recebeu o nome de Geheimnissprache der kleinen Leute.

 

Quem bom está este gin Nordés!

 

A Bolsa continua em baixa. Dias melhores virão. Não há bem que sempre dure e mal que nunca acabe. Menos nuvens, mais claridade.

 

Nuvens leves como penas de pato desenham linhas finas no céu azul-celeste. A relva do jardim brilha no seu peculiar tom de verde. Ouve-se então o leve restolhar das folhas das árvores que se transforma depois num sussurro e depois numa canção. Inquietação... inquietação... é só inquietação... Que bom está o gin tónico. Ingerir álcool provoca fome, o que nos leva a querer consumir mais e depois a ter mais fome...

 

Mark Forsyth explica que “nós evoluímos para beber”. Por isso é que beber tanto é tão revolucionário como burguês. Que bom está este mojito.

 

Lemos Afonso Cruz e embebedamo-nos de conhecimento. O atual excesso resulta da evolução social: “Os bibliófilos acumulam livros, os gulosos gordura, os ciumentos pessoas, os agiotas dinheiro, os sábios sabedoria, e nenhum deles se sacia.”

 

Este whisky não é velho o suficiente para se beber com água lisa barrosã. Mas não se pode desperdiçar, misturado com Coca-Cola ainda celebra com alguma qualidade Cuba Libre. Pátria ou muerte... Ah, ah, ah, viva a revolução. Será possível um crescimento contínuo? Este efeito aperitivo já se transformou em vício vai para algum tempo.

 

João Madureira

 

16
Mar20

Quem conta um ponto...


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485 - Pérolas e Diamantes: Confusões

 

A confusão é enorme. A confusão aí está. A política hoje não é de esquerda nem de direita. É apenas um sentimento depressivo que se torna endémico porque é partilhado por muita gente. Não é um fenómeno partidário. É apenas uma doença repartida que se espalhou um pouco por todo o lado.

 

Por isso, hoje o meu olhar sobre as coisas é mais branco, mais calmo e mais relaxado. A provocação, a existir, está mais do lado de quem lê do que do lado de quem escreve.

 

Estamos encerrados em bolhas que não comunicam e ninguém está disposto a escutar opiniões diferentes. As pessoas são surdas e mudas em relação ao que se passa fora da sua zona de influência.

 

Hoje lê-se tudo de forma literal, não se dá espaço à ironia. Não há lugar para a metáfora. A cultura atual não se preocupa com a arte. Ninguém sabe o que há de fazer com ela.

 

Parece que todos nós nos sentimos vítimas da diversidade, da inclusão e da representação. Generalizou-se a ideia de que é preciso reescrever a História. Tudo isso para suprimir a verdade em nome da representação global, da inclusão e da diversidade. Tudo isso, além de complicado, é enganador. Os progressistas querem, a toda a força, impor a sua agenda.

 

A grande parte das novas narrativas falsificam tanto as más como as boas ideias.

 

Criamos um avatar de nós mesmos que nos representa. Temos medo do que realmente somos.

 

Janet Malcolm, no seu livro “The Journalist and the Murder”, sintetizou tudo isto na perfeição: “A sociedade posiciona-se entre extremos de uma moralidade insuportavelmente severa, por um lado, e, por outro, de uma permissividade perigosamente anárquica, aceitando-se tacitamente que nós podemos quebrar as regras da moralidade mais austera, desde que o façamos de forma silenciosa e discreta. A hipocrisia é o lubrificante que mantém a máquina a funcionar de forma aprazível.”

 

Fala-se muito em empatia mas a verdade é que as pessoas cada vez têm mais dificuldade em compreender porque é que sentem aquilo que sentem.

 

Por isso é que as pessoas apreciam heróis marginais como o Joker, que durante a noite não quer nada, nem sequer dinheiro, pois pretende criar simplesmente o caos. Pensam que a única maneira de consertar o sistema onde vivem é destruindo-o.

 

Esta é a lógica que levou Trump ao poder. A política passou a ser um sentimento caótico. Hoje as pessoas são apreciadas pelas suas transgressões.

 

Vivemos no tempo em que líderes como Trump e Bolsonaro têm o desplante de explorar a alarvidade, a estupidez e a ignorância como se fossem conquistas democráticas.

 

Nós devemos ser honestos com os nossos gostos e também com os nossos desgostos.

 

No entanto, o historiador Yuval Noah Harari defende que no século XXI a principal ambição humana, para além do controlo da fome, das epidemias e da guerra, será a tentativa de transformar os humanos em deuses. Ou seja, o esforço será na criação da capacidade de manipular e criar vida.

 

Na sua opinião, o pior cenário é o de a inteligência artificial vir a empurrar centenas de milhões de pessoas para fora do mercado de trabalho, criando assim uma nova “classe inútil”. As pessoas perderão o seu valor económico e, por arrastamento, o seu poder político, enquanto, ao mesmo tempo, a bioengenharia tornará possível a criação de uma pequena elite de super-humanos.

 

O melhor cenário reside na possibilidade de as novas tecnologias poderem vir a libertar todos os seres humanos do fardo das doenças e do trabalho pesado e permitir que todos explorem e desenvolvam o seu verdadeiro potencial.

 

Os três desafios existenciais do futuro são de natureza global. O mesmo é dizer que só serão resolvidos através de uma cooperação global.

 

Uma coisa temos de perceber: por incrível que pareça, não existe contradição entre nacionalismo e globalismo. Já que o nacionalismo democrático não é odiar estrangeiros. Nacionalismo é amar os nossos compatriotas. Por isso é necessário cooperar com os estrangeiros. O mesmo é dizer que os bons nacionalistas devem também ser bons globalistas.

 

Mas a grande revolução tecnológica prevista para o século XXI é preocupante já que consiste na capacidade de piratear os seres humanos. E piratear seres humanos significa que os pirateadores entendem melhor os seres humanos do que eles se entendem a si próprios.

 

Mas o que tiver de ser será. Ou não será. Os truísmos aí continuarão a estar para o que der e vier.

 

João Madureira

 

09
Mar20

Pedra de Toque


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482 - Pérolas e Diamantes: Dupond e Dupont

 

 

O economista francês Thomas Piketty, no seu novo livro “Capital et Ideologie”, afirma que a ideologia é o motor do capitalismo e que a esquerda social-democrata na Europa e nos EUA se transformou numa espécie de casta beneficiando da globalização e da revolução do conhecimento.

 

A sua tese é que a social-democracia necessita de ser refundida. Piketty batizou esta nova corrente política de “socialismo participativo e internacionalista”, mas faz questão de esclarecer que retira do termo “socialista” qualquer tipo de carga marxista ou totalitária.

 

Esta refundação, proposta por Piketty, tem a ver com o aburguesamento da social-democracia, porque hoje mais não é do que a emanação de uma nova elite, que denomina de “elite brâmane” para lhe atribuir o colorido da casta alta hindu.

 

Na sua opinião, o capitalismo atual do Ocidente está dominado por “duas elites”: a social-democrata à esquerda (que corresponde em Portugal ao PS) e a “mercantil e financeira” à direita (entre nós representada pelo PSD/CDS).

 

Ambas ganharam mais do que todas as outras camadas sociais com a denominada “mundialização hipercapitalista e digital a partir dos anos 90”.

 

Segundo o professor do ISEG, Alexandre Abreu, “a corrente dos partidos social-democratas foi cooptada pelo neoliberalismo, o que é essencial para a compreensão de duas coisas: o sucesso do próprio neoliberalismo e o colapso da social-democracia”.

 

E tudo isto aconteceu porque a história recente da Europa varreu a famigerada “terceira via” do denominado trabalhista Tony Blair ou o neue mite (novo centro) do SPD alemão, de Gerhard Schröeder. E fez colapsar o PASOK na Grécia e o Partido Socialista Francês.

 

Foi o distanciamento político por parte dessas elites partidárias em relação às massas populares e as dinâmicas inerentes à globalização e à revolução do conhecimento que provocaram um autêntico exército de vítimas nas economias mais desenvolvidas.

 

O economista francês dedica muitas páginas do seu livro à análise sociológica da “anatomia de um divórcio entre a esquerda eleitoral e as classes populares”.

 

Piketty refere que a razão de isto tudo ter acontecido se deve ao facto das classes médias terem sido vítimas da “tromba de elefante”. Ou seja, os 40 % do meio viram os seus rendimentos serem reduzidos desde os anos 80, enquanto os 50% de baixo captaram 12% do crescimento do rendimento real por adulto e o 1% do topo captou a fatia de leão de 27%. Segundo este estudo, os do meio deverão continuar a perder até 2050 cerca de dois pontos percentuais, enquanto o 1% do topo irá arrecadar seis pontos percentuais. 

 

Um dos casos mais gritantes fora das economias desenvolvidas é o Brasil, que, por muito que isso custe a certa esquerda autista e folclórica, revela o erro de palmatória do PT de Lula e Dilma Roussef. A questão não radica no facto dos tais 50% de baixo terem beneficiado com as presidências do Partido dos Trabalhadores. O problema é que isso fez-se inteiramente à custa das classes médias. O PT, ao contrário do que apregoa, não fez uma verdadeira reforma fiscal que mexesse com o poder económico dos 10% de cima, que detêm mais de 55% do rendimento, muito acima dos EUA, da Rússia ou mesmo da Índia.

 

É a anomalia produzida pela tal tromba do paquiderme que está a alimentar o populismo. Piketty considera que o termo mistura tudo “numa sopa indigesta” que se deve evitar a todo o custo. Ele prefere falar de social-nativismo, relativamente ao nacionalismo com demagogia social, e de nativismo bilionário, ao estilo de Trump.

 

Relativamente às políticas públicas, o economista francês defende um verdadeiro choque fiscal sobre as fortunas, nomeadamente para financiar novas medidas e ampliação do estado social, com destaque para o ensino e também a criação de uma espécie de herança de 120 mil euros dada pelo fisco a todos os cidadãos quando fizerem 25 anos.

 

A maior preocupação do Thomas Piketty, e que o levou a escrever o livro, é a de tentar perceber o porquê da longevidade da desigualdade nas sociedades capitalistas modernas.

 

Descobriu que “o capital, desde que constituído, reproduz-se mais depressa do que o crescimento da produção”.

 

A solução, para Piketty, não é a promoção da lutas de classes para atingir o domínio dos meios de produção, mas uma revolução fiscal.

 

A sua conclusão é que a desigualdade “não é económica ou tecnológica, é ideológica e política”.

 

João Madureira

 

02
Mar20

Quem conta um ponto...


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484 - Pérolas e Diamantes: Chiquita

 

No dia em que um cavalheiro irlandês apresentou a liliputiana Chiquita à estátua da liberdade, a cubana, admirada, terá dito: “Nunca pensei que fosse oca.” Ao que ele terá comentado: “Aprenda a lição. A liberdade nunca é tão maciça como parece.”

 

Foi então que Chiquita, surpreendida com a aparência das coisas, e para não parecer frívola e ter tema de conversa, começou a ler jornais. Até porque o seu anfitrião em Nova Iorque, Patrick Crinigan, escrevia sobre política externa.

 

A cubana descobriu então que no final do século XIX o planeta era bem mais complicado do que julgava. Os turcos assassinavam arménios, os etíopes lutavam contra os italianos, os britânicos sufocavam as rebeliões dos africanos, os hindus digladiavam-se em guerras religiosas, os chineses e os japoneses andavam à porra e à massa, os filipinos sublevavam-se contra os espanhóis e os anarquistas, esses simpáticos rapazes, punham bombas em todo o lado.

 

Nessa altura existia guerra em Cuba entre espanhóis e rebeldes autóctones. Todos os dias, o jornal norte-americano World publicava notícias sobre a maior ilha das Caraíbas. Os pontos de vista eram tão díspares que havia até aqueles que consideravam que o governo dos EUA devia intervir no conflito e ajudar Cuba a obter a liberdade. Mas eram movidos por ideias e interesses diferentes: as pessoas comuns por simpatia ou por considerarem que já era tempo de Espanha renunciar às suas prosápias de grande metrópole; os comerciantes, porque vislumbravam um novo mercado para os seus produtos; e os clérigos porque se viam a converter milhares e milhares de católicos e ateus cubanos ao protestantismo. Ele há gente para tudo.

 

Com o livro de António Orlando Rodrigues também ficamos a saber que, no início do século XX, o Central Parque de Nova Iorque tinha um carrossel com cavalos pretos, pardos e brancos, todos com bocas abertas, grandes dentes e as línguas de fora. Ou que as escadarias que iam do terraço à fonte onde estava o Anjo das Águas tinha trinta e seis degraus, nem mais nem menos, e possuíam um patamar entre o degrau dezoito e o dezanove.

 

Também por lá existia um pavilhão chamado Little Carlsbad onde se podiam tomar trinta tipos diferentes de águas minerais; um coreto pintado com cores garridas onde uma banda dava concertos ao ar livre, enquanto umas gôndolas trazidas de Veneza navegavam no lago.

 

Que saudades dos bons velhos tempos onde o Mall era um constante vai e vem, e vem e vai, de meninas e cavalheiros exibindo as suas lindas roupas.

 

Como não há mal que sempre dure, também não existe bem que não acabe. Veio então a Depressão que acabou com a louca alegria dos anos vinte. As pessoas perfumadas e elegantes, que antigamente visitavam o parque, e nele permaneciam sentadas longas horas tagarelando nos bancos de madeira e granito, tijolo e ferro fundido, foram substituídas por grandes quantidades de desempregados sujos que ali passaram a viver. Como não tinham casa, o parque tornou-se o seu refúgio.

 

Uns dormiam debaixo das pontes e outros em barracas feitas com o que por ali havia: pedaços de cartão, tábuas e ferro-velho. E nem é bom recordar o fedor que havia no Belveder devido ao facto desses pobres infelizes defecarem e urinarem em qualquer lado.

 

No desespero, de se verem sem casa nem comida, essa horda de pobres quebrava as cercas, os bancos e as pérgulas, cortava as árvores e riscava os monumentos.

 

Nem sequer as estátuas de bronze se livraram do vandalismo: à do caçador índio roubaram-lhe o arco e a do tigre com o pavão na boca foi literalmente arrancada da pedra onde estava colocada. Aquilo não era propriamente inquietação, inquietação, era mesmo raiva e desespero.

 

O narrador de “Chiquita”, quando foi visitar o parque, encontrou alguns italianos que com ele tinham vivido na pensão. Quase não os reconheceu, de tão porcos que estavam. Esteve tentado a aproximar-se e a cumprimentá-los, mas olharam-no com tanto ódio que mudou de ideias. Diz que até sentiu vergonha de sair à rua limpo e bem vestido. Coitado do narrador. 

 

A verdade é que, tal como o narrador, este vosso amigo, não sendo capaz de justificar essas atrocidades, mesmo passado um século, também não é capaz de as condenar. Provavelmente, vivendo nessa época, e se não tivesse arranjado trabalho, teria feito o mesmo que esses sem teto, destruindo tudo, porque não existe no mundo nada que mais desespere e embruteça do que o sentirmo-nos num beco sem saída. E, bem vistas as coisas, mais vale que as pessoas desabafem cortando o arco a um índio de cobre do que a cabeça a um agente da autoridade.

 

João Madureira

24
Fev20

Quem conta um ponto...


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483 - Pérolas e Diamantes: Os mestres de culinária

 

Estou em crer que a memória é caprichosa. Aprendemos que o respeito pelos senhores começa pelo modo como se vestem os seus criados.

 

Nós gostamos da sopa, mas apreciamos sobretudo o momento de saborear o prato principal. Geralmente é a partir daí que ficamos mais bem-dispostos e começamos a contar piadas.

 

As pessoas espertas dizem respeitar a disciplina. Já as pessoas inteligentes rejeitam-na por lhes parecer uma ameaça existencial.

 

Nestas coisas das oportunidades da vida nunca sabemos bem se estamos a nadar contra a maré ou a seu favor. Pelo que, na maioria das vezes, tendemos a fazer um pouco das duas.

 

Há por aí muita gente disposta a fazer qualquer coisa por dinheiro. Existem também muitas pessoas dispostas a fazer coisas por despeito ou egoísmo. Mas existe também gente que faz coisas por um ideal e não aceita dinheiro, venha ele de onde vier, nem que lho enfiem nos bolsos à força.

 

Há aqueles que andam de óculos de sol mesmo que sejam míopes e não necessitem deles. Existe outro tipo de gente que utiliza sempre os óculos corretamente graduados para ver a realidade.

 

Andamos à procura de encontrar sentido nesta falta de sentido. Quem quiser perceber a política tem de ser entendido no absurdo.

 

A política falha quando temos de confrontar o mito com a realidade. A maioria das pessoas passa a vida a fazer coisas sem acreditar, a fingir.

 

Aprecio as convicções autênticas, não aquelas que são impulsionadas por motivações de ganho, inveja, vingança ou autopromoção.

 

A grande maioria dos católicos acredita que foi Cristo quem inventou a ganância e a água-pé.

 

Talvez seja por isso que os políticos de agora são bem mais agradáveis, sorridentes, polidos e até mais gordinhos do que os de antigamente. São fofinhos, como dizem as mulheres mais ternurentas e as crianças bem criadas. A fome dos políticos é muito agradável. Por isso é que grande parte das crianças pretende ser, quando for grande, mestre de cozinha. As estrelinhas Michelin são dos troféus internacionais atualmente mais cobiçados. 

 

Antigamente comiam-se tortulhos com carne. Agora não, a coisa fia mais fina. Confecionam-se pratos deliciosos com boletos vulgares, boletos anelados, boletos-ásperos, cantarelos e sanchas. Tortulhos não porque fazem mal ao coração. E também porque são proibidos em França e na Alemanha. Os mais requintados apreciam mesmo uma sopinha escura de cogumelos com miúdos de lebre, à maneira dos alemães. Afinal também somos europeus. E bem sucedidos. 

 

Temos até um presidente que é bom a cultivar rosas sem se picar nos espinhos. O que não é fácil para quem se fartou de plantar laranjeiras e depois de as podar.

 

Aquele seu amor quase infantil pela pátria e pelos portugueses não é fingido. Faz parte da sua dedicação à causa da liberdade. E é, acima de tudo, uma questão de princípios.

 

Acho que todos nos revemos no seu falar amavelmente nasalado, que não revela nenhuma origem social ou regional, e na sua lengalenga hipoteticamente triste e lamentosa.

 

Seguindo a definição do chefe da Feitoria João Rodrigues (dono de uma estrela Michelin), Rebelo de Sousa é, bem vistas as coisas, um bom chefe de cozinha pois possui todas as qualidades que o qualificam para tal desempenho: é uma pessoa generosa, sabe exigir, tem disciplina, organização, técnica, e sabe dar. Sobretudo beijos às velhinhas e sandes de queijo aos sem abrigo.

 

Temos também um primeiro-ministro que lamina bem cogumelos em frente das câmaras da televisão do programa da Cristina enquanto assobia uma modinha, ou duas, e sorri como somente ele o sabe fazer.

 

Não sei porquê, mas, por vezes, apetece-me, em troca das suas partilhas culinárias, oferecer-lhes pegas para a cozinha, pois aventalinho já eles possuem.

 

Depois, quando os oiço falar em liberdade, com aquele sentimento todo, penso que a deles é muito melhor do que a minha, do que a nossa. A deles é respeitável. A nossa é de brincadeira. Estou em crer que são diferentes. Muito diferentes. O melhor é cada qual ficar com a sua e fazer bom uso dela. Claro está, se a nossa não atrapalhar a sua e a dos seus.

 

Por vezes, estas coisas ditas pós-modernas têm o sabor de velhas histórias requentadas.

 

João Madureira

 

 

17
Fev20

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481 - Pérolas e Diamantes: O triunfo da mediocridade

 

Claro que todos temos direito à nossa opinião. Era o que mais faltava. Mas, entendamo-nos, ter direito a ela não quer dizer que a opinião de uma pessoa tenha tanto valor como a de outra. Por exemplo, a opinião de um ciclista sobre esse tipo de desporto tem de valer mais do que a minha, já que não o pratico.

 

Há muita gente zangada por aí e é avisado não nos colocarmos na sua linha de fogo. Quase sempre os mais ignorantes são os mais atrevidos. A ignorância consegue conferir razão a quem a não tem. A sabedoria costuma assentar em algumas justificadas incertezas, dúvidas e consensos.

 

Também existem os que assumem uma humildade fingida, revelando, provavelmente, uma finalidade quase pedagógica. Sobrevoam as instituições procurando uma pretensa autoridade académica. Mas a realidade condu-los, quase sempre, à sua medíocre cátedra. Dizem que se comovem com os livros. É mentira. O seu espírito está saturado de fingimento. Quando lhe fazem um convite cultural, costumam desculpar-se com a saúde da mãezinha que vive noutras terras. Ou então com os netos.

 

Nas letras, como na política, a troca de fichas é muito grande. Quase ninguém se entende. Quase ninguém as entende. Nivelam-se os bons com os médios e estes com medíocres. Muitos até conseguem ser premiados. A literatura atual é feita de verbetes, falsetes e revela uma falta de sensibilidade e gosto que roça a indigência cultural.

 

Desconfio sempre daqueles que escrevem mais do que aquilo que leem.

 

Como defendeu Samuel Johnson, é muito melhor ser maltratado do que esquecido, até porque é muito mais fácil ter desígnios do que agir.

 

Aos zangados faltam-lhes estímulos emocionais. Andam sempre à procura de desculpas.

 

Todos precisamos de experienciar. Coitados dos que necessitam de se enfurecer para se sentirem vivos.

 

Há pessoas que não gostam de coisas velhas, mas também não gostam das novas. Gostam é de se chatear. De se zangar.

 

Os homens passeiam os cães e os jovens costumam ir para os jardins mostrar o seu ar enfadado, as calças rotas nos joelhos, enquanto enfiam o olhar nos ecrãs dos seus telemóveis inteligentes. Alguns namoram, mas com gestos estudados.

 

Outros vibram e dizem amar por antecipação.

 

Há ainda uns outros que dizem atribuir demasiada importância à leitura, desenvolvendo uma espécie de obsessão neurótica pela leitura e pelos seus supostos benefícios morais.

 

Não apreciam plantas, flores, mas penduram na parede a reprodução emoldurada dos girassóis de Van Gogh.

 

A frivolidade descontraída das conversas não é em si mesma um problema. O problema está na sua permanente continuidade.

 

Querem ver.

 

Primeira: Um estudo realizado nos Países Baixos revelou que as mulheres que ingerem uma dieta rica em fruta e legumes têm mais probabilidades de ser mães de meninas.

 

Segunda: Uma loja em Lisboa prometeu roupa de graça às primeiras cem pessoas que aparecessem no primeiro dia de saldos vestidas apenas com roupa interior.

 

Walt Disney já tomou de assalto os governos ditos democráticos do Ocidente. Os donaldes, os patetas, os tios patinhas, as minies, os irmãos metralha e os miqueis governam-nos com a frivolidade costumeira.

 

É também confrangedora a monocultura dos nossos académicos e das ditas elites. Sente-se uma certa vibração no ar que pode possibilitar a violência. Como já disse, anda por aí muita gente zangada.

 

A coexistência é amarga, rancorosa, ressentida.

 

Tornou-se evidente que a esquerda portuguesa é uma intrujice e a direita não passa de um anacronismo. Já o centro é o zero absoluto. Nem sim, nem sopas. Já não existem fronteiras, mas apenas zonas económicas.

 

Com a retórica do serviço público, os políticos procuram essencialmente a sua própria promoção social. E falam-nos, ad nauseaum, com a máxima sinceridade, a máxima responsabilidade e a máxima solidariedade. Iludem-nos desde o zero até ao infinito.

 

A definição doutrinária da direita e da esquerda vive na perpétua guerra de alecrim e manjerona entre pequenos grupos, que, pretextando uma qualquer dissidência ideológica, se juntam à volta de pequenos caciques.

 

Perante a desordem democrática, a mediocridade triunfa.

 

João Madureira

10
Fev20

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480 - Pérolas e Diamantes: Capitalismo, aparelhos e clientelas

 

Os comunistas numa coisa têm razão: o problema é sempre o capitalismo. O dito capitalismo produz muita riqueza mas distribui-a mal. Um filósofo avisado disse algo como isto: quando o capitalismo vai bem, metade do Planeta tem fome; quando o capitalismo vai mal, o Planeta inteiro tem fome. Quer isto dizer que o capitalismo é um paradoxo.

 

Do ponto de vista económico, não existe alternativa ao capitalismo. A solução reside na capacidade de o manobrarmos de forma a torná-lo mais humano.

 

Por muito que lhe custe, a esquerda tem de saber criar modelos económicos que giram riqueza e só depois reparti-la. Ou seja, tem de aprender a criá-la.

 

É claro que a esquerda tem razão quando fala em justiça social. O problema é que a economia não funciona melhor existindo planeamento central.

 

Todo o planeamento centralizado contraria o que entendemos como natureza humana, pois limita a inovação, estimula a preguiça e conduz à subserviência.

 

Basta olhar para a Venezuela para entendermos onde nos leva uma economia estatal que pretende mandar em tudo.

 

Sem tentar ser demagógico, é bom lembrarmo-nos que Keynes, ao mesmo tempo que defendeu políticas que estimularam a criação de empregos e o combate à pobreza, considerou que “existem justificações sociais e psicológicas para significativas diferenças de rendimentos e riqueza”.

 

A sua defesa da intervenção do Estado na economia foi no sentido de salvar o capitalismo e não de o superar. Convém não esquecer que era um liberal.

 

O planeamento falha na maioria das vezes porque é impossível saber quando uma crise vai acontecer. Além disso, a inovação inclui sempre risco, probabilidades acrescidas de falhanços, concorrência. E também falências.

 

O socialismo real, construído a Leste, difundindo a ilusão de mais segurança e igualdade, apenas limitou a liberdade e construiu um futuro de pobreza.

 

É raro o português que se diz entusiasmado e convicto no dia das eleições. O sentimento é que escolhemos entre um mal maior e um mal menor.

 

Claro que a realidade também tem o seu peso: somos um país pequeno e com uma economia muito aberta, produzimos aos ziguezagues e qualquer aumento do consumo interno aumenta o défice e a dívida.

 

Os números positivos da nossa economia são ainda anémicos, o que equivale a dizer que é necessária muita prudência. A concorrência com o exterior é muito desigual.

 

É frequente a obsessão pela igualdade criar mais desigualdade. Não podemos limitar a ambição e a criatividade. O controlo excessivo é uma fixação leninista que conduz à mediocridade. O Estado move-se sempre devagar. E quanto maior é mais devagar se movimenta.

 

A vida democrática implica riscos e responsabilidades.

 

No entanto, todos verificamos que neste país tudo está feito para ser administrado e gerido pelos amigos, companheiros ou camaradas.

 

A lógica é simples: os partidos são geridos pelos seus aparelhos e o Estado é gerido pelos partidos. Os que dominam dividem entre si as prebendas.

 

O tal “regime de substituição” a que os governos recorrem servem para fazer nomeações permanentes e colocar nos devidos lugares os “boys” e “girls” a um ritmo frenético.

 

Os nossos partidos são partidos de Estado, muito deles criados quando a nossa democracia nasceu, em abril de 1974. Ou seja, o Estado criou com urgência alguns partidos ditos democráticos. Por isso continuam a viver encostados a ele. É a sua carga genética.

 

Atualmente, as carreiras partidárias fazem-se em lugares do Estado, os lugares ditos políticos, que incluem as assessorias e os contratos de fornecimento de serviços ao Estado. Alguma da legislação apenas é feita com o intuito de justificar a sua existência. Depois “os sábios” do regime são contratados pelos órgãos de informação para iludir os pacóvios, justificando “os senadores”. Alguns conseguem até alcançar o mais alto cargo da nação bajulando o poder e os poderosos.

 

O problema é que os lugares para distribuir já não chegam, por isso os partidos, todos eles sem exceção, precisam de criar mais. Pegaram agora na boa ideia da descentralização e começaram a vendê-la ao público.

 

O Estado tem de crescer para tranquilizar a sofreguidão dos partidos.

 

Quando os lugares estiverem preenchidos, logo virá a regionalização, outra boa ideia que a sofreguidão da clientela partidária tratará de destruir.

 

Não podemos esquecer que foram os banqueiros, os grandes escritórios de advogados, as lideranças partidárias, os ministros, ex-ministros e empresários espertalhuços os que nos levaram à bancarrota.

 

O PS está de barriga cheia e o PSD, coitado, apenas deseja umas sobras na mesa do Orçamento.

 

Só não sabemos onde isto nos irá levar.

 

João Madureira

 

 

03
Fev20

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479 - Pérolas e Diamantes: A Luisinha

 

Logo de início, a guilhotina teve três nomes característicos: a Máquina, a Viúva, a Barbeadora. Logo após ter decapitado o rei Luís, passaram a chamar-lhe Luisinha. Só depois adquiriu o seu nome definitivo.

 

Dizem que Guillotin protestou, mas fê-lo em vão, alegando que aquela lâmina mortal, suspensa num espécie de portal alto sem porta, emoldurando o vazio, que semeava o terror e atraía multidões, não era obra sua. Ninguém prestou atenção a este médico inimigo declarado da pena capital.

 

Apesar de tudo aquilo que argumentou, as pessoas continuaram a acreditar que ele era o pai dessa peça de aço afiado que se tornou na atração mais popular das praças de Paris.

 

E as pessoas, a maior parte delas, continuam a acreditar que Guillotin morreu guilhotinado. É mentira, pois o médico exalou o seu último suspiro deitado na sua cama, com a cabeça colada ao corpo. Este artefacto mortal, com comando elétrico na sua versão ultramoderna, continuou a cortar cabeças até 1977. A sua última vítima foi um emigrante árabe executado no pátio de uma prisão de Paris.

 

Durante a Revolução Francesa, eram os proprietários de terras que incendiavam as próprias colheitas para a sabotar. A fome começou a rondar as cidades. Os reinos circundantes ergueram-se em pé de guerra, tentando combater o seu contágio, pois ela desrespeitava as tradições e ameaçava, como refere Eduardo Galeano, “a santíssima trindade da coroa, da peruca e da sotaina”.

 

Dentro de portas, e acossada de ambos os lados, a revolução fervilhava. O povo seguia circunspecto o que se fazia em seu nome. Poucos assistiam aos debates. O tempo urgia. Era preciso tomar lugar nas filas para conseguir o que comer. As divergências levavam ao cadafalso. Cada fação era dona da verdade absoluta. Exigiam para si o poder absoluto. Os discordantes eram apelidados de contrarrevolucionários, aliados do inimigo, espiões estrangeiros e traidores da causa.

 

Os girondinos, representantes da alta burguesia, acossados pela revolução, defendiam posições moderadas. Já os jacobinos, representantes da pequena e média burguesia, constituíam o partido mais radical, liderado por Robespierre.

 

Instalou-se então a ditadura jacobina.

 

Foi nessa altura que se começaram a guilhotinar pessoas que eram contra a revolução. As execuções tornaram-se espetáculos populares, pois aconteciam diversas vezes ao dia, em atos públicos. Depois do rei, chegou a vez da sua mulher, Maria Antonieta, perder literalmente a cabeça.

 

Marat não morreu na guilhotina porque uma louca o apunhalou quando tomava banho.

 

Saint-Just acusou Danton, dizem que inspirado por Robespierre.

 

Danton foi condenado à morte. Pediu então que não se esquecessem de exibir a sua cabeça perante a curiosidade pública e deixou os seus tomates de herança a Robespierre, afirmando que ele iria precisar deles.

 

Passados apenas noventa dias, Robespierre e Saint-Just foram decapitados.

 

Dessa forma desesperada e caótica, a república trabalhava, sem se aperceber, para a restauração da ordem monárquica. A revolução que anunciou a liberdade, a fraternidade e a igualdade, acabou por abrir o caminho ao despotismo de Napoleão Bonaparte, que, contrariando a ideia inicial, acabou por fundar a sua própria dinastia.

 

O hino mais famoso do mundo nasceu de um momento famoso da história universal. O seu autor, Rouget de Lisle, compô-lo numa só noite. Decorria o ano de 1792, com as tropas prussianas a avançarem contra a Revolução Francesa. Em defesa da revolução acossada, o exército do Reno partiu para a frente. O hino de Rouget insuflou coragem às tropas. Não se sabe bem porquê, deu a volta à França, acabando por aparecer na outra ponta do país. Os voluntários de Marselha marcharam para o combate entoando essa canção motivadora, que passou a ser conhecida como “A Marselha”. Toda a França fez coro. Ao seu som, o povo invadiu o Palácio das Tulheiras.

 

Rouget de Lisle foi preso por ser suspeito de traição à pátria, ao ter discordado da guilhotina. Quando saiu da cadeia, vinha sem farda e sem salário.

 

Passou a deambular pelas ruas, corrido pela polícia e comido pelas pulgas. Quando afirmava ser ele o pai do hino revolucionário, riam-se na sua cara. 

 

João Madureira

27
Jan20

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478 - Pérolas e Diamantes: O nacional-populismo

 

Matheus Goodwin, um eminente professor de política na Universidade de Kent, apesar de reconhecer que figuras como Donald Trump e Marine Le Pen são perigosas, defende que a ansiedade de alguns grupos é legítima perante o falhanço das elites políticas.

 

A sua tese é desconfortável tanto para a esquerda como para a direita: o nacional-populismo não nasceu da crise nem de fenómenos de desinformação e não vai desaparecer tão cedo.

 

O nacional-populismo aspira a defender os interesses e a cultura do grupo nacional contra o que eles identificam como as elites corruptas, que apenas se servem a si mesmas, revelando pouco interesse em preservar a comunidade.

 

Na sua perspetiva, existem preocupações mais importantes do que as económicas: a perceção de ameaças à cultura nacional, à identidade nacional e ao modo de vida e ainda à ideia de que o grupo nacional está a perder face a outros.

 

Se analisarmos os votos em Trump e no Brexit, podemos verificar que eles estão enraizados em preocupações relativas a mudanças culturais e não apenas no crescimento económico ou nos salários.

 

O denominado nacional-populismo nasce de reclamações legítimas quanto à forma como a nossa sociedade está a mudar. É bom de ver que a maior parte das pessoas que vota nesses partidos não é fascista, nazi, racista, xenófoba ou intolerante.

 

Muitos deles sentem-se simplesmente excluídos do debate público. Apesar do seu evidente lado negro, o nacional-populismo dá voz a muitas pessoas que se sentem abandonadas no diálogo sobre o futuro de todos nós.

 

A maior parte das pessoas aceita a imigração e o multiculturalismo e outros aspetos de uma sociedade liberal, assusta-os é a velocidade desta globalização cultural. Desejam que as modificações se façam a uma escala moderada. Estas são, a nosso ver, uma queixa e uma visão legítimas.

 

Convém lembrar que no Brexit, um terço dos negros e de representantes das minorias votou pela saída da União Europeia. E que, nos EUA, um terço dos latinos e dos hispânicos apoiou Donald Trump.

 

É simplista pensar que o nacional-populismo se baseia na velha questão da supremacia branca. O problema é bem mais complexo.

 

Não é reconfortante observar o facto de existir tanta gente de esquerda a tentar desvalorizar estes movimentos como um regresso ao fascismo dos anos 30. A redução é totalmente imprecisa. Apesar de neles existirem extremistas, de uma forma geral, a maioria está adaptada ao regime democrático. 

 

A questão tem mais a ver com o facto de os defensores de uma democracia liberal darem prioridade aos direitos individuais, mas, muitas vezes, não prestarem a devida atenção aos laços que unem as pessoas das diversas comunidades.

 

Alguns dos dados que Matthew Goodwin utilizou para escrever o seu livro revelam que a maioria dos votantes nos partidos populistas considera a emigração uma coisa boa  e reconhece a força da diversidade. A preocupação está no ritmo da mudança social.

 

Convém perceber que se Donald Trump, Nigel Farage e Marine Le Pen são políticos que recorrem à xenofobia e, por vezes, ao racismo, não é líquido que as pessoas que votam nesses partidos partilhem essas ideias.

 

A primeira tentação é sempre assente na ideia abstrusa de banir e marginalizar os partidos populistas e excluí-los do debate democrático. A experiência europeia revela que essa é uma péssima estratégia, pois nas democracias em que foram banidos acabaram sempre por se fortalecer com o tempo, como se viu na Suécia e na Espanha.

 

A verdade é que os partidos mainstream não estão a ser capazes de lidar com as preocupações que estão a puxar pelo nacional-populismo. De facto, os verdadeiros liberais têm de realizar um melhor trabalho para poderem resolver as questões que levam as pessoas a votar nesses partidos, em vez de os ignorarem.

 

Como diz Matthew Goodwin: “O nacional-populismo é um sintoma, não uma causa.”

 

Não é tranquilizador observar o fenómeno crescente da demagogia populista. Mas não é difícil partilhar de alguma simpatia pela ansiedade de quem vota nestes movimentos.

 

Os trabalhadores apercebem-se que a famosa globalização não está a ser tão benéfica para eles como o é para outros. Sentem que têm sido constantemente excluídos do debate, não lhes sendo atribuído o respeito, a dignidade e o reconhecimento devidos.

 

Por muito que nos custe, Mário Centeno tem razão: “A redução do papel do Estado foi longe demais nas últimas décadas. Isso abriu caminho ao populismo radical.”

 

João Madureira

 

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